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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

2 de dez. de 2010

As Mulheres de Andrzej Wajda (IV)




Na Polônia
um  cavalo  é  mais

importante do que
uma mulher?






Uma Coisa Entre os Homens Poloneses 

Em Lotna (1959), os personagens femininos sugerem uma relação com o sexo feminino que reflete um padrão misógino onde a identidade masculina (ao contrário do que possa parecer) é aquilo que é colocado em questionamento. Em Lotna, adaptação de uma história de Wojciech Żukrowski (1916-2000), Wajda nos apresenta a luta da cavalaria polonesa contra os tanques nazistas durante a invasão de 1939. Eliżbieta Ostrowska nos faz notar que seria um assunto bastante importante, não fosse a ênfase dada no filme ao interesse de três oficiais a uma égua cinza claro chamada Lotna. Para quem ama cavalos, pode se tratar de um filme sensível sobre a saga de um animal a mercê do mundo irracional dos homens – mas ou menos como acontece com os filmes onde as estrelas são cachorros, gatos e porquinhos falantes! Entretanto, salta aos olhos a referência às mulheres – e o fato de o cavalo ser uma égua não conta aqui. Quando os três homens entram num palácio vazio (até que encontram um velho acamado e uma fiel égua meio branca e meio cinza, a seu lado), logo um deles comenta que está morrendo de fome, e conclui: “se houvesse uma mulher aqui, você teria algo para comer” (nas legendas da cópia norte-americana lê-se: “... você seria alimentado” ou, ainda, “...você viveria”). Ou ainda, posteriormente, quando eles vêem uma banheira transbordando: “você teria lavado as costas dela”. (imagem acima, Ewa logo após ser impedida de matar Lotna, ela se ressentiu quando seu marido morreu ao salvar a égua)




Não é apenas

no mundo árabe
que  mulher  não
tem nem voz?







Mas essa mulher imaginária fica para trás quando os homens encontram a égua cinza do lado da cama de um velho nobre. Mais tarde enciumados porque o capitão ganhou Lotna, comenta que “nenhuma mulher vale mais do que ela”. O outro, Jerzy, retruca dizendo que eles possuem o mesmo gosto – de fato, nem Ewa, a futura esposa dele, pode competir com ela. Admirando um desenho de Lotna, pergunta para o amigo se ele “já havia visto pernas assim. Tão leve, tão graciosa” (imagem acima, à direita). Ewa se torna objeto do desejo para Jerzy apenas depois que ele já sabia que poderia herdar Lotna depois da morte de seu capitão. Ele a encontrou quando Ewa era uma professora do interior. Conversavam quando um ataque aéreo começou, ela cai nos braços dele e em dois dias Ewa executa todos os papéis sociais prescritos para a mulher: namorada, noiva, esposa, viúva. A pressa dela, sustenta Ostrowska, seria suscitada pela urgência da vida durante uma guerra. Ewa sentia a iminência da morte e decide acompanhar o marido no campo de batalha. Durante uma parada, ela prepara um piquenique, ao qual seu marido responde com irritação.




Nem adiantaria saber
que Ewa fora
treinada
na infância brincando
de casinha de bonecas





Jerzy censura Ewa lembrando-a de que aquilo é uma guerra e não um passeio. Mas ela insiste que sabe disso e que essa é justamente a razão que a faz desejar tê-lo sentado a seu lado: “Eu sei. É por isso que desejo que você se sente aqui perto de mim”. Ewa disse também que quando era criança costumava brincar de casinha e realizar recepções para as bonecas dela. Então ela o convida o marido: “Deixe-me convidá-lo para nosso novo lar”. Ela sabe, sugere Ostrowska, que não haverá lar para eles, então realiza uma representação de como poderia ser. Ostrowska afirma que o comportamento de Ewa não é uma tentativa de compreender o mundo masculino das batalhas, cavalos e lanças, mas seria na verdade uma mostra da inabilidade dela em aceitar seus valores “femininos”. Lotna se assusta com uma explosão, Jerzy vai buscá-la e morre. Como na cena final de Kanal (1957), quando Margarida mente para evitar que Jacek encare a morte, Ewa é capaz de contemplar a realidade (1). (imagem acima, à esquerda, durante um ataque da cavalaria polonesa, um cavaleiro tenta em vão cravar seu sabre num tanque nazista; abaixo, à direita, outro tanque nazista passa por cima de tudo, inclusive dos cavalos dos poloneses)






Perder apenas
uma mulher ainda vai
.
Mas perder uma égua
,
aí não
dá não!







Os laços masculinos parecem ser, insiste em dizer Ostrowska, de maior importância no filme de Wajda, uma vez que ele abandona o personagem de Ewa assim que o marido dela morre. Como o título do filme sugere claramente, Lotna é o personagem principal - até que quebre a perna e tenha de ser sacrificada. Ao testemunhar a morte da égua, Witek quebra seu próprio sabre como um gesto simbólico de submissão e de fim de sua guerra. Se considerarmos o sabre como um fetiche de masculinidade, sugere Ostrowska, o gesto de Witek adquire o significado adicional e impressionante de abandono da masculinidade. De acordo com a pesquisadora, esta noção de uma masculinidade enfraquecida ou em extinção domina quase todos os filmes da Escola Polonesa, fato que determina de maneira significativa a representação das mulheres nos filmes dessa corrente (2). (nas duas imagens a seguir, depois que Lotna quebrou a perna, ela deve ser sacrificada. Na primeira imagem, o polonês não consegue. Na segunda, outro consegue, mas antes venda o olho da égua)





O capitão aceitou Lotn
a
de presente
, mesmo sabendo
que  a  cor   clara   dela   faria

da  tropa  um  alvo  fácil






Em Cinzas e Diamantes, a casa da cunhada de um líder comunista é um centro de irradiação de ideais aristocráticos e burgueses. Quando o comunista vai a casa dele saber notícias sobre o filho dele, que ficou morando com ela enquanto ele estava na antiga União Soviética, a mulher diz que ele está em boas mãos. Na verdade, ela esconde um homem que faz oposição direta aos comunistas e seu sobrinho será capturado praticando atividades anticomunistas. Na casa dela, podemos ver um sabre de cavaleiro e um quadro com um retrato de um oficial da cavalaria polonesa. Supostamente marido dela, a mulher comenta com convidados que ele está tentando tirá-los do país – que está para se tornar um satélite de Moscou. No grande retrato, ao lado do oficial podemos ver um cavalo branco. Quando Maciek, o ativista anticomunista que protagoniza o filme, se despede de Krystyna, aproxima-se dele um cavalo branco. Anette Insdorf observa que existe na arte polonesa uma tradição em torno do cavaleiro e seu cavalo branco. Insdorf ressalta, levando em consideração a problemática da situação política da Polônia no imediato pós-guerra, que a dupla entre o cavalo meio branco e meio cinza e seu cavaleiro aponta para uma nação com vitalidade, mas que naquele momento estava sem um cavaleiro – um líder. Noutra cena de Cinzas e Diamantes, quando as coisas começam a dar errado na vida de um personagem que oscila cinicamente entre os comunistas e os anticomunistas, o mesmo cavalo branco é colocado agora debaixo de chuva!




O pai de Wajda foi da
cavalaria
, assassinado
em Katyn como gado








O próprio pai de Wajda era da cavalaria e estava entre os oficiais poloneses massacrados durante a Segunda Guerra na floresta de Katyn. Wajda retratou o episódio em Katyn (2007), onde também encontramos uma mulher fazendo oposição ao governo comunista polonês na década de 50 do século passado. Wajda nos mostra também o sempre presente machismo dos poloneses quando, ao cortar o cabelo para ganhar algum dinheiro ao vendê-lo, um homem pergunta se o marido dela sabe o que ela está fazendo. Aparentemente, ao contrário do que possa parecer, o homem não se refere às praticas subversivas contra o governo comunista, mas ao fato dela estar decidindo por conta própria dispor de seu próprio corpo ao vender o cabelo. Em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), Federico Fellini nos levou a acompanhar a saga de Gelsomina pela Itália. Certa vez, seu “dono” a largou e foi se divertir com uma prostituta. Gelsomina ficou perdida, talvez até mais do que antes – quando foi vendida por sua mãe ao troglodita, por algum dinheiro para comprar comida. No dia seguinte, ela estava sentada na calçada sem saber o que fazer da vida. De repente, um cavalo sem dono passa por ela lentamente. Gelsomina acompanha o animal com seus olhos tristes. Talvez seja uma tendência cultural européia, o cavalo como símbolo da insuperável solidão humana: talvez seja mais simples entender um cavalo (e/ou confiar nele) do que um ser humano.

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Notas:

1. OSTROWSKA, Eliżbieta. Caught Between Activity and Passivity: Women in The Polish School in MAZIERSKA, Ewa; OSTROWSKA, Elżbieta. Women in Polish Cinema. New York: Berghahn Books, 2006. P. 82.
2. Idem, pp. 76-7. 


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