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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de dez. de 2018

O Cinema Francês Durante a Ocupação Nazista

“Num regime como este, monsieur, 
ser  condenado  é  uma  honra!”

 Frase pronunciada  em  Pontcarral (1942),  filme francês
 que  a  tolerância  de  alemães  como  Alfred  Greven,  que
 inclusive   demonstrava    pouco   interesse   em   difundir
 a  mensagem  nazista,  deixava  passar   pela   censura  (1)

Antissemita e Conquistado

É possível afirmar que a invasão da França pelos exércitos de Hitler em 1940 acabou salvando o cinema francês, que não havia se recuperado do golpe sofrido com a chegada do som na tela grande dez anos antes. A falta de investimento significava tornar-se dependente da tecnologia estadunidense ou alemã, e no final da década de 1930 as duas maiores companhias francesas de produção e distribuição (Pathé e Gaumont) estavam tecnicamente falidas. Num dos vários planos elaborados para tentar recuperá-la, os problemas da indústria cinematográfica francesa foram definidos: falta de administração centralizada e organização profissional, ausência de mecanismos adequados de financiamento, taxação excessiva e importações descontroladas. Este panorama do cinema francês traçado por Jill Forbes resume o caos reinante naquele país, que décadas antes havia sido o berço do cinema (2).

“A ocupação alemã é lembrada como a era de ouro do cinema francês, embora a verdade seja mais sutil: dos 220 filmes feitos na França entre junho de 1940 e agosto de 1944, só alguns foram memoráveis, e o mais popular de todos, O Boulevard do Crime (Les Enfants du Paradis), obra-prima de Marcel Carné, foi lançado apenas depois da libertação da França. Contudo, a indústria cinematográfica teve bons motivos para comemorar. Possuía uma plateia cativa, ávida por fugir do aborrecimento da vida cotidiana e mergulhar nos risos e lágrimas da tela (e, no inverno, no calor de um cinema aquecido). Em 1943, o comparecimento aos cinemas chegou a superar em 40 % o de 1938. Um dado importante: os filmes ‘inimigos’, primeiro britânicos, depois americanos, foram banidos, de modo que, exceto pelas fitas alemãs, que poucos frequentadores franceses queriam ver, a competição estrangeira praticamente desapareceu (...)” (3)

Depois de conquistada, a França foi dividida em duas zonas, o norte ficou sob o domínio nazista direito, enquanto o sul foi deixado sob a responsabilidade de um governo colaboracionista, conhecido como França Vichy – até 1943, quando ocuparam tudo. Os alemães adotaram uma política dupla em relação à indústria cinematográfica, ao mesmo tempo para fins de propaganda, mas também satisfazendo a demanda popular. Naturalmente, neste último caso, procurando colonizar o cinema francês para assegurar a dominância do cinema alemão na Europa ocupada. Josef Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler, acreditava que para destruir a influência cultural francesa na Europa a produção francesa deveria ser mantida meramente local e limitada. Por outro lado, Alfred Greven, ex-diretor de produção dos estúdios da UFA em Berlim, a quem foi dada total responsabilidade sobre o cinema francês, tinha outros planos.

“O controle da indústria como um todo se encontrava sob a responsabilidade de uma seção da Propaganda Staffel chamada Referat Film comandada por um oficial alemão taciturno conhecido pelos franceses apenas como Dr. Dietrich. A unidade encarregava-se de autorizar roteiros, programas de produção, distribuição, equipes de filmagem e atores. Também emitira uma lista de duzentos filmes que não podiam ser exibidos, alguns por serem antigermânicos, outros por serem tão a favor dos nazistas que poderiam provocar a fúria dos franceses. Um alvo óbvio da censura eram todos os filmes feitos por Max Ophüls, diretor judeu nascido na Alemanha que fugira para a França em 1933 e depois buscara refúgio na Suíça (...)” (4)


 Robert Bresson,   Jacques  Becker, 
Henri-Georges   Clouzot  e  Claude
Autant-Lara, estão entre diretores
de  cinema  francês   que   fizeram
seu nome  durante  a  ocupação (5)

O controle de Greven começou com a criação de um império de cinema verticalizado e integrado, com sua produtora Continental Films, sua distribuidora ACE, sua exibidora SOGEC e seus estúdios e laboratórios de revelação Paris-Studio-Cinéma - antes a distribuição e exibição eram dos judeus (6). Greven conseguiu isso através da compra ou investimento de capital nas companhias existentes, a maioria legal - que teriam sido impossíveis sem a expropriação dos judeus e sua fuga. Ao mesmo tempo, Greven contratava todos os franceses que pudesse, garantindo que os produtores independentes sucumbissem ao poder da Continental Films (com 35 salas de cinema, sendo 14 em Paris) (7) para estocar película, construir de cenários, estúdio e eletricidade. No final da guerra, Greven produzia 15% de todos os filmes realizados, empregando cineastas franceses como André Cayatte, Henri-Georges Clouzot e Henri Decoin – Marcel Carné esteve contratado em 1941, mas deu uma desculpa para quebrar o vínculo.


“Quando da entrada na guerra em 1939, o Comissariado Geral de Informação do governo francês proibiu os filmes de guerra, as farsas militares e as obras julgadas imorais ou desmoralizantes para a juventude. Entre elas encontra-se Trágico Amanhecer (Le Jour se Lève, 1939) (que será finalmente liberado depois do corte de um plano onde se vê Arletty nua) e Cais das Sombras (Le Quai des Brumes, 1938). Em 1940, Alfred Greven inclui Marcel Carné na Continental: este último, buscando uma saída, propõe a ele um projeto muito ambicioso, Les Évades de l’An 2000, e acaba desencorajando o produtor. Contudo, em 1944, Carné está numa lista de cineastas suspensos por ter assinado (mesmo sem tê-lo honrado) um contrato com a Continental” (8)
Para Forbes, existem poucas dúvidas de que o empreendedorismo de Greven estimulou o que restava da indústria cinematográfica francesa criando estruturas institucionais e administrativas baseadas no suporte Estado e poderosa organização comercial. Tal contexto possibilitou finalmente a implementação de um plano de salvamento para esta indústria que havia sido proposto desde 1936. Como resultado, durante a ocupação alemã, o cinema francês alcançou um sucesso que já não fazia há muito tempo: nesta curiosa idade de ouro da indústria cinematográfica francesa, a guerra ou, mais exatamente, a derrota na guerra, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. 
Foram estimuladas carreiras de muitos aspirantes a diretor que não conseguiram se estabelecer durante a estagnação da indústria na década de 1930. De fato, a tolerância e até interesse de nazistas como Greven entre outros em relação ao cinema francês desagradou Goebbels. O Ministro desaprovou o não banimento de um filme como Pontcarral (Pontcarral, Colonel del Empire, direção Jean Delannoy, 1942), que continha uma frase que costumava arrancar aplausos da plateia: “Num regime como este, monsieur, ser condenado é uma honra!” Isso incomodava Goebbels, que em seu diário se queixou também de outro filme, Sinfonia Fantástica - A Vida de Hector Berlioz (La Symphonie Fantastique, direção Christian-Jaque, 1942), biografia romanceada do compositor Hector Berlioz:

“‘Estou furioso’, escreveu em 15 de maio de 1942, “pois nosso departamento em Paris está demonstrando aos franceses como retratar o nacionalismo em seus filmes. Dei ordens bem claras para que os franceses produzissem seus próprios filmes, sempre leves, vazios e, se possível, Kitsch. Creio que considerarão isso suficiente. Não há necessidade de desenvolver seu nacionalismo’. Ele não precisava se preocupar. Comédias, dramas, fitas de fantasia, romance e suspense dominavam a filmografia francesa do período (...)” (9)

Embora quase 50 % dos cineastas e atores tivessem deixado a França antes da invasão utilizando convites de Hollywood como álibi (Jean Renoir, Julien Duvivier, Jacques Feyder, René Clair, Louis Jouvet, Charles Boyer, Jean-Pierre Aumont, Jean Gabin e Michèle Morgan), as carreiras de muitos, como Bresson, Becker e Clouzot, Christian-Jaque, Fernandel, Raimu, e muitos outros se beneficiaram das oportunidades. Somente Gabin e Aumont retornariam antes do final da guerra, o primeiro como soldado de divisão blindada que lutou na libertação da França, e o segundo serviu nas forças aliadas na Itália antes de retornar à França (10).


Os  Visitantes  da  Noite, 
foi sucesso de bilheteria em
1942 e exemplo  da  iniciativa
cultural  de  Vichy através  dos
estúdios Victorine em Nice: ao
mesmo tempo  genuinamente
francês e distinto do produto
 padrão  hollywoodiano   (11)


A cena que poderia ser interpretada  como  gesto
 nacionalista:  os  amantes  foram   transformados 
em  pedra  pelo  diabo.  Embora  eles parecessem
 inanimados,   é   possível   ouvir    seus   corações.
 O  diabo  poderia  ser  Hitler,   mas  apesar de seu 
esforço  o  coração  da  França  ainda  batia... (12)


Além desta fuga de astros para os Estados Unidos, os alemães aumentariam as oportunidades para os franceses ao expulsarem diretores, produtores e atores judeus, embora o próprio Greven lamentasse essa perda por considerá-los muito competentes, chegando a contratar alguns para trabalhar em Vichy. Na verdade, os judeus representariam apenas 15% do total de trabalhadores na indústria cinematográfica francesa. Também é fato que a primeira escola de cinema da França seria fundada em 1944, Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), portanto sob o escudo do invasor nazista, trazendo à memória os investimentos na profissionalização da indústria do cinema realizados pelo ditador aliado de Hitler, Benito Mussolini, na vizinha Itália (13).

“(...) As opiniões expressas por Marcel L’Herbier quando escreveu suas memórias em 1979 pode ser utilizadas para resumir o que muitos cineastas sentiram em relação à ocupação alemã na época: ‘na maior parte nós, diretores de cinema, estávamos trabalhando numa atmosfera de escravidão artística desde 1930, mesmo que então a França fosse livre. Agora que ela não é mais, e os alemães tem o chicote na mão, a situação é completamente invertida e reconquistamos o direito à liberdade artística completa’” (14)

A ideia de alguns franceses que se consideravam patriotas era fazer com que a indústria cinematográfica continuasse nas mãos dos franceses e florescesse na Europa ocupada por Hitler. Foi assim que o funcionário público Guy de Carmoy direcionou sua atenção para a costa mediterrânea do país e suas instalações de produção. De fato, a hipótese de uma “Hollywood francesa” instalada na Côte d’Azur foi algo já bastante discutido nos anos imediatamente anteriores à guerra. Renoir até escreveu sobre as vantagens de se instalar uma “cidade do cinema” em Nice. Os estúdios presentes nesta cidade definharam com o advento do cinema falado, dos seis existentes apenas Victorine e aqueles em Laurent-du-Var ainda se encontravam em funcionamento em 1940. 
Procurando evitar a entrada de capital alemão, Carmoy interveio para que o arrendamento dos estúdios Victorine fosse concretizado com a francesa SESCA, cujo presidente, André Paulvé, já vinha realizando coproduções com a Itália (a qual, por sua vez, enquanto aliada de Hitler tinha ambições territoriais na região) – ele produziu Os Visitantes da Noite, de Carné. Foi criada a CIMEX, com 60% de capital italiano e 40% francês. Paulvé se torna um grande produtor, carreira que se estendeu até os anos 1960. 
Dentre muitos outros, O Bouvelard do Crime foi filmado em Victorine, cujos estúdios seriam afetuosamente homenageados por François Truffaut em A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973). Essa estratégia de trocar Paris por Nice deu certo, e Victorine se tornou o foco do governo Vichy focado em filmes franceses, feitos por técnicos franceses e estúdios controlados por franceses. Comparando o Neorrealismo italiano e o cinema de seu país no imediato pós-guerra, o crítico francês André Bazin observa em artigo de 1948:

“(...) A crítica francesa não deixou de ressaltar, o elogiando ou condenando, mas sempre com um espanto solene, as poucas alusões precisas ao pós-guerra com as quais Marcel Carné quis marcar seu último filme [embora em 1947 tenha realizado La Fleur de l'Âge, filme controverso que foi censurado e depois simplesmente sumiu, ali o cineasta se refere a eventos anteriores à guerra, sendo mais provável que Bazin esteja se referindo a Portas da Noite (Les Portes de la Nuit, 1946)]. Se o diretor e o roteirista se empenharam tanto para fazer com que compreendêssemos isso, foi porque dezenove em cada vinte filmes franceses não podem se situar nos últimos dez anos. Os filmes italianos, ao contrário, mesmo quando o essencial do roteiro é independente da atualidade, são, antes de tudo, reportagens reconstituídas (...)” (15)

Fértil Terreno Infértil

A  época  foi   fecunda  em  filmes
fantásticos  pouco praticados  lá na
França,   incluindo   inclusive   ficção
 científica, com Croisières Sidérales 
(direção André Zwobada, 1942) (16)

Em 1941, 20% dos filmes dos cinemas parisienses eram alemães, porém com pouco sucesso. As exceções serão o escapista Barão de Münchhausen (Münchhausen, direção Josef von Báky, 1943) e o antissemita O Judeu Süss (Jud Süß, direção Lothar Mendes, 1934) (17). Até novembro de 1942, a Secretaria de Informação de Vichy monitorava os filmes no sul do país (única região onde tinha certa jurisdição), buscando um cinema francês que promovesse valores familiares, rurais, católicos. Nas palavras do diretor da COIC (Comitê de Organização da Indústria Cinematográfica), Raoul Ploquin, a meta era elevar o nível artístico e moral do cinema francês, “impedindo que filmes mórbidos e depressivos envenenassem a alma do público francês” (18). 

“Os anos da ocupação são aqueles onde darão seus primeiros passos um Jacques Becker, um Henri-Georges Clouzot, um Louis Daquin ou um Jean Delannoy. Vamos adicionar, para dar uma boa medida, os nomes de realizadores para quem a época é aquela de uma nova largada, desta vez definitiva, como Claude Autant-Lara ou Robert Bresson. Em termos ideológicos, nenhum destes autores pode ser catalogado como ‘vichysta’. O mais atirado para a Libertação [da França], Clouzot, se assemelha mais àquela espécie de ‘anarquista de direita’ que, em todas as épocas, constituiu o fundo de boa parte da cultura artística. Autant-Lara, que termina eleito pela Frente Nacional [(Front National, atualmente Rassemblement National, partido de extrema-direita, protecionista, conservador e nacionalista)] era, nessa época, bem aceito tanto pela esquerda quanto pela direita e, primeiramente, pelos sindicatos dos quais será, depois da guerra, o presidente da Federação CGT do espetáculo. Becker é um simpatizante comunista e Daquin um militante clandestino do Partido [comunista]. No verão de 1944, o Comitê de Libertação do cinema francês, que realiza filmes sobre os maquis [(os guerrilheiros da resistência francesa)] e sobre a insurreição de Paris [contra os alemães], é animado por Becker, Daquin e Le Chanois” (19)

Naturalmente, tal planeta idílico não inclui todo mundo. Vichy e os alemães aprovavam o que lhes interessava: o documentário antissemita Les Corrupteurs (Os Corruptores, direção Pierre Ramelot, 1942), o também antissemita Les Inconnus dans la Maison (Os Desconhecidos na Casa, direção Henry Decoin, 1942), Forces Occultes (Forças Ocultas, direção Jean Mamy com o pseudônimo de Paul Riche, 1943), e o documentário anticomunista Français, vous avez la mémoire courte (Franceses, vocês têm a memória curta) (20).
Antes da projeção dos filmes o público deveria assistir aos cinejornais de quinze minutos France-Actualités, dedicados a glorificar Pétain e sua Revolução Nacional (tradicionalista, conservadora e autoritária) (21) recebidos com vaias, assobios e palavrões – a partir de 1942, o cinejornal alemão, que só era veiculado na zona ocupada, uma nova versão de France-Actualités combina a propaganda alemã e a francesa, passando a ser exibido no país inteiro (22). Quando as luzes passaram a ser acessas durante os noticiários para que se pudesse vigiar a reação das pessoas, elas começaram a fazer questão de chegar na hora da abertura dos filmes.
De acordo com Jean-Luc Douin, para compreender a facilidade com que se deu dominação do cinema francês pelo ocupante nazista deve-se necessariamente considerar a onda de xenofobia e antissemitismo que assolava a França antes da invasão. Independente do fato de se considerar ou não que se trate de um país antissemita, a verdade é que a partir de 1939 a onda de imigração para a França de várias nacionalidades dos países ocupados por Hitler e, naturalmente, de judeus, levou ou, exacerbou sentimentos do tipo “os franceses primeiro”. Portanto, quando os nazistas lá chegaram, já encontraram uma série de elementos jurídicos antissemitas na administração da indústria do cinema – restrição de empregos para estrangeiros etc. Evidentemente, aqueles franceses explicitamente antissemitas foram colocados em postos de comando pelos nazistas (23).


  Tendo dirigido  seis  filmes como, 
 por   exemplo,  A  Mão  do  Diabo
 (1943),   Maurice   Tourneur   será
 um   dos   mais   ativos   diretores
 a trabalhar   na   Continental   (24)


“Durante a ocupação, uma verdadeira guerra das propagandas dos cinejornais. O jornal de Jean-Louis Trixier-Vignancourt, transmitido na zona livre responde aos cinejornais da Deutsche Wochenschau, na zona ocupada. Jean-Louis Trixier-Vignancourt garante a participação de Pathé Journal e France-Actualités, enquanto o governo de Vichy apresenta as imagens [de Pétain] sobre todo o território; no final das negociações, os franceses obtém o monopólio dos cinejornais e se engajam em defender política de colaboração europeia apoiada na vitória alemã. As prefeituras lembram aos gerentes de cinema que os espectadores não devem se manifestar durante os cinejornais, sob pena de sanções contra os cinemas. Os alemães acabam controlando os filmes de France-Actualités, enquanto Vichy os utiliza como emissor da ideologia pétanista e colaboracionista. Em 1944, France-Actualités escapa ao controle de Vichy e se torna France Libre-Actualités” (25)


A paranoia antiestrangeiros e antijudeus reinante na França, que parecia mais preocupada em negar asilo e direito de trabalho aos imigrantes de países ocupados que ali buscavam santuário, convenientemente impediu que se percebesse que o interesse explícito de Goebbels quebrar o predomínio cultural do país na Europa e no mundo. Para alcançar tal objetivo, por um lado os alemães estabeleceram sua própria censura no cinema francês já em julho de 1940, ligada diretamente aos militares da Wehrmacht e a Goebbels. Por outro lado, é aí que entra o papel da Continental Film, na prática apenas uma filial da UFA alemã. Combinados, estas duas instâncias deveriam fornecer entretenimento aos franceses e banir tudo no cinema que excitasse o nacionalismo francês e facilitasse a ida dos moralistas de plantão – embora a censura estabelecida pelos franceses de Vichy não tivesse poder de banir filmes alemães considerados licenciosos.

“Em outubro de 1940, o governo de Vichy cria o COIC, Comitê de Organização da Indústria Cinematográfica [cuja primeira ação foi lembrar à indústria que o Estatuto Judaico excluíra todos os judeus da atividade cinematográfica (26)], colocado sob a tutela de Guy de Carmoy (posteriormente, em 1941, de Louis-Émile Galey). (...) Louis - Émile Galey insiste: nós não queremos mais produtores ‘que parecem se interessar muito mais pelos benefícios materiais imediatos do que com a qualidade’, que ignoram ‘respiração, fé, ambição’. O cinema francês deve estar a serviço da política ‘de recuperação nacional [do governo Vichy] realizada pelo Marechal [Philippe Pétain]’. Assim se desenha o cinema ‘ideal’, sem judeus, que os alemães desejam ‘leve, superficial e divertido’, que Vichy sonha ancorado no retorno a terra e o culto do trabalho, a defesa da família e a exaltação dos valores morais, e que a Central Católica do cinema (que não parou de denunciar ‘a imoralidade e o vício do cinema francês’, de pedir ‘uma censura implacável’, de sustentar o cartel de ação moral reunindo uma centena de associações) exige depurado de suas baixezas, de suas sujeiras, de sua ‘depravação’ (...)” (27)

Continuar Vivendo...


No final,  com  o  país  invadido a  maioria  de  atores e diretores
 se   contentava   em   conseguir  trabalho,  o  que   não  era  difícil, 
  considerando a oferta de empregos devido à expulsão dos judeus  

Na época, Danièle Darrieux era a maior figura do cinema francês. Sua vida, assim como a de outras estrelas, era acompanhada através de novas revistas de cinema, Vedettes, La Semaine, Ciné-Mondial, Toute-la-Vie. Havia uma vida noturna em Paris e nada parecia mais emocionante para as massas do que a entrada de Darrieux no Maxim’s. Para a estreia de seu primeiro filme para a Continental (participaria em três), ela teve de ir a Berlim contra sua vontade (parece que Greven chamou atenção para o fato de que um ramo polonês dela família dela poderia conter judeus...), sendo acompanhada por mais alguns astros franceses, Viviane Romance, Suzy Delair, Junie Astor e Albert Préjean. Darrieux viveu u ma vida tranquila e alienada até o Dia D, em 1944, quando acabou tendo que fugir para o mato com seu marido latino diplomata magnata e seu cachorro (28).
Não era incomum encontrar atrizes francesas de braços dados com oficiais alemães nas casas noturnas de Paris. Mireille Balin apaixonou-se por um oficial da Wehrmacht, Birl Desbok, com quem ficou até o final da guerra – ele seria assassinado no momento da prisão dela como colaboracionista, em setembro de 1944. Corine Luchaire, filha de um editor de jornais, teve um filho com Woldar Gelrach, capitão da Luftwaffe – ela estava grávida quando acompanhou seu pai, outro colaboracionista, à prisão no mesmo ano; posteriormente, ela seria condenada a dez anos de dégradation nationale. Eventualmente, atrizes taxadas de colaboracionistas como Suzy Delair e Michèle Alfa (amante de Bernhardt Rademecker, sobrinho de Goebbels e oficial da Propaganda Staffel), poderiam usar sua influência para salvar certos judeus e certos atores.


A  homossexualidade  havia  sido
banida por Hitler. Contudo, fossem
 (como Robert Brasillach e Bonnard) 
ou não colaboracionistas,  é  grande
 a  frequência a bares gays de Paris, 
populares entre soldados alemães 


Galtier-Boissière apelidou Abel Bonnard (colaboracionista
infame, nomeado Ministro da Educação em 1942) de gestapette,
Gestapo+tapette,  gíria francesa para  “homossexual”  (29)


Por outro lado, tal contato nem sempre era o padrão entre as pessoas da indústria cinematográfica. No final das contas, explicou Alan Riding, a maioria de atores e diretores se contentava em conseguir trabalho, coisa que, por outro lado, não era difícil, já que 60 filmes foram rodados em 1941, 67 em 1942 e 60 em 1943 – sem falar da oferta de empregos devido à expulsão dos judeus de seus postos de trabalho. Com a invasão Micheline Presle fugiu para Nice, onde participou em três filmes. De volta a Paris em 1942, faz mais três filmes, embora nenhum para a Continental Film. Voltou também a participar da vida noturna, mas dizia detestar alemães e os evitava.

Elina Labourdette manteve distância da vida social e nunca conheceu um alemão. Os dois filmes que fez em Paris não foram produzidos pela Continental. Robert Bresson, amigo dela, a escalou para As Damas do Bois de Boulogne, em 1944.
O famoso ator Harry Baur não teve muita sorte, os semanários colaboracionistas o acusaram de ser judeu e maçom, o que o levou a aceitar papeis em dois filmes de Greven como forma de proteção. Em 1942, concordou em fazer vários filmes na Alemanha, quando foi convidado para o jantar onde Goebbels, Danielle Darrieux e uma comitiva francesa comemorava a estreia dela na Continental. Baur foi preso quando protestou pela prisão de sua esposa judia. Torturado pela Gestapo, a polícia secreta de Hitler, seria solto em 1943 com a saúde debilitada. Morreu em abril daquele ano. Seria possível citar exemplos indefinidamente para ilustrar a vida na indústria cinematográfica francesa durante a ocupação nazista. 

Arletty e Guitry


“Meu coração é francês, mas minha bunda é internacional”

Frase atribuída à Arletty
Dentre as atrizes frequentadoras de casas noturnas em Paris, Arletty era a mais reconhecida. Ela se tornou amante de Hans Jürgen Soehring, um oficial da Luftwaffe. Participou de sete filmes no período e comparecida a eventos sociais, sendo também amiga de autores colaboracionistas como Drieu La Rochelle e Cèline, além do pianista Alfred Corot. Douin lembra que Arletty foi a figura de proa das mulheres emancipadas contra a censura francesa que procurava fabricar uma mulher perfeita, casta e melosa. Em 1939, Carné a filma durante o banho em Trágico Amanhecer. Cortada pela censura de Vichy, a cena nunca mais foi reconstituída. A atriz será questionada também por aceitar o convite da Continental em maio de 1941 para receber a estrela alemã da UFA Zarah Leander no Ledoyen, em Champs-Élisées (30).
Com as notícias de que os Estados Unidos invadiu a França, Arletty abandona apressadamente as filmagens de Boulevard do Crime, refugiando-se com um jovem assistente do filme, e da resistência, Georges Baudoin – depois ela vai para Dr. Évenou. Pressa, ela será transferida para Drancy por 120 dias. A seguir, em prisão domiciliar, será proibida de circular e trabalhar durante três anos. Em 1946, a prisão é relaxada e pode voltar a circular por Paris, embora deva comparecer ao “comitê de depuração”. Reencontrou seu alemão depois da guerra, mas não reatou a relação. Também deixou claro não gostar de De Gaulle, militar francês mais famoso então. Diziam que tinha paixão por uniformes, ao que respondeu: “admiro apenas um uniforme: aquele do corpo de bombeiros e apenas um exército, o exército da salvação” (31).

“Dentre o conjunto dos interpretes de O Bouvelard do Crime, Arletty é a melhor paga: ela recebe mais de 1, 700, 000 francos, duas vezes mais que [Jean-Louis] Barrault e vinte e cinco mais do que [Maria] Casarès. Se acreditarmos nos contratos, ela é a única a ter certeza de viajar em primeira classe e, durante as filmagens em Paris, uma charrete é colocada a sua disposição para leva-la de seu apartamento aos estúdios da rua Francœr. Contudo, em 1944, ela é apenas a oitava vedete feminina em termos de popularidade (será a 15ª em 1950, precedida a cada vez por Viviane Romance, Edwige Feuillère, Danièle Darrieux e Micheline Presle) (...)” (32)


“Depois de ter sido a mulher mais convidada
 de Paris, eu sou a mais evitada” 

Arletty

À propósito do ostracismo que lhe foi imposto como punição depois da guerra (33)

“A atriz mais famosa acompanhada pela épuration [após a guerra, chamou-se “depuração” aos processos contra os colaboracionistas, de prostitutas a simples namoradas, passando por políticos e gente das artes etc] foi a inimitável Arletty. A seu favor vale dizer que nunca filmou para a Continental, e que ajudou a libertar Tristan Bernard de Drancy, ao lado de Guitry. Mas passou a se dedicar a um oficial da Luftwaffe [...], a partir de 1941. Circulava com ele pela cidade inteira, jantava no Maxim’s e comparecia a recepções na embaixada alemã, inclusive a que homenageou [Hermann] Goering [líder da Luftwaffe e lunático antissemita do alto escalão nazista], em dezembro de 1941. Depois da libertação [da França] ela se escondeu, mas foi presa em dois meses e enviada a Drancy. ‘Na cadeia uma jovem freira tentou fazer com que eu me aproximasse de Deus’, recordou tempos depois. ‘Eu disse que já nos conhecíamos, e que a relação não tinha dado certo’. Sempre com uma resposta ferina na ponta da língua, certa manhã o promotor perguntou, durante o julgamento, como ela se sentia. ‘Não muito resistente’, respondeu’ [(certamente uma referência à Resistência francesa clandestina, que lutava contra o invasor nazista)]. A principal queixa contra ela, de ter tido um amante alemão, recebeu a resposta: ‘na minha cama ninguém usa uniforme’. Em seguida, soltou o comentário que a tornou famosa: ‘Meu coração é francês, mas minha bunda é internacional’ [(há controvérsia sobre quando e onde ela disse isso; Douin, por exemplo, afirma que foi Henri Jeanson quem teria sussurrado esta resposta para ela)]. Após seis semanas em Drancy, ela passou a cumprir pena em prisão domiciliar no castelo de uns amigos, em La Houssaye-en-Brie, a 30 quilômetros de Paris. Em 1947 retomou a carreira com La Fleur de l’Âge, novo filme de seu velho amigo Carné, para quem fez dois dos melhores filmes da época da ocupação, Os Visitantes da Noite e O Boulevard do Crime. Em 1956, tendo estrelado dez filmes desde a libertação, foi escolhida para compor o júri do nono Festival de Cinema de Cannes. Aos 58 anos, ela ainda sabia encantar os franceses” (34)
Sacha Guitry, homem de teatro e cinema, era tão famoso que se confundia com a França da Terceira República (1870-1940). Para Noël Simsolo, a invasão alemã o levará a se transformar em bode expiatório. Após a libertação, será acusado de colaborar com o inimigo. Em sua defesa, escreverá dois livros sobre o assunto, mas continuará suspeito aos olhos de muitos apesar das evidências de sua inocência. Sairá dessa experiência com desgosto e decepção, falando em vitória dos medíocres. Atribui-se a ele o comentário: “Não é minha culpa se eu sou desprovido de qualquer senso político de virtudes guerreiras” (35).
Como muitos franceses ele vive uma contradição, é contra os alemães, mas apoia cegamente o Marechal Pétain. Guitry fala muito no rádio, mas não cita o desembarque das tropas aliadas na África do Norte, a sabotagem da frota francesa em Toulon, a criação de uma milícia em Vichy, a instauração do Serviço de Trabalho Obrigatório (centenas de milhares de franceses foram deportados para trabalho forçado na Alemanha) e sobre a exaltação da guerra total por Goebbels em nome de Hitler – ele só pensa em seu livro “De Joana D’Arc a Pétain” (36).

No  interrogatório,  Guitry  lerá  sua
ficha: “motivo da prisão:  ignorado”.
Mas  ele  é  muito  célebre  para  não
servir  de  exemplo.  O  público quer
condená-lo. Contudo,  até  o  apelo  à
delação não reúne nada de concreto


No estrangeiro, os emigrantes o consideram perigoso colaborador. A revista Life publicou uma lista de traidores da França que deveriam morrer. Ao lado de Guitry, o Primeiro Ministro Pierre Laval, Pétain, Almirante François Darlan, o escritor Louis-Ferdinand Céline, a atriz Mistinguett (Jeanne Florentine Bourgeois), o ator Maurice Chevalier, o pintor e escultor André Derain... – consta que o próprio Pétain sugeriu a Guitry que parasse de citar seu nome. Ardente defensor da grandeza da França, o mesmo Guitry que em 1916 e 1940 queria impedir que os alemães colonizassem culturalmente seu país, em 1943 sugere que vale mais a pena nos fazermos de cego do que participar dessa tragédia da França ocupada.
Enquanto isso, do outro lado, sua situação é complexa. Os alemães suspeitam que Guitry seja judeu e ele quase não tem mais poder. Juntamente com Arletty, e o pianista Alfred Corot, seu último ato de intervenção foi ajudar na libertação do escritor Tristan Bernard e sua esposa. Infelizmente, isso só fez confirmar para a resistência francesa que Guitry deveria gozar de excelentes relações com o invasor. O mal entendido persistirá até seus últimos dias de vida. Aparentemente, ele era muito autoconfiante (ou ingênuo...). Todos o avisaram para tomar cuidado, inclusive Arletty. Em agosto de 1944, será preso pelos franceses livres. 
Mas o dossier Guitry está vazio: nenhuma prova, nenhuma queixa, apenas uma sequência de fofocas e boatos. Durante o interrogatório, Guitry lerá sua ficha: “motivo da prisão: ignorado”. Mas ele é muito célebre para não servir de exemplo. O público quer condená-lo. Entretanto, mesmo o apelo à delação não reúne nada de concreto. Na prisão, visitam-no apenas soldados norte-americanos que o admiram. Execrado na França, não pode publicar nada ou aparecer em cena, pensa em emigrar para os Estados Unidos. Finalmente, em 1947 Guitry é liberado de todas as acusações e retorna ao teatro. Mas as críticas negativas continuavam, até que o Cahiers du Cinéma começasse a se interrogar a respeito de sua escritura cinematográfica. 
Em 1948, encontramos apenas a publicação de uma filmografia comentada, assinada por um jovem de dezesseis anos chamado François Truffaut. Em 1969, Truffaut ficou impressionado com o filme de Marcel Ophüls, A Tristeza e a Piedade (Le Chagrin et la Pitié), documentário que mostra a vida numa cidade francesa durante a ocupação, introduzindo entrevistas. Para Truffaut, este foi importante por ser o primeiro filme a respeito do tema que não olha para a história da França daquele período como um tempo heroico. Censurado pelas autoridades francesas, considerado antipatriótico por muitos, A Tristeza e a Piedade contou com a influência de Truffaut para que fosse projetado na televisão – mas só seria lançado em 1981! (37). 

Ajuste de Contas


Os filmes produzidos na França Vichy eram balizados
na ideologia do trabalho-família-pátria (38) 

Em junho de 1944, o comitê francês de libertação nacional traça uma série de procedimentos na recém “libertada” Argélia (esta colônia francesa ainda levaria uns bons dez anos para se libertar dos franceses). No que diz respeito ao cinema, todos os filmes alemães introduzidos na França a partir de 1940 serão recolhidos (em especial aqueles de explícita propaganda nazista, fascista ou vichysta), enquanto a censura militar só poderá interditar filmes que comprometam as necessidades da defesa nacional (39). 
A Grande Ilusão (La Grand Ilusion, direção Jean Renoir, 1937) será proibido até o retorno dos prisioneiros, Quermesse Heróica (La Kermesse Héroque, direção Jacques Feyder, 1935) terá sua recuperação adiada, imporá para A Esperança (L'Espoir, André Malraux, Boris Peskine, direção1940) uma apresentação explicando a época que o filme foi realizado, Paméla (direção Pierre de Hérain, 1945), que acontece durante a revolução e mostra as dificuldades de abastecimento, será cortado, será proibido O Crime de Monsieur Lange (Le Crime de Monsieur Lange, direção Jean Renoir, 1936), porque supostamente exibe os vícios mais variados e ultrajantes, serão condenados como antifranceses Les Inconnus dans la Maison, Sombra do Pavor (Le Courbeau, direção Henri-Georges Clouzot,1943) e La Vie de Plaisir (direção Albert Valentin, 1944).
Coloca-se em prática uma política de depuração, aqueles que colaboraram com os nazistas são julgados pelo tribunal de justiça (condenando à morte Jean Marquès-Rivière e Jean Many, roteirista e realizador de Forces Occultes, 1943; condenando a três anos de prisão Robert Muzard, diretor da NOVA-Films; Henry Clerc, chefe dos noticiários alemães-vichystas à prisão perpétua com trabalhos forçados) ou por organismos profissionais (prenderam umas 250 pessoas, posteriormente impedidas de exercer sua profissão temporariamente).  
Dentre os “punidos”, Arletty, Pierre Fresnay, Yvonne Printemps, Mireille Balin, Corine Luchaire, Albert Préjean, Tino Rossi, Maurice Chevalier, Robert Le Vigan e o roteirista Henri Jeanson (advertido), Marcel Carné (advertido), Henri-Georges Clouzot (dois anos de proibição de trabalho por realizar Sombra do Pavor, filme destinado a minar a moral dos franceses e propagar a delação através de cartas anônimas). Em julho de 1945 a censura retorna à autoridade civil.

Leia também:


Notas:

1. RIDING, Alan. Paris, a Festa Continuou: A vida cultural durante a ocupação nazista, 1940-4. Tradução Celso Nogueira, Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª edição, 2012. P. 231.
2. FORBES, Jill. Les Enfants du Paradis. London: British Film Institute, 1997. Pp. 12-18, 73n7, 73n9.
3. RIDING, A. Op. Cit., p. 224.
4 Idem, p. 225.
5. Ibidem, p. 224.
6. Ibidem, p. 225.
7. ORY, Pascal. Le Cinéma Français sous l’Occupation, entre Enfer et Paradis. In: Les Enfants du Paradis – Marcel Carné, Jacques Prévert. Éditions Xavier Barral/La Cinematèque Française/Fondation Jérôme Seydoux-Pathé, 2012. Catálogo de exposição. P. 21.
8. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Images Interdites. Paris: Quadrige/PUF, 2001. P. 88.
9. RIDING, A. Op. Cit., p. 231.
10. Idem, p. 78.
11. FORBES, J. Op. Cit., p. 15.
12. RIDING, A. Op. Cit., p. 231-2.
13. Idem, pp. 224, 226, 227, 229.
14. FORBES, J. Op. Cit., p. 13.
15. BAZIN, André. O que é Cinema? Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ubu Editora, 2018. P. 310.
16. ORY, P. Op. Cit., p. 24.
17. RIDING, A. Op. Cit., p. 230.
18. Idem, p. 229.
19. ORY, P. Op. Cit., pp. 21-4.
20. RIDING, A. Op. Cit., pp. 229-30.
21. ORY, P. Op. Cit., p. 24.
22. RIDING, A. Op. Cit., p. 231.
23. DOUIN, J.-L. Op. Cit., pp. 190-3.
24. RIDING, A. Op. Cit., p. 229.
25. DOUIN, J.-L. Op. Cit., p. 203. 
26. RIDING, A. Op. Cit., p. 229.
27. DOUIN, J.-L. Op. Cit., p. 192.
28. RIDING, A. Op. Cit., pp. 227, 234-40, 375.
29. Idem, p. 239.
30. DOUIN, J.-L. Op. Cit., pp. 32-3.
31. Idem, p. 33.
32. ORY, P. Op. Cit., p. 146.
33. DOUIN, J.-L. Op. Cit., p. 33.
34. RIDING, A. Op. Cit., pp. 375.
35. SIMSOLO, Noël. Sacha Guitry. Paris: Cahiers du Cinéma, 1988. P. 85.
36. Idem, pp. 85, 92, 93, 94, 97, 101, 103, 10-4-5.
37. BAECQUE, Antoine de; TOUBIANA, Serge. François Truffaut. Paris: Éditions Gallimard, 2001. Pp. 689, 825n12.
38. ORY, P. Op. Cit., p. 24.
39. DOUIN, J.-L. Op. Cit., p. 194.

18 de nov. de 2018

O Cinema Autobiográfico de Jean Eustache


“Em Eustache, homens e mulheres não falam a mesma língua”

Marie Anne Guerin (1)

Alexandre Eustache

O roteiro e os diálogos de A Mãe e a Puta (La Maman et la Putain, 1973) foram escrito por Jean Eustache para o ator Jean-Pierre Léaud e Françoise Lebrun (recém saída da vida amorosa do cineasta). Marie Anne Guerin definiu as longas 3 horas e 40 minutos deste filme preto e branco como uma declaração de Eustache a respeito das contingências e exigências de um amor incerto entre homem e mulher. Começa e termina com uma proposta de casamento de Alexandre (Léaud), que no restante do tempo passa de um amor que conheceu, Gilberte, a outro que viveu, Veronika (Lebrun), enquanto negligencia um terceiro, Marie. Mulherengo que precisa delas para inventar sua própria vida e de quem é totalmente dependente, para morar, se deslocar e existir/falar – Alexandre fala o tempo todo (2). 

“Escrevi esse roteiro porque amava uma mulher que me abandonou. Queria que atuasse num filme escrito por mim. Nunca tive oportunidade, durante os anos que passamos juntos, de fazê-la atuar nos meus filmes, porque não fazia filmes de ficção e nem tinha ideia de que pudesse atuar. Escrevi este filme para ela e Léaud; caso recusassem atuar, não teria escrito” (3)

A inspiração de Eustache é tão abertamente autobiográfica que chegava a se ausentar depois de cada conversa para escrever num caderno os futuros diálogos de A Mãe e a Puta. Como explicou Guerin, “(...) a linguagem reúne a memória. Ele disse também que se Françoise Lebrun, que acabara de deixá-lo, não tivesse aceitado atuar como Veronika, este filme, assombrado pelos fantasmas do cineasta e seus afetos, não teria existido” (4) 

“(...) Se dessa filmagem austera emerge incontestavelmente uma sedução muito forte, trata-se de uma sedução perversa: seduzir pela própria recusa de seduzir, tal é uma das chaves estéticas de A Mãe e a Puta. (...) Dizem que esta maneira de seduzir era também a atitude de Jean Eustache na vida, em relação às mulheres” (5)


Bares (bistrôs) eram a segunda casa de Eustache, mesmo caso de
 vários de seus personagens. Em 63% de A Mãe e a Puta, Alexandre
vai ao de Flore (preferido de Jean-Paul Satre) ou Deux Magots (6)

O cineasta Eustache gostava muito da obra do escritor Marcel Proust (1871-1922), chegando a citar seu livro mais famoso em A Mãe e a Puta – Alexandre carrega Em Busca do Tempo Perdido (1913–1927) em suas peregrinações rituais pelos bares. Contudo, para Samuel Douhaire, apenas em sentido amplo o filme de Eustache é um equivalente cinematográfico do livro. Percebemos a ideologia da época, a moral e os costumes, modas, pensamentos e tiques de Paris do início dos anos 1970, além do gosto do cineasta por canções populares antigas (podemos ouvir a cantora Fréhel [1891-1951], em A Mãe e a Puta) que confirma o interesse pelo passado. Porém, quanto à encenação, o tempo não é reencontrado ou ressuscitado, mais simplesmente contado através dos meios e os sentimentos do presente (7).

“‘Falar apenas através das palavras dos outros. É isso que eu gostaria. A liberdade deve ser isso’. Quando Alexandre chega a esta conclusão, perto de 5 horas da manhã, Veronika e ele passaram a noite fazendo amor na cama de Marie. (...) O horizonte absoluto da palavra, se seguirmos esta aventura arriscada de uma noite, é despojar-se daquilo que queremos dizer, do narrador supra significante, em proveito de uma palavra neutra, clínica: falar como um dicionário, falar como se não fôssemos mais o corpo no qual viviam essas palavras, mas um transmissor. Falar para deixar as palavras falarem em nosso lugar. (...) Falar com as palavras dos outros, é também ser o ator de si próprio” (8)

Evidentemente, na obra de Eustache existe uma relação entre real e ficção, intimidade e história, mas é uma relação complexa. Un Moment d’Absence, que ao chegou a ser realizado, foi o último projeto de filme escrito por Eustache. O texto foi escrito por sua última companheira, Sylvie Durastanti, que chamou atenção para o fato de que de certa maneira ele se considerasse um arquivista, direcionado à guarda de documentos situados no passado. Tudo para ele se tornava arquivo. Caso começasse a discutir com as duas mulheres reais que inspiraram A Mãe e a Puta, continuou Durastanti, anotava todas as frases da conversa. Alguém que age desta forma não está totalmente imerso no presente, concluiu (9).

“Se, como todos os que o conhecem concordam em dizer, Jean Eustache era extremamente modesto sobre tudo o que dizia respeito à sua infância e adolescência no sudoeste da França (sabemos apenas que veio de um meio muito modesto), foi a seus filmes, no entanto, que ele confiou a tarefa de levantar um canto do véu. Falar de si mesmo, tais eram, pelo menos por um longo tempo, a palavra de ordem e o motivo de filmar desse cineasta, que afirmou não ter imaginação, e que foi procurar mais de uma vez próximo a si, em sua vida, um material de ficção. A autobiografia desenhada pelos filmes de Jean Eustache só revela o esboço ou as notas dispersas de um diário. Ela está sujeita a um emprego. Os mecanismos que sabemos serem os do sonho (a condensação, o deslocamento) valem para o trabalho de encenação considerado como uma arrumação. Vários filmes de Jean Eustache desenham, desta forma, retorno quase sistemático em direção ao passado, uma ‘busca pelo tempo perdido’ (um plano de A Mãe e a Puta mostra Jean-Pierre Léaud lendo Proust) (...)” (10)

Alexandre, o Tagarela


Eustache  era  tão  fã  de  Robert Bresson  que  ao  convidar Isabelle
Wiengarten  (Gilberte),  avisou que caso ela não aceitasse o papel iria
 procurar outra atriz bressoniana.  Frase de Alexandre: “uma mulher 
me agrada, por exemplo, porque apareceu num filme de Bresson” (11)

“Mas, afinal de contas, eu não entendo; será que a vida consiste em carregar eternamente o peso de um erro que se cometeu?” Pronunciada por Alexandre em A Mãe e a Puta, esta frase é uma citação do diálogo de As Damas do Bois de Boulogne  (Les Dames du Bois de Boulogne, 1945), do cineasta francês Robert Bresson, que Eustache tinha em alta conta (12). Alain Philippon prefere explorar o possível interesse de Roland Barthes no filme de Eustache. Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977), livro do semiólogo e ensaísta teórico literário, foi lançado quatro anos depois do filme. Não apenas Alain Philippon chegou a aproximar Alexandre do protagonista de Barthes, mas Colette Dubois chegou a sugerir que o livro do semiólogo fosse o primeiro ensaio a respeito do filme de Eustache. Contudo, Natacha Thiéry discorda e afirma que esse paralelo não vai muito longe. O argumento inicial é basicamente o mesmo: um homem abandonado tenta lembrar o que já foi perdido e canaliza seu sofrimento para um processo criativo onde o discurso ocupa um lugar central (13).
Nos dois casos, o sujeito do discurso se define menos por uma relação com o outro (no caso, as outras) do que em função do lugar solitário e afastado a partir de onde fala seu monólogo obsessivo e paranóico de apaixonado tagarela. Tagarelice que procura preencher um vazio, reencontrando o ser desejado apenas por um efeito secundário, já que o objeto amoroso continua ausente: o amante manifesta linguagem. Às vezes o tagarela reencontra o objeto amoroso, que exerce uma resistência em sua ausência (Gilberte), seu próprio sofrimento ou suas tentativas para desarmar o jogo e as máscaras do discurso (Veronika, Marie). É neste sentido, explicou Dubois, que elementos constitutivos do filme (traços de personagens, diálogos, posturas dos corpos, etc) foram considerados avatares possíveis e contraditórios dos fragmentos barthesianos.
Para Thiéry, Alexandre só poderia ser considerado “amoroso” no início do filme, em sua relação com Gilberte, amor perdido que permanece emparedada em sua negação e fuga. Ainda de acordo com Thiéry, apenas nesse prólogo Alexandre é apaixonado e lúcido, situação da qual se aproveitarão as duas outras mulheres. A diferença entre Barthes e Eustache se dá justamente na relação de cada um em relação às palavras e ao discurso. Enquanto o narrador barthesiano é salvo pelo prazer e pela volúpia das palavras que apreende e pelas quais ele próprio se recaptura, o personagem eustaquiano ecoa, preso num drama de fala.
Enquanto o segundo lamenta perda que se esgota para compensar, incapaz de absorver uma queima interna menos amorosa do que existencial, o primeiro reage pela ereção do prazer em resposta imperativa, obstinada, aos ideólogos do momento. O escritor ganha uma nova energia dramática desreprimida, enquanto o cineasta já escava sua renúncia e seu túmulo. O que causa alegria num, reivindicando uma suposição obstinada (“é preciso afirmar. É preciso ousar. Ousar amar”), empaca no outro, e os sentimentos continuam sendo tabus.
Durante entrevista publicada postumamente em 1983, Eustache dizia ter começado a filmar A Mãe e a Puta sem saber exatamente como desdobrar o roteiro numa encenação. Citou a sequência 23, que começa quando Alexandre e Marie acabaram de fazer amor. “É o que indica o roteiro, explicou, mas, no filme, isso é encenação: a cama, a vitrola, a garrafa de whisky e de coca-cola, e Léaud que começa a beber” – ele se refere ao fato de que isso não está no roteiro. Mais adiante, o entrevistador pergunta se não se trata de seguir literalmente o que tinha sido escrito. “Para o que foi falado, sim, porque eu não queria mudar os diálogos, responde o cineasta. O propósito era interrogar totalmente a palavra com tudo o que ela carrega de não dramático. Em A Mãe e a Puta, a palavra não serve para nada”. Ela é o enredo, sugeriu o entrevistador. “Sim, mas é muito difusa, responde Eustache. Não foi uma enredo cativante, talvez essa frase até não tenha interesse... Resumindo: existem mil maneiras de se fazer compreender que as pessoas acabaram de fazer amor (...)” (14)

Espírito do Tempo


Acontecem poucos beijos na obra de Eustache, mas
a palavra é citada 128 vezes  em  A Mãe e a Puta (15)

Representando a França, A Mãe e a Puta foi apresentado no Festival de Cannes em 16 de maio de 1973, foi um ano de escândalo. A controvérsia se instala e na sala de projeção a plateia se divide em dois grupos, aqueles que vaiam e aqueles que aplaudem. A imprensa especializada reprova o tamanho do filme e o tédio, a verbosidade e a superficialidade, o narcisismo de uma existência desinteressante pressa naquele mundinho parisiense. A imprensa católica de direita reprova o que chamou de juventude desinteressante que passa o tempo sem fazer nada. O jornal Le Monde apoiou o filme sem reservas, enquanto Télérama era a favor e contra. Enquanto isso, nada se ouvia da parte dos Cahiers du Cinéma em defesa de Eustache, naquela época a revista se engajava numa retórica de extrema esquerda (maoismo chinês) muito afastada do universo de A Mãe e a Puta (16).
Curiosamente, foi do Partido Comunista Francês que veio apoio ao cineasta. Em 19 de junho daquele ano, Albert Cervoni escreve em France Nouvelle fazendo referência ao governo francês colaboracionista durante a ocupação nazista: “A direita fascistizante, a mais nostálgica do marechalismo de Vichy, montou em seu cavalo de batalha: a defesa da ordem moral (...)” (17). O próprio Eustache não se esforça em sair da polêmica. Durante a conferência de imprensa, em 16 de maio, quando um jornalista questionou o tempo muito longo do filme, o cineasta concordou, afirmando que teria cortado uns 48 segundos... Quando outro jornalista disse que contou a palavra “beijo” 128 vezes e o chamou de obcecado, respondeu que obcecado era o jornalista por ter feito tal conta. E concluiu: “é melhor falar seriamente sobre bunda do que não seriamente sobre política” (18).

“(...) É o escândalo que assegura o sucesso de A Mãe e a Puta. E isso é o essencial. Na sequência de sua projeção em Cannes o filme é lançado em Paris, instantaneamente se tornando objeto de um culto e de uma curiosidade que não serão negados mais tarde” (19)

A Vida Como Ela É


A propósito das cenas de amor em A Mãe e a Puta, Bernadette
Lafont (que atua como Marie), refere-se ao pudor da encenação: “Eu
penso que Eustache contém em si um grão de puritanismo” (20)

Marinka Matuszewski ocupa lugar central na gênese de A Mãe e a Puta. Enfermeira, surge na vida de Eustache no início dos anos 1970, quando ele vive com Catherine Garnier, inspirando no cineasta a ideia de um roteiro sobre a relação de um homem com duas mulheres. Eustache começa a provocar encontros e situações entre os três e registrar as conversas. Do real à ficção, Marinka será projetada em Veronika, enfermeira anestesista no hospital de Laennec (hoje desaparecido, mesmo local de trabalho de Marinka), cuja presença Alexandre nota no terraço de um café (21).
O papel de Veronika será interpretado por Françoise Lebrun, cúmplice artística de Eutache e antiga mulher de sua vida – e madrinha do filho dele, Boris. O cineasta vai colocar Marinka no filme também, ela está de branco no Deux Magots (imagens abaixo) quando Alexandre a confunde com Veronika. A mulher responde que não é aquela que ele procura e sai, sendo seguida por Alexandre durante algum tempo. Lebrun, por sua vez, inspirou Gilberte, personagem interpretada por Isabelle Weingarten. Gilberte é um amor proustiano de Alexandre que ele tenta em vão reconquistar. Em 1972, Françoise deixa Eustache que, inspirado pela situação, começa a escrever o roteiro de A Mãe e a Puta – ela já vinha trabalhando como sua assistente de direção desde La Rossière de Pessac (1969) e Le Cochon (1970).
Bernadette Lafont, que interpreta o papel de Marie, tem seu modelo diante dos olhos. Marie é a projeção de Catherine Garnier, que além de viver com o cineasta cuida do vestuário e da maquiagem do elenco. Além disso, o filme está sendo gravado no próprio apartamento dela. Bernadette tinha a impressão de usurpar a identidade daquela que inspirava sua personagem, que ela presente se irritar, e questiona Eustache: “Eu não acho esta situação saudável. Você deve deixar Catherine atuar em seu próprio papel” (22). Mas o cineasta respondeu que aquele papel era dela e que pararia tudo e não faria o filme se ela o recusasse. Durante as filmagens, a eletricidade está no ar: a rival é interpretada por Françoise que, no passado, foi a rival de Catherine, mas encarna outra amante de Eustache, Marinka.
No limite de suas forças emocionais, Bernadette tem uma crise hepática. A única reação de Eustache é dar um jeito de gravar o som do vômito dela no banheiro! Posteriormente, o cineasta vai utilizar a gravação para sonorizar a cena em que Marie tenta se suicidar tomando um vidro de barbitúricos e Alexandre se limita a induzir o vômito. Por outro lado, lembrou Bernadette, Eustache se revela um puritano nas cenas de amor, que são bastante pudicas. Fora de questão filmar corpos nus tentando simular uma relação sexual.

“(...) Mas numa cena longa e angustiante onde [Eustache] me assediava, lutando duro para que eu não caísse na confortável rotina de meus papéis anteriores, ele finalmente me disse que seria ótimo se eu atuasse nua, no movimento, como se estivesse vestida. Senti que, naquele momento, a nudez de Marie daria força à cena e me despi” (23) (imagens abaixo, Marinka Matuszewski em A Mãe e a Puta)


“Vários filmes de Jean Eustache [apontam] um retorno
quase sistemático  (...)  ao passado,  (...)   A Mãe e a Puta, por sua 
vez, é feito na brasa,  na hora,  em estado de extrema urgência:
 encenou  uma  situação  de  amor que está  vivendo (24)

As suspeitas de Bernadette Lafont quanto ao estado de Catherine Garnier se confirmariam de maneira trágica. Segundo Jean-Nöel Picq, que estava lá e acompanhou tudo, “não há dúvida, o filme a matou. Havia um lado exaustivo que não era suportável” (25). Inclusive o suicídio posterior de Eustache teria relação (ou, pelo menos, também) com remorso. Angie David mostra que Catherine saiu exaurida das filmagens de A Mãe e a Puta. Durante anos amou Eustache como Marie amou Alexandre Tendo aceitado tudo, suas amantes, suas crises de ciúme e de violência. Tendo trabalhado como assistente neste filme que conta quase literalmente sua história de amor com ele. Verdadeira anfitriã durante as cenas no apartamento de Marie, que na verdade era a casa dela. Em sua cama, vendo Bernadette Lafont recitando as frases que ela disse para Eustache certo dia e que ele imediatamente transcreveu. Durante a primeira projeção particular do filme em 1973, Catherine tomou barbitúricos. Bernadette conta: 

“Nós estávamos filmando no apartamento dela, rua Vaugirard, ou em sua butique, rua Vavin. Éramos amigas e eu tinha um sentimento de mal-estar. Me sentia um pouco usurpando sua identidade. Ela se comportava comigo de maneira muito educada, mas seus sorrisos não enganavam ninguém. Tinha certeza de que, no fundo, ela disfarçava uma espécie de arrependimento (...)” (26)

Eustache era do tipo que prefere a mãe à filha. Ele havia tido uma relação feliz com Jeanne Delos (com quem teve dois filhos, Patrick e Boris), mais a obrigatoriedade da liberdade sexual daquela época o levou a pedir à Catherine, “a mamãe”, a “amante velha” de trinta anos, que escutava Deep Purple (não está claro que se trata do mesmo disco desta banda que ouvimos várias vezes durante o filme, Concerto for Group and Orchestra, 1969) quando estava com raiva (o que sugere uma releitura destes momentos no filmes), morena e não muito bela, a formar um trio insuportável com Marinka Matuszewski, “a puta”, a verdadeira Veronika. A Mãe e a Puta é dedicado à Catherine, mas o roteiro original o será à Marinka.
Pierre Cottrell, amigo cinéfilo de Eustache que se tornou produtor executivo de A Mãe e a Puta, explicou que a relação de Catherine com o cineasta estava no limite da histeria. Eustache era coberto de queimaduras de cigarro. O pai de Catherine estava para morrer e ela tinha acabado de saber que não poderia mais ter filhos. Cottrell conta: “Dois ou três dias mais tarde [depois daquela primeira projeção particular do filme], um domingo após o meio dia, Jean me disse: tenho certeza de que ela fez uma besteira! Corre pra a casa dela, ela está morta, deixando uma palavra: ‘o filme é sublime, deixe como está’” (27). Depois disso Eustache passou um tempo no hospital psiquiátrico.
Em 1958, como vinte anos de idade, ele cortou os pulsos. Mas o motivo foi, digamos, externo: o objetivo era não servir o exército francês, que naquela época estava morrendo na Argélia. Então, acontece com Catherine. Finalmente, em 1981, talvez também pelo que causou a ela, dispara um tiro no coração (detalhe que poderia dar margem a uma interpretação simbólica). “Difícil então não reler a obra de Eustache à luz (negra) de seu desaparecimento brutal. E de não decodificar os sinais de aviso: Alexandre, seu duplo em A Mãe e a Puta, admite não ter a vocação da vida” (28).

Leia também:



Notas:

1. BAECQUE, Antoine de (Ed.). Le Dictionnaire Eustache. Paris: Éditions Léo Scheer, 2011. P. 237.
2. Idem, pp. 176-9.
3. PHILIPPON, Alain. Jean Eustache. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005. Pp. 33, 114.
4. BAECQUE, A. de. Op. Cit, p. 177.
5. PHILIPPON, A. Op. Cit, pp. 41-2.
6. BAECQUE, A. de. Op. Cit, pp. 43, 115.
7. Idem, p. 251.
8. Ibidem, pp. 227-8.
9. Ibidem, pp. 296-7.
10. PHILIPPON, A. Op. Cit, p. 23.
11. BAECQUE, A. de. Op. Cit, p. 46, 314.
12. SÉMOLUÉ, Jean. Bresson ou o Ato Puro das Metamorfoses. Tradução Lília Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2011. P. 28.
13. BAECQUE, A. de. Op. Cit, pp. 39-40.
14. PHILIPPON, A. Op. Cit, pp. 115-6.
15. BAECQUE, A. de. Op. Cit, p. 34.
16. Idem, pp. 275-7.
17. Ibidem, p. 277.
18. Ibidem.
19. Ibidem.
20. Ibidem, p. 34.
21. Ibidem, pp. 122, 152, 160, 185-6, 314.
22. Ibidem, p. 152.
23. Ibidem.
24. PHILIPPON, A. Op. Cit, pp. 23-4.
25. BAECQUE, A. de. Op. Cit, p. 122.
26. Idem.
27. Ibidem, p. 123.
28. Ibidem, p. 283.

18 de out. de 2018

Os Ciganos de Certo Cinema Europeu


(...) Estou morrendo de inveja vendo como você acaricia seu cão”

Última frase da canção interpretada por La Caíta (Maria del Carmen Salazar) na periferia de alguma cidade
 espanhola,  no  final  de  Caravana Cigana  (direção Tony Gatlif, 1993),   de  autoria do diretor,  um  cigano

Pelos Olhos dos Outros

Existem várias minorias espalhadas pelos países que compõem os Balcãs, mas somente os ciganos (Roma) ganharam visibilidade através do cinema, e são muitos os filmes onde são representados. Para citar apenas alguns títulos, as mulheres ciganas aparecem como heroínas românticas no início do cinema Iugoslavo em longas-metragens como Sofka (direção Radoš Novaković, 1948), Os Amores de Anita (Anikina Vremena, direção Vladimir Pogačić, 1954), Ciganka (Cigana, direção Vojislav Nanović,1953) e Hanka (direção Slavko Vorkapić, 1955). No grego Laterna, Ftoheia kai Filotimo (Realejo, Pobreza e Dignidade, direção Alekos Sakellarios, 1955), mulheres romani (ciganas) realizam uma dança estilizada para os protagonistas viajantes. No campo do documentário, a vida dos ciganos é o tema do macedônio Dae (direção Stole Popov,1979), do grego Stin Akri tis Polis (Na Borda da Cidade, direção Nikos Anagnostopoulos, 1975 [1995?]), Rom (direção Menelaos Karamaghiolis, 1989). Vários documentários foram realizados na Bulgária durante a década de 1990, como Vrabchetata na Choveshkata Rasa (Os Pardais da Raça Humana, 1990), Tsigani ot Vsichki Strani Saedinyavaite se! (Ciganos do Mundo, Unam-se!, 1994), Vassilitsa (O Dia de Vassil, 1995), Za Horata i Mechkite (De Pessoas e Ursos, 1995), Zhivot v Geto (Vida num Gueto, 1999) (1). 
Em 2001, Dina Iordanova enumerou quatro itens que em sua opinião norteiam a pesquisa em torno da representação dos ciganos no cinema dos Balcãs. Em primeiro lugar, os filmes enfatizam o excitamento do encontro com o estranho estilo de vida dos ciganos, sugerindo que tais encontros constituem uma experiência enriquecedora. A seguir, embora a maioria dos filmes tenha sido realizada por cineastas que não ciganos, são elas que definem a autorrepresentação dos ciganos em suas próprias produções. Terceiro, os Roma são apresentados em termos exóticos e normalmente sem demonstrar hostilidade em relação ao estrangeiro. Finalmente, nos Balcãs, em geral o discurso sobre as minorias é rudimentar, especialmente devido a certo esforço da mídia e do contexto político para impedir um questionamento direto das preocupações do passado e do presente em relação às minorias. Segundo Iordanova, a partir de 1989, uma série de fatores influencia direta ou indiretamente a maneira como eles são retratados no cinema: migrações em larga escala, perda de benefícios, desemprego em massa e aumento da criminalidade, uma variedades de medidas discriminatórias, o crescimento do sentimento anti romani, os ataques de skinheads e extermínios, inexistência de nações que defendam este grupo étnico. (imagem abaixo, pôster de Os Amores de Anita, Anikina Vremena, 1954)

O Pária Conveniente

Suposto interesse do cinema
balcânico  nos  ciganos   seria
puramente  egoísta, e  apenas
uma peça conveniente a mais
no interior  dos  mecanismos
de  “identificação  projetiva”
Grande parte os filmes realizados nos países dos Balcãs por não ciganos onde aparecem ciganos apresentam um mecanismo de “identificação projetiva”, uma vez que servem mais para apresentar os próprios não ciganos em termos positivos e apontar e refletir a respeito de sua própria marginalidade – onde povos balcânicos consideram os Balcãs em relação à Europa da mesma forma como os ciganos em relação a eles. Quando ciganos aparecem nos filmes como elementos exóticos, são considerados positivamente. Nessas produções, comportamentos inaceitáveis (batedores de carteira, por exemplo) são justificados em função da impossibilidade (pressão econômica e social) desses grupos encontrarem oportunidades positivas. Da mesma forma, os países balcânicos que se engajam em atividades consideradas inaceitáveis se justificam utilizando o mesmo argumento (ausência de oportunidades no comercio internacional, instabilidade política, embargos).


Assim como os ciganos são vulneráveis ao tratamento violento e cruel, porque não recebem auxílio de uma nação poderosa, os países balcânicos se sentem abandonados pelos poderes dominantes (2).
Em 1998, o antropólogo Marko Živković observou inclusive uma estratégia que seria premeditada, por parte de cineastas iugoslavos (neste caso, os sérvios). Ao desenvolver enredos com ciganos, na verdade, estariam interessados em explorar sua própria condição nacional difícil em relação ao contexto europeu mais amplo. Isso porque, explicou Živković, os ciganos são párias exemplares, banidos, proscritos, o fundo do poço das hierarquias internas por toda a Europa. Assim, os Balcãs seriam os párias da Europa. Porque um urbanóide de Paris, pergunta Živković, estaria interessado nos problemas cotidianos de um urbanóide de Belgrado? Barbarismo, violência e exotismo cigano são muito mais sexy. Ainda segundo Živković, para a periferia isso pode resultar em benefícios materiais e imateriais, desde o aumento da receita com o turismo até a Palma de Ouro no Festival de Cannes – aqui o antropólogo provavelmente se refira ao caso de Underground (1995), do bósnio-sérvio Emir Kusturica. (imagem abaixo, pôster de Ciganka, Cigana, 1953)


Na  Europa  Ocidental, 
a representação  de  ciganos
 em filmes também segue clichê
do exótico avesso  à  regra social
e  à  lei  fora  de  seu grupo, o que
denota  a  amnésia  cultural  do
Ocidente  em  relação  aqueles
que  mantém  fora  de  suas
leis e ordem econômica (3)


Antes de qualquer coisa, é preciso não perder de vista neste debate que, na verdade, cineastas como Kusturica foram atacados durante a década de 1990, acusados de tentar humanizar países que promoveram massacres nos Balcãs (como os sérvios). O antropólogo Mattijs van de Port vai além da identificação projetiva entre sérvios e ciganos, encontrando elementos deste fenômeno também na própria vida cotidiana e na literatura dos primeiros. Para van de Port, a identificação projetiva aqui consiste no fato de que os ciganos representam o que os sérvios são, embora não lhes seja permitido ser... Em sua opinião, esse interesse nos ciganos é puro egoísmo. 


“Não se deve considerar que os sérvios estão interessados nos próprios ciganos. Quando derramaram uma lágrima diante do lamentável destino dos ciganos no filme de Kusturica, quando cantam tempestuosamente uma estrofe de uma canção cigana sentimental, quando refletem a respeito de um poema cigano de Glisić ou Dretar, eles se encontram em contato com o conhecimento social implícito para o qual a figura do cigano se tornou um repositório” (4)
Com Gata Preta, Gato Branco (Crna Mačka, Beli Mačor, 1998), Kusturica queria realizar um filme apolítico, mas acaba fazendo uma declaração política em relação ao estado de coisas  nos Balcãs da época (um bandido cujas atitudes mandonas são odiadas pela família inteira se torna alvo de uma piada e acaba caindo na privada). Iordanova lembra que às vezes os paralelos políticos são explícitos. É o caso do macedônio Stole Popov, ele admitiu que ao focalizar nos ciganos em Gypsy Magic (1997) sua real intenção foi ilustrar a condição de incerteza experimentada por seu país no início dos anos 1990, quando, após precipitadamente declarar sua independência, mergulha num período de transição para o qual não estava preparado. Chernata Lyastovitza (Andorinha Preta, 1996), do búlgaro Georgi Dyulgerov é outro desses filmes ciganos auto reflexivos, abordando todos os problemas da Bulgária contemporânea (aumento da violência e da corrupção, declínio da economia e isolamento internacional). (imagem abaixo, pôster de Hanka, 1955)


Boa  parte  dos filmes  de  cineastas
dos  Balcãs  que  mostram   ciganos
não se interessam por  eles,  apenas
os utilizam para falar de si mesmos


Iordanova admite que o interesse do cinema iugoslavo pelos ciganos levou à realização de filmes memoráveis, como Skupljači Perja (Ciganos Felizes, conhecido também como Até Encontrei Ciganos Felizes, direção Aleksandar Petrović, 1967), Quem Está Cantando Aí? (Ko to Tamo Peva, direção Slobodan Šijan, 1980), Anđeo Čuvar (Anjo Guardião, direção Goran Paskaljević, 1987) e Vida Cigana (Dom za Vesanje, direção Emir Kusturica, 1988). Todos eles, Iordanova insistiu, tratam a herança Roma com respeito e possuem ótimas trilhas musicais, constituem representações etnográficas autênticas e realistas, com a idealização e estilização reduzidas ao mínimo. O problema é que seu próprio interesse nos ciganos é definido e impulsionado por necessidades de identificação projetiva.
Embora cada vez mais os próprios ciganos estejam estudando sua própria história e representação (como no trabalho do antropólogo búlgaro Asen Balikci, que entregou câmeras de vídeo aos ciganos, que realizaram um trabalho etnográfico excelente em Roma Portraits, 1995-8, mas pouco visto fora do círculo acadêmico), no cinema isso ainda não forma um padrão. A exceção citada por Iordanova é Tony Gatlif, cineasta francês de origem argelina-cigana cujos trabalhos se tornaram conhecidos nos anos 1990, sendo aceitos como as representações definitivas dos Roma. Inicialmente focado nos ciganos franceses, com Les Princes (Os Príncipes, 1983), expande o espectro com Caravana Cigana (Latcho Drom, 1993), com música e ciganos da França, Espanha, Turquia, Romênia, Rajastão, até 1997, quando os ciganos dos Balcãs são focados em O Estrangeiro Louco (Gadjo Dilo), com os ciganos da Romênia. De qualquer forma, observa Iordanova, neste último caso o protagonista ainda não é um cigano, ao contrário d de filmes realizados por Emir Kusturica e Aleksandar Petrović, onde a narrativa é deixada sob o controle de protagonistas ciganos.

Enquanto isso, no Planeta Kusturica...


(...) Quando fiz Vida Cigana me perguntei como fazem
os ciganos para viver no meio dessa loucura recusando o mundo industrial. Provavelmente graças  à  música (...)

Emir Kusturica

 O cineasta comentava durante entrevista que os Iugoslavos não desenvolveram o individualismo 
porque  nunca  conheceram  a  civilização  industrial.  Por  outro  lado,  foram  capturados,  para  o
melhor e o pior,  pelo  coletivismo, pelo  espírito  coletivo  ancorado  em  sentimentos  tribais  (5)

Durante as filmagens de Vida Cigana, Kusturica tentou posicionar uma velha cigana contra a parede de uma casa cigana com uma arquitetura que o cineasta considerava muito bela. A luz vinha da janela, e havia reflexos da chuva no rosto dela e na parede. Ele queria que a cigana agisse naturalmente, que falasse e se movesse, mas sem sair do quadro desse plano muito elaborado. Nesse momento, Kusturica compreendeu que por toda sua vida tentou realizar uma conexão que naquele momento admitiu impossível, entre a liberdade de movimento do Neorrealismo e a potência de evocação do quadro no Realismo Poético (6). Na verdade, ao dizer isso, Kusturica estava respondendo a um entrevistador, que perguntou se neste filme ele estaria levando um pouco os atores para o registro de Michel Simon (no papel de père Jules), entre brincadeira (farsa) e tragédia, em O Atalante (L'Atalante, direção Jean Vigo, 1934). É fato que Kusturica tem este filme francês em alta conta, onde para ele se pode encontrar o equilíbrio mais perfeito entre o diálogo e a ação. Mas é o caso de perguntar se uma cigana seria ela mesma se estivesse preocupada em manter-se dentro do quadro. Talvez, o cineasta não estivesse pensando nela:

“Representar o isolamento Roma em relação à corrente principal da sociedade deu aos cineastas uma chance de abordar simultaneamente uma ampla gama de instâncias de marginalização – das experiências pessoais de ostracismo à declarações gerais a respeito de nações problemáticas em transição. Emir Kusturica, por exemplo, que possui em seu crédito dois filmes focados exclusivamente nos Roma (Vida Cigana e Gata Preta, Gato Branco), se comparou a um cigano em algumas entrevistas que deu em 1999 e 2000, referindo-se à continuidade de sua própria migração e relações problemáticas ” (7)



No final de Underground, a música cigana  transporta
 todos os habitantes da ilha para além de suas querelas 

Serge Grünberg (8)
Noutra situação menos sutil envolvendo ciganos durante as filmagens de Underground (conhecido também como Underground - Mentiras de Guerra, 1995) o cineasta contou a respeito da dificuldade em novembro de 1993 para trazer os músicos desta etnia à Praga, na atual Chéquia (ex-Tchecoslováquia, ainda República Tcheca naquele ano). Aqueles ciganos nunca haviam atravessado a fronteira entre a Iugoslávia e a Hungria. Ciganos que são, nunca tiveram passaportes, e os guardas pediram mil marcos alemães por cada um deles. Kusturica pagou porque a ausência deles comprometeria seriamente as filmagens. Então o cineasta desabafou: “(...) Definitivamente, seja qual for o país do leste [da Europa], os párias são sempre os mesmos (...)” (9). A seguir, Kusturica começa a ter problemas com alguns atores ciganos, que pedem revisão do contrato. Além disso, devido à ocorrência de duas mortes, durante as filmagens de Underground correu o rumor de uma maldição e alguns ciganos foram embora. O cineasta ressaltou que sua experiência em Vida Cigana ensinou que os ciganos deveriam ser pagos no final das gravações, devido à tendência de pegar o dinheiro e sumir.



“Era  natural  utilizar a musica cigana,  já  que  o  filme  fala
da história de um país onde não existe muita música. Na Iugoslávia, 
 a única música verdadeiramente autêntica é a dos ciganos” 

Goran Bregović, a respeito da música que compôs para Underground (10)

Durante as gravações de Underground, a cantina era uma verdadeira corte dos milagres [referência ao bairro da Paris do século XVII onde os mendigos sumiam da noite para o dia]. Os ciganos, que não eram pagos por Kusturica, não tinham outra coisa a fazer senão assombrar o local. Quando Kusturica finalmente consegue resolver os problemas com a orquestra de ciganos, que passará de cinco para nove membros, recebendo o mesmo salário, o pai de um pequeno virtuose violinista que o cineasta mandou trazer de Viena (basicamente só para aparece, mas que custava dois mil dólares por dia) disse que não queria que o filho aparecesse na imagem junto com os ciganos porque isso poderia prejudicar a carreira do menino (11). 

Enquanto isso, na Hungria...

Curiosamente, não  existe  um  equivalente
dos filmes com ciganos  de  Emir Kusturica.
A  marginalização deles no cinema húngaro
 garante que sequer  apareçam  como  vilões, 
mulheres sedutoras ou feiticeiras, como em
alguns  filmes  ingleses e norte-americanos


Na maioria dos filmes ocidentais dos anos 1930 e 1940 os ciganos da Europa Oriental são encaixados no estereótipo das figuras que vivem próximo ao demoníaco, poderíamos citar O Lobisomem (The Wolf Man, 1941), do ciclo de filmes de horror da Universal, o famoso estúdio estadunidense, que representa o tratamento hollywoodiano do “exótico europeu”. Tudo isso se encaixava perfeitamente ao nível elevado de ódio, medo e insulto direcionado aos ciganos na própria Europa oriental em geral, e na Hungria, em particular (12).


Durante a Segunda Guerra Mundial, esse ódio se manifestou, e dos supostos 500 mil executados pelos nazistas, aproximadamente 60 mil eram húngaros – muitos foram usados como cobaias em experimentos médicos num campo de concentração localizado na Alsácia, tomada da França, Natzweiler-Struthof (13). O fato de o país entrar na guerra do lado de Hitler apenas facilitou a perpetração do extermínio. Com o fim do conflito a situação não melhorou muito, já que o estilo de vida livre dos ciganos não se enquadrava no Estado comunista húngaro centralizado e no desejo stalinista de planejamento e controle de cada faceta da sociedade, sem mencionar que a adoção do trabalho fabril os privou de seu artesanato tradicional e subsistência. Enquanto isso, um pouco mais ao sul, em 1950 a Bulgária expulsa 140 mil turcos e ciganos.

De fato, no panorama do rearranjo étnico dos pós-guerra na Europa, os ciganos nem tinham muito para onde ir, pois eram tão malvistos quanto os judeus em quase toda parte (14). Aos ciganos eram reservados os piores serviços e os mais baixos salários, em locais muitas vezes apenas um pouco mais do que guetos – um dos resultados foi justamente o abandono do estilo de vida nômade. Se não eram simplesmente exterminados como durante a guerra, agora toda sua cultura, arte e linguagem lhes era negada, restando pouco para preservar sua autoestima e identidade. A queda do Comunismo em 1989 não melhorou a situação, desemprego, baixa escolaridade, assistência de saúde deficiente, moradias ruins e extrema pobreza demonstram que a Hungria não assimilou os ciganos – houve um aumento da animosidade em relação aos ciganos, particularmente na Chéquia (então Tchecoslováquia), Polônia e Hungria; na Bulgária, revoltas eclodiram no outono de 2011 após uma série de demonstrações racistas contra os ciganos (15).



O Cigano (1941), é um dos poucos filmes húngaros a tratar
os  Roma  como  personagens  centrais  e  importantes

De acordo com John Cunningham, não existe na Hungria um equivalente dos filmes com ciganos como na obra de Emir Kusturica – pelo menos até 2004, quando o estudioso emitiu esta opinião. Em muitos filmes húngaros anteriores à Segunda Guerra Mundial, quando eventualmente eles aparecem, estão em bandas de música para oferecer certo sabor folclórico. De fato, a música é uma das atividades que dá aos ciganos algum status ou respeito entre a comunidade daquele país – tais músicos ainda são requisitados para casamentos e celebrações, especialmente em áreas rurais. Isso acontece inclusive no interior da comunidade cigana, onde os músicos detém o status mais elevado – mais até do que médicos, que no começo dos anos 2000 contavam apenas quatro no país. Adaptação do romance de Alfréd Deésy, O Cigano (A Cigány, 1941) é um dos poucos filmes a tratar os ciganos como personagens centrais e importantes. Cunningham explica que a marginalização dos ciganos no cinema húngaro é tão grande que eles nem aparecem nos cartazes como vilões, mulheres sedutoras e feiticeiras, como é o caso, digamos, em alguns filmes ingleses e norte-americanos.



A  vida  dos  ciganos não é bem representada em filmes de ficção
húngaros. Exceção controversa é Assassinatos de Crianças, 1993

O resultado de todo esse ostracismo foi a produção de documentários que mostram os costumes, a vida e os problemas enfrentados pelos ciganos. Cunningham cita Cigányok (Ciganos, direção Sándor Sára, 1963), Földi Paradicsom (Paraíso Terrestre, direção Pál Schiffer, 1983), Zöld az erdő, Zöld a hegy is, a Szerencse jön is megy is... (A Floresta é Verde, a Montanha é Verde, a Sorte Vem e Vai, direção Miklós Jancsó e József Böjte, 1996), cujo título vem de uma música cigana que fala de seu destino, e Sírsz Magyarországért, Sírjál! (Você Está Chorando pela Hungria, Chore Então! I-II, direção Béla Szobolits, 2002; erroneamente, o autor confunde o diretor com Béla Szabó). A controvérsia envolve este último, que conta a história de um grupo de ciganos da cidade de Zámoly (oeste de Budapest) que tenta levar à corte de Direitos Humanos, em Estrasburgo, uma denúncia de perseguição sofrida por eles na Hungria e solicitar asilo na França.
Cunningham segue explicando que a vida dos ciganos húngaros não é bem representada em filmes de ficção. Uma exceção controversa é Gyerekgyilkosságok (Assassinatos de Crianças, direção Ildikó Szabó, 1993) – Zsolt tem doze anos e conhece Juli, uma garota cigana grávida que vive num vagão abandonado. Quando Juli sofre um aborto espontâneo e Zsolt a ajuda a descartar o cadáver do bebê jogando-o no rio Danúbio, eles são vistos por uma das crianças locais que havia ridicularizado Zsolt por sua amizade com ela, a polícia é informada. Juli é levada para um hospital da prisão onde se enforca. Zsolt silenciosamente se vinga do informante. Simbolicamente, os assassinatos de crianças a que o título do filme se refere são as muitas maneiras pelas quais as almas das crianças são devastadas pela negligência, indelicadeza e crueldade. Cunningham também sugere Paramicha, vagy Glonci, az emlékező (Paramicha, direção Júlia Szederkényi, 1994), onde Glonci é um cigano velho submetido a uma experiência que o permite visualizar suas memórias. Ele foge, mas uma equipe de documentário o encontra. Glonci será submetido a uma cirurgia no cérebro da qual ele volta em estado semivegetativo. Cunningham resume o panorama em 2004:

“Até onde eu saiba, nenhum membro da comunidade cigana até o momento está em condições de realizar seus próprios filmes a respeito de si mesmos; ciganos inevitavelmente foram objeto de filmes feitos por não ciganos. Mas existem pequenos sinais de uma mudança geral, em anos recentes uma Escola Cigana foi inalgurada em Pécs, espacializada no uso da cultura cigana em seus métodos de ensino, e o primeiro personagem apareceu numa novela da televisão húngara. na esfera política mais ampla, os primeiros passos foram dados na organização de ciganos politicamente. Aonde isso vai levar, ninguém adivinha, mas esses são pequenos sinais de que reavaliação e reflexão estão acontecendo, pelo menos em alguns círculos. Que papel o cinema desempenhará nisso é, ainda, incerto” (16)




Leia também:
O Czar e a Sétima Arte: Cinema Russo Antes da Revolução
Este Corpo Não Te Pertence: A Mulher Fascista

Notas:

1. IORDANOVA, Dina. Cinema of Flames. Balkan Film, Culture and the Media. London: British Film Institute, 2001. Pp. 213-4, 229.
2. Idem, pp. 215-226.
3. Ibidem, pp. 218.
4. Ibidem, pp. 217-8.
5. KUSTURICA, Emir; GRÜNBERG, Serge. Il Était une fois... Underground. Paris: Cahiers du Cinéma/CiBY2000, 1995. P. 21.
6. Idem, p. 31.
7. Ibidem, pp. 218-9.
8. Ibidem, p. 106.
9. Ibidem, p. 70.
10. Ibidem, p. 85.
11. Ibidem, pp. 70-1.
12. CUNNINGHAM, John. Hungarian Cinema. From Coffe House to Multiplex. London/New York: Wallflower Press, 2004. Pp. 40, 180-2, 230n15/n17.
13. LOWE, Keith. Continente Selvagem. O Caos na Europa Depois da Segunda Guerra Mundial. Tradução Rachel Botelho e Paulo Schiller. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. P. 103.
14. Idem, pp. 283-4.
15. Ibidem, p. 410.
16. CUNNINGHAM, J. OP. Cit., p. 182.

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