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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de out. de 2015

O Silêncio de Marguerite Duras


“Quando faço cinema (...) estou numa
 relação  de  morte   com  o  cinema” 

Marguerite Duras

Lugares, Mulheres, Corpos

Provavelmente mais lembrada pela maioria do público por seus muitos livros, a escritora francesa Marguerite Duras (pseudônimo de Marguerite Donnadieu, 1914–1996) também conta em seu currículo com dois roteiros para cinema e a direção de nada menos que quatorze longas-metragens e quatro curtas, realizados entre 1967 e 1985 – ela atua em pelo menos um e sua voz é ouvida como narradora em oito deles. Sharon Willis enfatizou que qualquer análise mais aprofundada da obra de Duras terá dificuldade para classificar e encaixar os títulos em convenções genéricas. Filmes sem narração (A Mulher do Ganges, Nathalie Granger), romances compostos de figuras visuais (O Deslumbramento de Lol. V. Stein, India Song, O Homem Atlântico), roteiros de filmes que podem ser lidos como romances (India Song, Hiroshima Meu Amor, Aurelia Steiner), teatro e cinema nos quais os atores leem ao invés de atuar em seus papeis (O Caminhão, A Doença da Morte). O alcance de Duras, explica Willis, sem dúvida deriva em parte dessa posição ente romances, teatro e cinema, como se nenhum deles pudesse comunicar uma versão final de uma história. Dessa forma, o trabalho de Duras ocupa vários campos ao mesmo tempo, promovendo uma série de trocas entre eles - inclusive pelo fato de muitas vezes produzir encarnações narrativas, teatrais e cinematográficas dos mesmos temas e cenas. De fato, considerada em seu conjunto, a obra de Duras parece baseada em fragmentação e dispersão. Contudo, para Willis não se trata de uma abordagem pós-moderna direcionada ao fragmento, ao despedaçamento da totalidade, à repetição em série de um conjunto mínimo de elementos. Os textos de Duras, aqui Willis se refere especificamente à produção entre 1960 e a década de 1980, se assemelham mais a uma longa narrativa do que a uma série (1).

“[Seus textos] constituem uma espécie de Em Busca do Tempo Pedido, substituindo a dispersão pela recordação. É esta característica que estabelece a dificuldade de acesso de Duras. Começando com os textos de Lol V. Stein - O Deslumbramento de Lol. V. Stein, O Vice-Cônsul, O Amor e India Song e A Mulher do Ganges – é difícil ler um texto de Duras sem a ajuda dos outros. Ler um é ser apanhado num ciclo de repetição e saber disso, de modo que o leitor segue um conjunto de revezamentos através de outros textos numa busca que se assemelha à própria repetição obsessiva do texto. Embora seja possível ler um texto isoladamente, só se pode sentir a força do mecanismo narrativo, ou estratégia, através de um retorno, um regresso que se desenvolve após várias leituras, produzindo a sensação de que o que alguém está lendo já ‘foi lido’. Dessa maneira, os textos de Duras são exemplo de uma resistência ao consumo e ao descartável. Ao invés disso, eles demandam releituras perpétuas; não consolidam uma mensagem singular que, uma vez recebida, é finalizada no ato do consumo. Esses não são livros para consumir e jogar fora (...)” (2) (imagem acima, sequência inicial de India Song; abaixo, Hiroshima Meu Amor)


“No mínimo, as relações entre cinema e literatura são obscuras
e  ruins.  Tudo  que  se  pode  dizer  é  que  os  literatos  desprezam
  estranhamente o cinema.  E  as  pessoas  do  cinema,  estranhamente, 
 sofrem    de    um    sentimento    de    inferioridade.   A  singularidade
de  Hiroshima é que  o encontro  Marguerite Duras-Alain Resnais
é     uma     exceção     à     regra     que     acabo     de     enunciar”

Pierre Kast,
Cahiers du Cinéma, nº 97, julho 1959 (3)

A explicação de Willis pode lançar alguma luz nos intermináveis entrelaçamentos das imagens, das vozes e dos corpos que povoam os filmes de Duras. Na área cinematográfica, talvez seja mais lembrada por seu primeiro roteiro, encomendado pelo cineasta Alain Resnais (1922–2014) para seu primeiro longa-metragem, Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, 1959). Números invejáveis para alguém que chegou a afirmar na época do lançamento do filme que não tinha a mínima intenção de fazer carreira como roteirista, desconhecendo tudo a respeito de como fazer cinema antes da encomenda de Resnais (4). De fato, a própria escritora admitiu que Hiroshima é um filme bastante “tagarela”, se comprado a outras de suas realizações, como por exemplo Nathalie Granger (1973) e India Song (1975). Na verdade, apesar da voz onipresente da protagonista de Hiroshima, Marguerite Duras insistirá em definir as mulheres como habitantes do silêncio, em oposição aos homens, que segundo ela enlouquecem quando não podem falar e/ou nomear as coisas. Além disso, continua a escritora, ao contrário dos homens, as mulheres habitam os lugares. Enfim, enquanto os homens falam as mulheres se calam (Duras pensava nessa característica como algo atávico, uma herança ancestral), e os lugares também estão em silêncio. Segundo ela mesma, todas as mulheres de seus livros moram em sua casa, embora indique que Anne-Marie Stretter (em India Song) só poderia ser habitante daquele palacete da embaixada (5).

“Em meu cinema, certamente, não faço nenhum movimento. Em meus livros tampouco, existem poucos movimentos de estilo, eu permaneço no mesmo lugar. Eu escrevo e filmo no mesmo lugar. Quando mudo de lugar, é a mesma coisa. Eu posso explicar em relação ao cinema; existem muitas coisas que posso explicar para o cinema, mas não para a escritura, entende? E... isso permanece muito obscuro para mim, a escritura [a escritora teceu estas considerações em 1976]. No cinema, como tenho uma espécie de desgosto pelo cinema que tem sido feito, enfim, pela maior parte do cinema que tem sido realizado; eu quero retomar o cinema a partir do zero, numa gramática muito primitiva... Muito simples, quase primária: não se mover, começar de novo. De qualquer modo, o cinema que faço, eu o realizo no mesmo lugar de meus livros. É o que chamo de lugar da paixão. Lá onde somos surdos e mudos. Enfim, procuro estar aí o mais possível. Enquanto que o cinema feito para agradar, para divertir, o cinema... como chamar, eu o chamo de cinema do sábado, ou de cinema da sociedade de consumo, ele é feito no lugar do espectador e seguindo receitas muito precisas, para agradar, para segurar o espectador durante o tempo do espetáculo. Uma vez que o espetáculo termina, esse cinema não deixa nada, nada. É um cinema que desaparece imediatamente após terminar. E eu tenho a impressão que o meu começa no dia seguinte, como uma leitura” (6) (imagens abaixo, A Mulher do Ganges)


“Figura  respeitada  há muito tempo  na cena literária
francesa,     Marguerite   Duras     escapa    a    qualquer
 tentativa para situar seu trabalho numa área fixa   (...)” 

Sharon Willis (7)

Para a escritora, aquele prédio de India Song representa o fim do mundo (o colonialismo moribundo e a Guerra Fria viva durante as décadas de 1960 e 1970). Ainda de acordo com Duras, a morte está por toda parte neste filme, e Anne-Marie só se suicidaria (a escritora não tem certeza se foi o que ocorreu) no mar indiano. Da mesma forma, O Deslumbramento de Lol V. Steiner (assim como O Amor) foi escrito num grande prédio antigo a beira mar, sugerindo que a areia, mais do que a praia, seja o lugar daquela cidade (S. Thala, que só depois a escritora entendeu que o nome correto era Thalassa). Para Duras, a areia, mais do que o mar, parece ser esse lugar sem nome, sem ninguém – para ela, a memória está nos lugares. Talvez faça sentido saber que Duras detesta o estado reflexivo, ela vai mais para fora de si do que para dentro – posteriormente, chegou à conclusão de que tudo viesse de si mesma, de seu interior; mas “é preciso transbordar”, concluiu. Por outro lado, ainda que se diga que ela é todas as suas personagens femininas, ela afirmou não conhecer Lol V. Stein (aquela que não tem memória nem esquecimento), não conseguiu ver o rosto dela, apenas o que a personagem olha – Anne-Marie Stretter é outra personagem que Duras afirmou não conhecer (8). Em seus livros, Duras sempre esteve à beira mar, do qual sempre teve medo. Talvez por esse motivo a maior importância dada à areia, considerada o tempo, o todo (embora Duras também diga isso do mar) – ela explicou que Anne-Marie Stretter, seja como figura textual ou cinematográfica, cuja morte é mais claramente indicada em India Song (o filme) do que em O Vice-Cônsul (o livro), ao deixar esse mundo voltará a se reunir com o Oceano Índico, como a uma espécie de volta à matriz (9). A escritora chega a utilizar a areia como metáfora para encontrar seus filmes e o mar como páginas repletas de textos:

A Mulher do Ganges é um filme que contou muito para mim tremendamente. Talvez mais do que os outros, talvez ainda mais do que India Song, porque creio que India Song estivesse para ser encontrado potencialmente em A Mulher do Ganges [como ainda não foi lançado no Brasil, o filme A Mulher do Ganges deveria, aqui, ser referido no original francês enquanto o romance homônimo, já lançado, referido como A Mulher do Ganges; para evitar uma confusão desnecessária, tratarei os dois por A Mulher do Ganges; adotarei o mesmo procedimento para todos os outros títulos homônimos]. Quer dizer, estava em A Mulher do Ganges, mas era preciso desareá-lo, exatamente, retirá-lo da areia. Mas ele estava lá. Enquanto que A Mulher do Ganges... acredito que não existisse nada anteriormente; enfim, em mim, você entende. As vezes tenho a impressão de que comecei a escrever com isso, com O Deslumbramento de Lol V. Steiner, com O Amor e A Mulher do Ganges. Mais do que a escritura, a amplitude da escritura foi conquistada com esse filme. Que Lol V. Stein foi um momento de escrita, O Amor também, mas com A Mulher do Ganges tudo se misturou, como se eu tivesse voltado no tempo, nesse limite anterior aos livros. Eu estava louca quando montei A Mulher do Ganges. Quando encontrei as vozes de A Mulher do Ganges, estava louca de angústia. Mas é aqui é um lugar da angústia, é talvez meu lugar. É também como se tudo estivesse escrito, como se A Mulher do Ganges formasse um texto, mas que era preciso descriptografar. Enquanto eles caminham na beira do mar, está escrito, está escrito, mas eu, captei apenas uma parte, entende? Quando escrevi verdadeiramente A Mulher do Ganges ou O Amor. Enquanto que, no filme, está totalmente escrito, mesmo os momentos de perambulação silenciosa são momentos escritos, talvez não legíveis, mas escritos. Ao mesmo tempo que, na escritura, a rigor, passa apenas uma parte daquele escrito. Como se não fosse possível escrever completamente senão ultrapassando, certamente, a linguagem, ou a escritura propriamente dita. Para mim, o mar está completamente escrito. É como as páginas, você percebe, páginas cheias; vazias por força de estarem repletas, ilegíveis por força de estarem escritas, de estarem cheias de escritos. Em suma, sim, isso coloca a questão do cinema, da imagem. Somos sempre esmagados pelo escrito, pela linguagem. Quando traduzimos [em texto, não é possível dar conta do todo]. Enquanto que na imagem você escreve completamente, todo o espaço filmado está escrito, é cem vezes o espaço do livro. Mas eu descobri isso apenas com A Mulher do Ganges, não com os outros filmes” (10) (imagens abaixo, Les Mains Négatives, 1978)


Para Michel Marie, as experiências de Marguerite Duras
no cinema são fruto da nova abordagem da Nouvelle Vague 
em  relação  à  adaptação literária  no  cinema francês (11)

Em 1960 e 1961 Marguerite Duras escreve roteiros para Duas Almas em Suplício (Moderato Cantabile, direção Peter Brook) e Uma Tão Longa Ausência (Une Aussi Longue Absence, direção Henri Colpi) em parceria com Gérard Jarlot, filmes que para Noël Simsolo serão erroneamente considerados como produto da Nouvelle Vague, já que apenas em 1969 a escritora pode ter aderido aos métodos desse movimento para realizar Destruir, disse ela. Simsolo ainda incluiria sob esta influência Jaune le Soleil (1971) e Nathalie Granger. Duras recusa toda dramaturgia tradicional e inventa um filme-texto, onde a palavra e o silêncio bastam para despertar o imaginário do espectador – India Song, cujo livro, lançado dois anos antes do filme, carrega o subtítulo teatro/filme/texto. Ela explorou a via cinematográfica até 1985, quando abandonou este campo (12). O cineasta francês Bertrand Tavernier acha que talvez se possa considerar Duras uma herdeira da Nouvelle Vague. Contudo, insistiu que certas pesquisas existentes nos livros dela têm origem literária (13). Jacques Aumont destacou que Duras incorporou integralmente a noção negativa do termo “espetáculo” no livro de Guy Debord (A Sociedade do Espetáculo, 1967) e recusou render-se às convenções do cinema narrativo industrial e não cogitava em manipular os lugares filmados para evitar transformá-los em cenários fabricados. O corpo dos atores e atrizes recebe o mesmo tratamento: sem maquiagem e sem truques, como o corpo nu da atriz Delphine Seyrig no papel de Anne-Marie Stretter em India Song, que deve ser mostrado, como Duras declarou em 1987, “com seu cansaço e seu suor” (14).

“O desempenho do ator é um caso bem diferente; ele não tem o caráter natural de seu corpo e, portanto, deve ser, ao contrário, estritamente vigiado e até refreado pelo cineasta. Para Duras, é essencial impedir a fusão ou a confusão entre o ator, o papel, o personagem, a pessoa e a ideia de pessoa; deve-se desprender o ator de si mesmo, de uma aderência demasiado grande à sua condição pró-fílmica. Por exemplo, em India Song, as vozes em off destinam-se a opor-se ao ‘realismo inevitável do direto e ao logro que isso representa’. (...) Essa técnica de exteriorização, de dissociação de si mesmo, infligida ao ator, corresponde a uma necessidade: preservar o texto. Mais amplamente, para Duras, o texto deve ser protegido do cinema, porque este o mata em sua capacidade viva de produzir ou suscitar imagens: ‘o cinema detém o texto’, é seu encerramento. Ora, existem mais imagens no escrito do que no filmado, porque ‘as palavras têm um poder de proliferação infinito (...), a imagem está ali, ela tem uma forma. A palavra não tem. A imagem não pode ser dita, descrita, ela só está onde está’. Em suma, a imagem detém o imaginário, ao passo que ‘uma palavra contém mil imagens’. O problema do cinema é sua dificuldade de designar, ou deixar existir, o lugar do sentido. O cinema está perto demais do referente, e o trabalho do sentido (cuja encarnação mais perfeita é a escrita) deve ser sempre nele provocado de maneira desviada e voluntarista. Por isso, definitivamente, o sentido sempre deve proceder não da imagem, não dos atores, mas de um texto escrito. A imagem é ‘trazida pela escrita; primeiro ela é dita na escrita. (...) [O cinema de Duras] permanece mais envolvido em sua origem verbal, escrita, e sua preocupação essencial é preservar um lugar do sentido ideal, que não está nem na realidade filmada nem, ainda menos, nas imagens visuais, mas no verbo e em seu potencial (potencial de imagem incluída). Um filme é verbo, e apenas por aí ele se tornará imagem (daí o papel primordial da escuta de uma palavra em seus filmes). Trata-se, portanto, de rejeitar o cinema não apenas como espetáculo, mas como barreira a esse potencial do verbo; deve-se, assim, limitar ‘o cinema’ ao mínimo necessário: ‘Quando faço cinema (...) estou em uma relação de assassinato com o cinema’” (15) (as próximas onze imagens em preto e branco pertencem a Nathalie Granger, 1972)

O Silêncio em Nathalie Granger 


(...) O espectador comum permaneceu na concepção infantil que faz
do  cinema  uma  distração    (no  sentido pascaliano do esquecimento
da     solidão    essencial),     [...]     com    esse   espectador    majoritário
não  existe  encontro possível.  Entre  ‘eles e nós’,  há o deserto (...) (16)

Foi contra esse espectador majoritário que
Marguerite   Duras   realizou   seus   filmes

Para aqueles dentre nós enredados definitivamente na teia mortal do vococentrismo, pode ser uma experiência muito difícil assistir a esse filme, pois incomodará com o fato de não serem levados pela mão até o porto seguro do sentido, como acontece comumente com aqueles roteiros “objetivos” – o que, para alguns, parece constituir a única definição “normal” do que seja um roteiro. Madeleine Borgomano nos deu algumas pistas, dentre as quais se destacam a violência, a música e os espelhos (borgomano). Além da emissão de rádio que fala da violência perpetrada por crianças assassinas (que são presas no final), Borgomano ressalta o comportamento de Nathalie (que foi rejeitada pela escola e, portanto, pela sociedade) em relação ao carro de bebê e sua impaciência com o gato que rejeita seu carinho. Contudo, a menina parece aceitar o constrangimento imposto pela professora de música, que não a deixa fazer o que deseja – o tema musical do filme, na verdade, se reduz a um exercício de aprendizagem do instrumento, que não vai além de sete notas. Ainda de acordo com Borgomano, no que diz respeito à conduta de Isabelle, a mãe de Nathalie, existe na obra de Duras uma obsessão (com maternidade, perda ou abandono, e a morte) condensada na figura recorrente de uma mendiga andarilha, constituindo o elemento chave de todo o projeto da escritora em torno de seus personagens femininos (17) – enquanto a mendiga perambula pela floresta, por exemplo, Isabelle passeia pelo jardim/floresta da casa. Para Isabelle Granger (sempre vestida de preto ou uma cor escura), a vida de sua filha só poderia ser salva pela música – Borgomano observa aqui uma citação da frase em Moderato Cantabile (cuja adaptação para cinema se chamou Duas Almas em Suplício, no Brasil), romance que Duras publicou em 1958: “a música, meu amor”. 


Enquanto o “cinema tradicional” utiliza a trilha sonora
 como uma bússola/arma que direciona as emoções do espectador, 
em   Nathalie Granger  ouvimos  apenas  as  sete  notas   musicais
de   um   exercício básico   para    iniciantes   em   piano

A câmera de Duras passeia por várias partituras espalhadas pelo chão, como a da chacona de Johan Sebastian Bach, que agradava muito a Duras – para ela, Bach teria conseguido combinar a capacidade de ordenação da música e a possibilidade de estar aberto ao que ultrapasse essa ordem. Quando Isabelle senta-se ao piano sem conseguir tocar uma nota enquanto sua filha está com problemas, deseja que exista música na vida da menina. Marguerite Duras emprega muitos reflexos de espelho, como na cena próximo ao final do filme, quando Isabelle passa diante de um espelho sem olhar para ele. Do ponto de vista do espectador, fica difícil saber se vemos sua imagem ou sem reflexo. Borgomano nos lembra de que Duras utilizará ainda muito desse efeito em India Song (assim como já o havia feito em Destruir, disse ela), o que faria da escritora uma verdadeira cineasta, já que tanto o cinema quanto o espelho trabalham com reflexos, ilusões. Além disso, na opinião de Borgomano, espelhos são muito bem adaptados ao tipo de cinema que rejeita a representação realista, porque a imagem no espelho carrega um duplo sentido. Ela é ao mesmo tempo verdadeira (posto que só pode refletir aquilo que está realmente diante dele) e falsa (porque é apenas um reflexo). É uma espécie de universo paralelo, onde não temos certeza do que somos e do que estamos vendo (a profusão de repetições de personagens na obra de Duras pode ser tomada como uma alegoria do espelho, como o espelhamento que há entre a mendiga e Isabelle Granger ou Anne-Marie Stretter). Nosso reflexo no espelho é apenas uma sombra, uma ilusão, um engodo.


“Nunca  há  identificação verdadeira  entre um
personagem e o autor. Antes, é um desejo. Esta mulher, 
evidentemente,   eu   gostaria   de   conhecê-la”

Na época do lançamento de Hiroshima Meu Amor, André Bourin 
perguntou a Duras se ela se identificava com a protagonista (18)

Ann Kaplan fez uma análise de Nathalie Granger a partir do ponto de vista do pensamento feminista até a década de 1980. De acordo com Kaplan, ao mesmo tempo sendo influenciada e influenciando a Nouvelle Vague (um movimento dominado por homens), Marguerite Duras mostrou neste filme como as questões sobre a possibilidade de um discurso feminino foram articuladas na França, sendo a seguir transformadas em posições teóricas. Para Kaplan, Nathalie Granger constitui um esforço para subverter a construção simbólica patriarcal da maternidade (onde a criança simboliza o desejo da mãe pelo pai), onde acompanhamos o esforço da mãe para “salvar” uma criança do destrutivo território do simbólico contra o qual ela parece rebelar-se. Kaplan esclarece ainda que Nathalie Granger situa-se no contexto do trabalho de mulheres como Julia Kristeva, Luce Irigaray, Hélène Cixous e Monique Wittig, cujas teorias influenciaram a crítica feminista do cinema em muitos países. Em Nathalie Granger, cuja forma cinematográfica precedeu à publicação da versão em texto escrito, Kaplan destaca a utilização do poder do silêncio como uma política de resistência à dominação machista. Partindo do princípio de que o território do simbólico só é capaz de expressar as preocupações e o modo de vida masculinos, a mulher tem de buscar meios de comunicar-se com aquilo que se encontra fora, ou além, da esfera masculina Em meados da década de 1960, numa entrevista a Jacques Rivette e Jean Narboni, Duras antecipou a posição das escritoras feministas francesas utilizando os hippies como exemplo. Ora, eles estavam fora do circuito da produção. Neste caso, estar “fora” é útil, ao permitir uma ação de mudança. Na lacuna entre a esperança e o desespero eclode o “ponto zero”, onde a sensibilidade pode reagrupar-se e redescobrir-se (19).


“Sempre  acreditamos  que  para  fazer  cinema é  preciso partir
de  uma história.  Não  é  verdade.  Para  Nathalie Granger,  parti
completamente de minha casa. De verdade, totalmente. Tinha a casa
em minha cabeça,  constantemente, constantemente.  E,  a  seguir, 
uma história foi se alojar lá; entende? Mas a casa era já cinema” 

Marguerite Duras (20)

Duras estava desiludida com certa política que considerava paternalista (já não fazia diferença quem deveria ir às fábricas conversar com os operários) e propunha uma comunicação genuína entre as pessoas. Para Duras, o verdadeiro comunismo envolveria uma nova espécie de amor, onde o ego seria doado a uma comunidade maior. Essa fusão do ego no todo faria deslizar as personalidades. Nesse sentido, Kaplan defende que Duras chegou a uma crítica do patriarcado em geral antes da eclosão da teorização a respeito da mulher. Com Nathalie Granger, o foco é a opressão específica da mulher – impossível não lembrar aqui de Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles, 1975), onde a cineasta belga Chantal Akerman nos força a acompanhar durante três horas e meia hiper-realistas o silêncio quase total da vida vazia de uma dona de casa viúva de classe média. Kaplan mostra que grande parte de Nathalie Granger foi realizado num contexto de atividades revolucionárias empreendidas pelas feministas francesas entre 1970 e 1972. Ainda que anteceda à grande parte dos trabalhos de teorização a respeito da mulher, Nathalie Granger desenvolverá precisamente o tipo de política feminista mais tarde articulada pelas teóricas francesas que...

“(...) influenciadas [pelo psicanalista Jacques] Lacan, enfocavam a linguagem e o fato da linguagem, como principal ferramenta para o progresso social e a organização social, possuir um viés inerente ao macho. Consequentemente, se a linguagem é por definição ‘masculina’, as mulheres que a falam estão alienadas de si mesmas. Usando a distinção feita por Lacan entre o mundo do imaginário (visto como pré-linguístico) e o mundo do simbólico (a ordem baseada na linguagem), elas sustentam que as mulheres foram forçadas a encontrar seu lugar dentro de um sistema linguístico essencialmente estranho que, linear e gramaticalmente, ordena o simbólico, o superego e a lei. As mulheres defrontam-se com uma contradição real: se permanecerem em silêncio, diz Xavière Gauthier, ‘ficarão fora do processo histórico. Mas, se começarem a falar e a escrever como fazem os homens, entrarão na história subjugadas e alienadas; é uma história com a qual, falando logicamente, seu discurso deveria romper’” (21)


Já   presente   em   Nathalie   Granger,   uma  classe   da   violência
 ressurge   em   India   Song   (leprosos,    mendigos    e    vice-cônsuls, 
crianças,  comerciantes    e    gato).    Sua   função    não   é    ser   brutal,
mas   circular   entre   o   ato   absoluto   da   fala-desejo  (na  imagem
 sonora) e a potência ilimitada do rio-oceano (na imagem visual) (22)   

Resumidamente, Kaplan acredita que a questão levantada em Nathalie Granger é um questionamento quanto à possibilidade ou não de a mulher utilizar positivamente seu conhecimento da natureza opressora da linguagem escolhendo o silêncio como arma contra o uso da linguagem “masculina” – vale lembrar o quanto o italiano Federico Fellini seria criticado por grupos de defesa das mulheres ao apresentar as vozes delas num congresso feminista, em A Cidade das Mulheres (Città delle Donne). Ao insistir na utilização do silêncio durante todo Nathalie Granger, Duras aposta na capacidade do/a espectador/a ultrapassar o padrão da arte convencional para sentir-se a vontade com toda aquela interação não verbal. Além do mais, ouvimos os a música, a voz que vez do rádio e os ruídos da rua, mas nunca ouvimos os sons das atividades no interior da casa. A tese do silêncio atinge o clímax com a visita do vendedor de máquinas de lavar. Em função do silêncio das duas mulheres, ele vai se tornando cada vez mais incapaz de articular um discurso para apresentar as características do produto. Desta forma, concluiu Kaplan, o discurso do mundo público masculino é apresentado como um balbucio sem sentido – embora pudéssemos talvez sugerir que a crítica também esteja endereçada ao mundo da propaganda e sua postura pavloviana em relação ao público espectador. Nathalie, a garota, tem sue comportamento questionado na escola e existe um impasse em relação a seu retorno para lá. A mãe (a atriz Jeanne Moreau), supostamente se revoltando contra a ordem masculina, acaba decidindo que a filha não mais voltará a qualquer escola. Momento crucial do filme de acordo com Duras, pois mulheres a crianças se defrontam com o desconhecido, ao qual se chegou através de meios não verbais, passivos, intuitivos. Kaplan chega ao final de sua análise afirmando que existem muitos problemas em relação a essa política do silêncio.

“(...) O primeiro é assumir uma diferença essencial entre os homens e as mulheres. Partindo do princípio de que a esfera doméstica, a maternidade e a proximidade feminina são espaços não colonizados pela ordem masculina e, por isso mesmo, áreas em que as mulheres podem resistir à dominação, é perigoso estabelecer que essas esferas pertençam, de algum modo, somente às mulheres. Devemos continuar insistindo que no aparecimento de uma nova ordem esses não seriam territórios que definiriam as mulheres (é esse o objetivo final de se criar uma nova ordem). O segundo problema fica com o conceito de ‘política do silêncio’. Para Duras, essa política não deixa as mulheres numa posição de negatividade,porque ela vê o silêncio como uma postura positiva e libertadora. Ainda assim é perigoso aceitar a exclusão da mulher dos domínios do simbólico, já que esse território envolve grandes e importantes áreas da vida. Obviamente, nessa nova ordem, as mulheres terão de funcionar no simbólico. As questões que Duras deixa sem solução relacionam-se com o como as mulheres terão acesso ao simbólico, à voz, à subjetividade, através do silêncio. O silêncio parece ser, no máximo, uma estratégica temporária e desesperada, uma defesa contra a dominação, uma operação de contenção, e não uma política que procura fazer com que as mulheres encontrem um posicionamento viável para si mesmas na cultura. De modo algum fica claro que a linguagem seja tão monoliticamente masculina a ponto de só nos dar a opção entre a dominação e o silêncio. Por óbvias razões de caráter prático, a linguagem deve ser nossa ferramenta de transformação. Se acreditarmos que a ordem simbólica é fixa, a mudança torna-se algo impossível para as mulheres. No entanto, se a linguagem tiver sido usada para oprimir as mulheres, podemos começar a muda-la logo que nos tornemos conscientes de sua natureza opressora. Trabalhos obsedantes como Nathalie Granger expõem a linguagem como um mecanismo através do qual a dominação funciona, mas nos deixa a tarefa de encontrar maneiras de entrar no simbólico” (23) (as próximas treze imagens pertencem a India Song, 1975)

A Ausência na Presença em India Song


“Faço filmes para ocupar meu tempo. Se tivesse força para não fazer
nada, eu não faria. É porque eu não tenho a força para não me ocupar
de  nada  que  faço  filmes.  Por  nenhuma  outra  razão.  Isto  é  o  que
de  mais  verdadeiro  eu  posso  dizer  a  respeito  de  meu  trabalho” 

Marguerite Duras (24)

India Song é a transfiguração cinematográfica que Marguerite Duras criou de seu romance O Vice-Cônsul - o qual faz parte do Ciclo da Índia, juntamente com O Deslumbramento de Lol V. Stein (também lançado no Brasil com o título Deslumbramento, 1964). O texto, o livro, o romance, reproduz em relação ao filme a mesma problemática que já encontramos nele: India Song descreve uma história onde nada pode acontecer, porque já aconteceu. O texto constitui um futuro anterior, onde alguma coisa já teria acontecido. Melhor ainda, os acontecimentos em O Vice-Cônsul são abordados mediante a imagem repetida do espelho, a fantasia de um espelho quebrado, espelhos com buracos de balas. Para Sharon Willis, não é por acaso que Duras fez uso frequente de espelhos em India Song. Desta forma, o filme concretiza a figura textual de um espelho que apenas repete (nunca reflete), uma vez que nós os espectadores nos encontramos diante de um espelho que repete imagens das figuras na tela, enquanto nos nega o prazer narcísico de nossa própria “reflexão”. Trata-se de um filme que nos priva de um ponto de fuga, assim como de uma posição de dominação, ao apontar nossa própria ausência (25). “Em todos os seus filmes os espelhos desempenham um papel importante?”, pergunta Michelle Porte à escritora. Sim, ela responde, são como buracos por onde a imagem será engolida para então retornar, mas sabe-se lá aonde. Quando a imagem de Delphine Seyrig (que atuou como Anne-Marie Stretter) entra no espelho, é como se fosse o fim do cinema, disse a escritora. O espelho coloca em dúvida, na opinião de Duras, tanto a presença real quanto a palavra – quando, por exemplo, não se pode mais dizer a quem o vice-cônsul está se dirigindo a partir do momento em que Anne-Marie sai de cena, enquanto sua imagem no espelho surge (26).


 O  que  intriga  Marguerite Duras  é  que,  para  ela, 
espelhos instauram a dúvida não apenas em relação
 à presença real, mas também em relação à palavra  

Na opinião de Donia Mounsef, o foco de Duras na abstração é tão radical que chega a ponto de negar o próprio cinema. Para aqueles que não repararam na quantidade de filmes realizados por Duras onde ela “aparece” apenas através de sua locução (voz em off), é preciso citar o filme realizado por Jean-Luc Godard, Salve-se quem Puder (Sauve qui Peut (La Vie), 1981) - onde apesar de “atuar” como ela mesma, “aparece” apenas através de sua voz, que reproduz sua locução em seu próprio filme de 1977, O Caminhão. Curiosamente, Michel Chion define este filme de Duras como sendo um produto típico da televisão, porque a imagem é puramente ilustrativa em relação ao texto que é falado - em oposição ao “filme de cinema” que seria India Song (27). De acordo com Mounsef, essa atitude da personagem de Duras no filme de Godard exemplifica a complexa relação que a escritora e cineasta mantinha com seus colegas da vanguarda. Em artigo de 1989, onde buscava compreender a relação do cinema de Duras com a imagem, Madeleine Cottenet-Hage sugeriu que essa marcada presença da escritora na ausência de sua própria imagem na tela do mais celebrado cineasta da Nouvelle Vague constituiria um sinal radical de transgressão em relação ao código cinematográfico: “Duras enquanto ausência, Duras enquanto recusa; Duras enquanto uma transgressora agressiva da imagem, negando o desejo do espectador pela representação, removendo a relação esperada entre imagem e som” (28). De fato, Godard está sublinhando o interesse de Duras pelo o deslocamento da unidade imagem/som e relembrando para sua plateia a existência de um filme como India Song – que constitui um exame das possibilidades de tal deslocamento (29). (imagens abaixo, India Song)


“Acreditamos  sempre  que  é  preciso  partir  de   uma  história
para  fazer  cinema.  Não é verdade. Para Nathalie Granger, parti
totalmente   [de  minha]  casa De  fato, completamente.  Eu  tenho
a casa na cabeça,  constantemente,  constantementeem  seguida, 
uma história veio se alojar ali percebe? mas a casa já era cinema” 

Marguerite Duras (30)

“Eu estou numa relação de morte com o cinema” (31), Duras repetia. Para ela a realidade da imagem cinematográfica, em si mesma, é motivo de ruptura. Na opinião de Mounsef, tal ruptura está no coração do cinema da escritora/cineasta, constituindo também aquilo que a distingue da Nouvelle Vague. Para Marguerite, o cinema não deve nem vai construir a realidade, mas destruí-la, juntamente com as interpretações dessa realidade. O seu é um cinema de negação (do imediato, do sentido, da existência), e constitui, nos termos de Cottenet-Hage, um sistema de signos apontando para uma ausência que ameaça a tudo que olhamos. Duras vai além da Nouvelle Vague, enquanto esta segue a tendência aberta pelo Dadaísmo e o Surrealismo produzindo um deslocamento da linguagem ao diversificá-la, a escritora considerava necessário seguir até o ponto da interrupção: evitar que o espectador construa sua própria ilusão sedutora (o processo de significação deve ser abandonado) (32). India Song mostraria como atingir a essa interrupção do realismo da imagem cinematográfica ao simultaneamente expressar o passado e o presente da narrativa – o presente, que corresponde à projeção cinematográfica em si, e uma reflexão crítica simultânea em relação a ele. Tal reflexão seria fornecida por várias vozes que sequestrariam a imagem, empurrando-a para um domínio sensorial auditivo. Como na sequência em que a personagem Anne-Marie Stretter se encontra no chão enquanto vozes já haviam começado a falar de sua morte e desejo evanescente. Como a própria Duras escreveu no roteiro, “India Song será construído primeiro através do som, depois através da luz” (33). A proposta é questionar a primazia da imagem cinematográfica através da decomposição do som e a imagem.

“(...) As várias tomadas Anne-Marie Stretter superpostas através de efeitos especiais e truques de câmera (travelling, focalização, alargamento e redução do campo, etc.) e a multiplicidade de espelhos e reflexos são uma confirmação de que a história não pode e não irá ser reproduzida em sua totalidade. Essa relutância não se deve a uma dificuldade com o processo cinematográfico em si, mas, ao invés disso, ao fato de que o processo não deveria ‘representar’ nada além de sua própria insuficiência. Em constante busca pelas formas e extensão dessa insuficiência, Duras leva ao extremo a falta de sincronicidade entre imagem e som, tornando impossível qualquer harmonia pretendida ou casual entre o que é visto e o que é ouvido. Se, de acordo com Godard, a Nouvelle Vague é ‘escutar o que você vê, e olhar para o que você está ouvindo’, então o cinema de Duras, de certa forma, é uma materialização e realização do aspecto mais radical da estética da Nouvelle Vague” (34)


(...) Se fôssemos seguir o conselho da diretora, como ela sugeriu
 para  alguns  de  seus/uas  amigos/as na estreia  [de  India  Song], 
deveríamos   ‘ir   assisti-lo   com   [nossos]   olhos   fechados’ (...)

Donia Mounsef (35)

Ainda segundo Mounsef, a abordagem de Duras antecipou o pós-modernismo ao privilegiar a descontinuidade acima da narrativa linear, a polifonia acima da voz onisciente e a visão efêmera acima da continuidade. Ao aprofundar a descontinuidade, Duras se afasta da Nouvelle Vague - a qual privilegia a forma acima do conteúdo. India Song transcende justamente tal oposição, cuja existência é questionada. Já que não seria suficiente sugerir a disjunção entre forma e conteúdo, será também necessário bloquear o processo racional que produz tal oposição. Anne-Marie Stretter perambula diante de nossos olhos não apenas para confirmarmos que ela existe, mas justamente para esvaziar o quadro e encenar sua ausência. A Nouvelle Vague, explica Mounsef, teorizou essa relação não representacional entre um personagem que está morrendo e a necessidade cinematográfica de criar um objeto de visão dissociado de seu homólogo figurativo, mas então recaímos no que Wheeler Winston Dixon chamou de “exaustão da narrativa”. Marguerite Duras está para além da exaustão da narrativa através de truques visuais, para ela a câmera deve perturbar a inclinação voyeurística usual do/a espectador/ra forçando-os a revisitarem suas posições enquanto consumidores passivos de imagens. Ao nos tornar testemunhas da agonia de morte de Anne-Marie Stretter, Duras nos faz também cúmplices da falência de uma linguagem cinematográfica que não pode articular uma história unificada (uma unidade temática).  Mounsef resgata ainda uma observação de Duras, que na estreia de India Song sugeriu para algumas pessoas chegadas que elas deveriam assistir ao filme de olhos fechados. Portanto, Duras sempre propôs uma maneira de resistir aos truques de ilusionismo visual, fruto de certa hegemonia ideológica (o exercício de poder baseado em hierarquias de gênero que privilegiava, evidentemente, o sexo masculino) (36), em busca de um processo na brecha entre inteligência teórica e prática.

“(...) Marguerite Duras sempre opôs seu cinema – livre, vivo, preocupado unicamente com as coisas essenciais – ao cinema superficial, fútil, inutilmente luxuoso, dos ‘profissionais’ (ela foi a primeira a utilizar esse termo de maneira pejorativa): ‘Meu cinema não pode transpor a fronteira dos profissionais. E, da mesma maneira, o cinema deles não pode transpor a minha. (...) Por profissionais entendo os que fazem reproduções de cinema, como aqueles que fazem reproduções de quadros, em oposição aos autores de cinema, aos autores de quadros’. O artesanato – bem mais que a bricolagem, que quer conservar as mãos limpas à custa do não engajamento – é obra de pequenos produtores; está, portanto, no centro da política mundial, e os cineastas que se apegam a ele (como Philippe Garrel antes de seus filmes mais ‘normais’ dos anos 1990) o apresentam como uma posição de reação e de resistência moral, em última instância’” (37) (imagens abaixo, Son Nom de Venise dans Calcutta Désert, 1976)

Aquilo que Não quer Morrer


“No  cinema  ‘tal como é’,  para  espectadores  ‘tal como são’, 
 não existem os sons, dentre os quais entre outros, a voz humana. 
Existem    as    vozes    e    todo    o    resto.   Em   outras    palavras, 
em  não  importa qual magma sonoro  a  presença  de  uma voz
humana    hierarquiza    a    percepção     em     torno    dela” 

Michel Chion (38)

Durante um breve encontro em 1975, o historiador e filósofo francês Michel Foucault concordou com a escritora Hélène Cixous de que se pode falar de uma “arte da pobreza” nos escritos de Marguerite Duras aonde, pouco a pouco, o texto vai sendo abandonado (cenário, mobiliário, et.) até que sobre apenas aquilo que não quer morrer – o comentário surgiu a partir de uma descrição de Moderato Cantabile, o já citado livro de Duras. É como uma memória que foi purificada de qualquer lembrança, Foucault complementou (encontrando ecos desse mesmo procedimento de Duras em Samuel Beckett e Maurice Blanchot). A pergunta de Foucault: “Então como uma obra como essa pôde bruscamente se inscrever no cinema, produzir uma obra cinematográfica que é, acredito, tão importante quanto a obra literária? E com imagens e personagens chegar a essa arte da pobreza, a essa memória sem lembranças, a essa espécie de aparência que, na verdade, só se cristaliza em um gesto, em um olhar?” (39) Cixous da relação na obra de Duras com certo olhar, a representação em imagem da memória sem lembranças (que remete a uma perda que nunca termina) está no fato de que os personagens são sempre olhados e se entreolham passivamente (se anulam). Se nos livros, Duras aponta para presenças em gestos e olhares, nos filmes Foucault enxergou de aparecimentos (de um gesto, de um olho, de um personagem na bruma) que substituem as presenças. Referindo-se a India Song (imagens abaixo), Cixous acredita que o filme desloca o impacto dos livros de Duras, já que apresenta rostos que o espectador não pode deixar de ver, enquanto os livros apenas os indicam com algo invisível. Foucault concorda, embora para ele essa visibilidade dos filmes não constitua necessariamente uma presença. Cixous conclui sugerindo que a voz é a única coisa que sobrevive no universo criado por Marguerite Duras (40).


“Quando se vê India Song, pensa-se que o visual, que é muito belo, 
muito  erótico,  ao  mesmo  tempo  muito   vago,   que   é   justamente
 perfeitamente    sedutor,     porque    ele     está    lá     sem    estar    lá, 
está inteiramente envolvido em uma trama de voz permanente (...)

Hélène Cixous (41)

De fato, do ponto de vista da história do cinema, Michel Chion sugere que a palavra falada (o “discurso”, o “diálogo”) não designa o foco correto do cinema de Marguerite Duras. Esta sempre esteve presente desde o “cinema mudo” – através da utilização dos intertítulos, por exemplo. Na verdade, o foco é a voz. De acordo com Chion, não era o texto que gerava problemas naquela época, mas a voz enquanto presença, pronunciado, mutismo, ser, duplo, enquanto poder... (foi quando, no início do “cinema falado”, alguns diziam que ele ia morrer). O “mudo de cinema” nos remete ao estatuto da linguagem, da palavra e da voz no cinema. O corpo sem voz nos remete ao seu inverso, a voz sem corpo (acúsmetro), afirma Chion. Enquanto alguns diriam que uma atriz como Greta Garbo teve sorte na passagem para o cinema falado porque sua voz era “boa”, outros lamentariam o fato de que, ao falar com sua própria voz, ela matou todas as outras vozes que seus admiradores lhe haviam dado antes do advento do som no cinema. Nesse sentido, para Chion com que muita gente desvalorize o cinema falado é justamente o choque entre a voz real que escutamos e as vozes que imaginamos e com as quais sonhamos quando vemos um “rosto falante”. Mas também não é a ausência das vozes que vêm atrapalhar o cinema falado, mas a possibilidade de imaginá-las por si mesmo que foi perdida pelo espectador – exatamente como acontece com as adaptações de romances para o cinema. Chion resgata a opinião de Duras, que reclama contra um cinema que “fecha” o imaginário. Segundo ela, “existe alguma coisa no mudo que se perdeu para sempre. Existe alguma coisa de vulgar, de trivial (...) no realismo inevitável do [som] direto (...) e a trapaça que isso representa” (42). (imagens abaixo, Agatha et les Lectures Illimitées, 1981)


(...) Cinematograficamente, Marguerite Duras pode ser
aproximada    de    um   grande   pintor    [de   marinhas]    que   diria: 
se conseguisse ao menos captar uma onda, nada mais que uma onda, 
ou   até   mesmo   um   pouco   de   areia   molhada... (...)” 

Gilles Deleuze (43)

O filósofo francês Gilles Deleuze resaltou a importância da casa no cinema de Duras, mas também a constatação da própria escritora de que esse lugar deveria ser ultrapassado. É que ela concluiu que no ambiente da casa não era possível fazer de uma imagem sonora e da imagem visual as perspectivas de um ponto comum situado no infinito – não somente fugir da casa, mas o próprio ato de fala deveria “sair e fugir”. Era preciso tornar o espaço inabitável (praia-mar, ao invés de casa-parque), para que fosse capaz de produzir uma lei ou uma lógica comparável (equivalente) à do ato de fala que se tornou inatribuível: uma história que já não tem lugar (imagem sonora) para lugares que já não tem história (imagem visual) – uma imagem audiovisual que se constitui na disjunção, na dissociação entre o visual e o sonoro, mas ao mesmo tempo formando uma relação irracional de ligação entre ambos, sem formarem um todo. Dito de outro modo, “(...) uma imagem audiovisual, tão mais pura quanto a nova correspondência nasce das formas determinadas da sua não correspondência: é o limite de cada uma que a refere à outra (...)” (44). Foi o que explicou Marguerite Duras em relação ao seu filme que tanto presa, A Mulher do Ganges: “São dois filmes, o filme da imagem e o filme das vozes (...) Os dois filmes estão ali, com total autonomia (...). [As vozes] também não são vozes off, na acepção habitual da palavra: não facilitam o desenrolar do filme, ao contrário, elas o entravam, o perturbam: Não deveríamos prendê-las ao filme da imagem” (45). De acordo com Deleuze, em India Song a escritora-cineasta teria conseguido estabelecer o equilíbrio entre uma imagem sonora que nos faz ouvir todas as vozes (in e off, sem que uma sobressaia sobre a outra), e uma imagem visual (personagens que mantêm a boca fechada mesmo enquanto falam uns com os outros) (46). Logo no início de A Mulher do Ganges, a escritora deixa clara sua intenção com uma explicação curta e objetiva:

A Mulher do Ganges é de certo modo dois filmes. Em paralelo com a película encenada em imagens, é encenado um filme puramente vocal não acompanhado por imagens. Para evitar qualquer desrespeito, gostaríamos de deixar o espectador saber que as duas vozes off das mulheres não pertencem em absoluto aos personagens que aparecem nas imagens. Acrescentamos que os personagens vistos nas imagens ignoram totalmente a existência das duas mulheres na história, que se manifestam apenas no diálogo que mantém” (as próximas oito imagens abaixo, Hiroshima Meu Amor)


Emmanuelle Riva, a atriz de Hiroshima Meu Amor, 
disse que o que mais lhe preocupou durante o trabalho
de pós-sincronização foi a colocação da voz off. Essa voz tem
um ritmo  preciso, explicou,  que está inscrito  no  texto
de  Duras,    e    do   qual    não    se    pode   escapar (47)

Escrevendo nos anos 1980 (quando o cinema também parecia que estava para morrer, ainda que por outros motivos), Chion incluiria India Song, juntamente com O Testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse, direção Fritz Lang, 1933), Psicose (Psycho, direção Alfred Hitchcock, 1960) e Intendente Sansho (Sanshô dayû, direção Kenji Mizoguchi, 1954), numa lista de filmes que pertencem à era da inocência da voz. Ele mostrou que o esforço de Duras para descolar a voz do corpo humano não é um assunto novo ou que diga especialmente respeito às mulheres, embora admita que a obra cinematográfica dela possa ser considerada um dos fatores responsáveis para que, na França dos anos 1970, tenha-se “inventado a voz humana” – também incluiu o discurso das feministas, lembrando inclusive que foram as primeiras a publicar livros falados. Chion afirma enfaticamente que os filmes de Marguerite Duras trouxeram a voz para o primeiro plano. O que há de especial aqui é que se trata de uma voz sem corpo, sem a imagem daquele/a que fala - uma voz acusmática (48).

“Foi Marguerite Duras quem encontrou esta fórmula: o cinema atual, disse ela, pretende a qualquer custo que as vozes sejam ‘parafusadas’ nos corpos; foi com esse enroscado, que para ela constitui um equívoco, que desejou romper com India Song, desparafusando as vozes e deixando-as vagar. Esse termo enroscado evoca bem aquilo que pode existir aí de rígido, forçado, nessa maneira de forçar as vozes de cinema a fingirem sair dos corpos. Encontramos essa ideologia do enroscamento, com suas exigências obsessivas de sincronização, por exemplo, na tradição do cinema francês, ligado mais do que qualquer outro a uma sincronização imperceptível” (49) 


“Com  Hiroshima  Meu  Amor,  Alain  Resnais  e  Marguerite Duras
imaginaram  um filme  trabalhando por rimas,  colisões, ressonâncias;
ecos  entre  as  palavras,  as  frases,  mas  também  entre  os  travellings, 
 planos, imagens. O passado de Nevers e o presente de Hiroshima irão, 
consequentemente, iniciar um diálogo mais ou menos secreto (...) (50)

“Acusmático” designa um som que escutamos sem que possamos ver de onde ele é proveniente – Chion o tomou emprestado de Pierre Schaeffer, que, por sua vez, havia resgatado esse termo antigo para utilizá-lo durante os anos 1950 no contexto da música. Enigmático em princípio, acúsmetros constituem cada vez mais situações triviais de escuta que se multiplicam em nosso cotidiano: o rádio, o telefone, etc (sem esquecer o rugido do leão durante a noite na pré-história) - Chion prefere utilizar essa expressão em lugar dos termos técnicos de cinema como “fora de campo” (“extracampo”) e “off” (para a fonte sonora que está fora da tela do filme). Sendo assim, uma “presença acusmática” é aquele objeto ou personagem que não vemos, mas podemos ouvir. Dentre vários exemplos possíveis, Chion cita um filme de Duras, O Homem Atlântico (1981): “Este filme é celebre por ser feito essencialmente disso que esperávamos ver Marguerite Duras um dia utilizar: uma voz de acúsmetro falando sobre uma imagem negra [- que para Duras não significa uma tela “vazia”]. Se ela não foi a única ou a primeira a tê-lo feito (em quantos filmes não a vemos, mesmo que fugidia, como no início de M, o Vampiro de Dusseldorf [M, direção Fritz Lang, 1931]), ninguém a havia empregado dessa forma. Em primeiro lugar, O Homem Atlântico não é negro de uma ponta a outra, a tela clareia por instantes com uma visão: a beira do oceano vista a partir de uma janela, e, num hotel, um homem, mudo” (51). (imagens abaixo, India Song)



India Song é um filme 80% surdo e cego. Não se enxerga... 
ou   muito   mal.    Não   se   ouve,   ou   muito   mal.   Há   vozes
que  surgem  dessa  desordem,  dessa  noite,  dessa surdez, mas
são muito raras. Aí então, quando as ouvem, o que fazem  ?”

Marguerite Duras (52)

Contudo, ao contrário do acúsmetro radiofônico (no qual será mesmo impossível ver alguma coisa), a zona acusmática no cinema é flutuante. Mesmo num caso que considera extremo como Son Nom de Venise dans Calcutta Désert (1976), mais uma vez de Marguerite Duras, onde quase não se veem os rostos e corpos dos acúsmetros que povoam a trilha sonora (a mesma de India Song), Chion sugere que o princípio do cinema impõe que a qualquer instante poderão se manifestar – detalhe que é preciso conhecer, e que Duras teria evitado divulgar, é que India Song foi realizado a partir da fita magnética de uma emissão de rádio para a France-Culture e o Atelier de Création Radiophonique, de Alain Trutat (53). Existe também aquela voz acusmática (um narrador, por exemplo) que não se refere a coisas e eventos que podemos ver, mas simplesmente porque não tem acesso aos fatos como nós os espectadores – isso ocorre com boa parte das vozes acusmáticas em India Song. Outra situação que segundo Chion se pode encontrar em Duras é a de uma desacusmatização escamoteada. Em India Song quase se pode ver falar os fantasmas que estão fora de campo (fora da tela), produzindo o efeito de que alguma coisa está no plano – enquanto Duras em India Song cobre toda a cena utilizando sons de fora do campo, os personagens de um cineasta como o francês Jacques Tati, pelo contrário, são totalmente capturados pelos ruídos dos objetos que estão dentro do quadro (54). Para Chion, Son Nom de Venise dans Calcutta Désert (filme em que a trilha sonora, a mesma de India Song, cobre imagens onde os personagens estão ausentes) responderia a uma necessidade de exorcizar a “errância fantasmática” em India Song, fornecendo-lhe uma barreira simbólica: impedir que as vozes entrem no campo. Pascal Bonitzer inclui Marguerite Duras no movimento do cinema moderno que recoloca em causa o código clássico da imagem e sua relação harmônica com a voz (incluindo aí a questão do tempo).

“Num filme como India Song [...], Marguerite Duras suprime quase completamente o som de dentro [do quadro] utilizando amplamente o som fora do campo: escutamos os personagens falarem apenas uma vez que os tenhamos visto sair [do quadro]. Mas é esse ‘quase’ que aqui faz toda a força. Aparentemente, de fato, o filme só deixa ouvir o som fora de campo (as vozes dos protagonistas que saíram do quadro, a orquestra invisível do baile da recepção à qual assistimos) – ou o som off (as outras vozes que falam no passado dos personagens que vemos ou uma música de piano de Beethoven). Todavia existe, no coração do filme, uma ilusão de som de dentro [do quadro] quando vemos o casal Anne-Marie Stretter e o vice-cônsul que dançam lentamente... e que se falam. Quase se poderia acreditar ver agitar os lábios, mas não é nada: as bocas de Delphine Seyrig e Michael Lonsdale, os atores, permanecem fechadas. Não sabemos se escutamos uma conversa imaginária ou telepática, ou se disseram aquelas coisas noutro lugar ou noutro tempo. Fora este momento, a regra do jogo é que os personagens podem falar se saírem do campo, mas se calar ao retornar. Ao mesmo tempo, voz e música circulam como alma penadas entre o espaço off e fora de campo: para algumas dessas vozes e músicas, na verdade, não sabemos nunca exatamente se estão no presente do fora de campo ou num outro tempo, off; se as vozes estão presentes na recepção ou se já estão em outro local, como no ‘balcão’, noutro momento. Os pontos de referência do presente e do passado, em geral fortemente definidos nos filmes narrativos clássicos, são aqui muito vagos. India Song utiliza como tempo de sua narrativa uma espécie de imperfeito flaubertiano, e os acontecimentos se desenvolvem delicadamente como rolos se abrindo lentamente num espaço fechado”  (55) (imagens abaixo, Les Enfants, 1985)


Promoveu-se então uma transformação da relação entre o som, o silêncio e a voz humana. Entre outros, Bonitzer cita textualmente os franceses Robert Bresson, Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub e Marguerite Duras, referindo-se ao cinema moderno como minoritário, que geralmente se caracteriza por uma perda de confiança em relação aquilo que chamou de virtudes do realismo (neorrealismo incluído). Houve, após a Segunda Guerra Mundial, uma querela do realismo – onde o neorrealismo não representou mais do que uma contestação minoritária, embora decisiva, do cinema narrativo clássico norte-americano. “Restituir à realidade sua continuidade sensível” não parecia mais ser uma preocupação (como havia sido para o neorrealismo e, pelo menos, parte da Nouvelle Vague), os cineastas modernos costumavam enfatizar a descontinuidade – aqui se encaixaria, por exemplo, o som descentrado, longe das bocas dos atores e atrizes, como nos filmes de Duras. Reprova-se no cinema moderno seu afastamento em relação à emoção, além de ter deixado que querer (ou poder) contar histórias. Contudo, Bonitzer afirma que, se podemos dizer isso em relação a Godard e Straub, seria injusto incluir o cinema de Duras. Não é que ela não conte histórias, apenas não o faz da maneira tradicional. Embora os “planos de voz” e as telas negras (como em O Homem Atlântico) de Duras não possam ser percebidos como “pedaços de realidade” (evidentemente, sabemos que a realidade, em qualquer cinema, é produto de encenação), Bonitzer acredita que o cinema moderno (apesar de muitas vezes espantar o publico para fora dos cinemas) foi perfeitamente capaz de suspender a maldição de F. Scott Fitzgerald (“uma arte incapaz de exprimir outra coisa além dos sentimentos mais comuns, as emoções mais comuns”) (56). Dentre as muitas questões levantadas Bonitzer em seu livro Le Regard et la Voix (1976), permanece a questão da relação entre o olhar a e voz.

“(...) [Marguerite] Duras (que recentemente declarou não mais poder sincronizar, ‘aparafusar’, disse ela, as vozes nas bocas), é, entre outras, uma experiência do silêncio, e da subversão da voz através do silêncio: De Destruir, disse ela [1969] e Nathalie Granger [1972] (Nathalie Granger que o silêncio habita, não para reforçar, como um efeito de reserva, o poder da palavra que é do homem, mas para paralisar, enfeitiçá-lo e levar a voz ao deslize, ao problema, à liberdade do inconsciente – dar voz às mulheres) a A Mulher do Ganges [1973] e India Song [1975] (e talvez Vera Baxter [1976]), onde o silêncio da imagem provoca o povoamento sonoro do espaço off, acende aí o fogo do desejo e devolve ao espectador a questão (...)” (57) 

Ironias do Destino

Muitos são aqueles que veem os filmes de Marguerite Duras como parte integrante da obra dela. De fato, a própria Marguerite Duras disse que India Song entrou na vida dela aos oito anos de idade (58). Madeleine Borgomano também compreendeu isso perfeitamente, mas ela nos lembra de que, no início dos anos 1960, a própria escritora também esclareceu que seu interesse por fazer cinema se consolidou em função do desagrado com as adaptações para a tela grande que realizavam de sua obra (59). Considerando todo esse zelo da escritora com a palavra escrita e palavra falada (e as vozes off), poderíamos dizer que, em princípio, se justifica a irritação de Jean-Luc Douin. Não lhe agradou um “detalhe” da adaptação para cinema do romance de Duras, O Amante (L’amant), dirigido por Jean-Jacques Annaud, 1992. (imagens abaixo, India Song)


De acordo com Douin, chega a ser um horror que a escritora francesa aceitasse a indignidade (a partir do momento em que assinou o contrato) de que esta pedra preciosa da literatura francófona, ainda que perfeitamente reconstituída, tenha sido rodada originalmente em inglês. Douin reprovou o que lhe pareceu uma rendição ao mercado cinematográfico anglófono, que considera apenas parte de um movimento perverso mais amplo de dominação do mundo através do idioma inglês. Referindo-se, entre outros, ao caso de O Amante, Douin utilizou o conceito de mickeyfação para caracterizar uma autocolonização. Elaborado pelo romancista e cineasta experimental Dominique Noguez, o termo se refere a uma a “colonização suave”, linguística e cultural, da França pelos Estados Unidos (60). Ironicamente, Marguerite Duras faleceu devido a um câncer de garganta. Tinha 81 anos de idade em 1996, apenas quatro anos depois de assinar o tal contrato.


Leia também:


Notas:

1. WILLIS, Sharon. Marguerite Duras. Writing on the Body. Urbana and Chicago: University of Chicago Press, 1987. Pp. 1, 3.
2. Idem, p. 3.
3. LAGIER, Luc. Hiroshima Mon Amour. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 80.
4. Entrevista ao crítico literário André Bourin, para Les Nouvelles Littéraires. Livreto que acompanha o DVD de Hiroshima Meu Amor, lançado no Brasil por Aurora DVD, 20??. P. 22.
5. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Les Lieux de Marguerite Duras. Paris: Les Éditions de Minuit, 1977/2012. Pp. 12, 77-8, 82-7, 91.
6. Idem, p. 94.
7. WILLIS, Sharon. Op. Cit., p. 1.
8. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Op. Cit., pp. 96-103.
9. WILLIS, Sharon. Op. Cit., p. 114; DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Op. Cit., 84.
10. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Op. Cit., pp. 90-1.
11. MARIE, Michel. A Nouvelle Vague e Godard. Tradução Eloisa A. Ribeiro e Juliana Araújo. Campinas, São Paulo: Papirus Editora, 2011. Pp. 73-4.
12. SIMSOLO, Noël. Dictionnaire de La Nouvelle Vague. Paris: Flammarion, 2013. P. 183.
13. TASSONE, Aldo. Que Reste-t-il de la Nouvelle Vague? Paris: Éditions Stock, 2003. Pp. 291-2.
14. AUMONT, Jacques. As Teorias dos Cineastas. São Paulo: Papirus Editora, 2004. P. 81.
15. Idem, pp. 82-3.
16. Ibidem, p. 130.
17. WILLIS, Sharon. Op. Cit., pp. 25, 162-3.
18. ver nota 4, p. 21.
19. KAPLAN, E. Ann. A Mulher e o Cinema. Os Dois Lados da Câmera. Tradução Helen Marcia Potter Pessoa. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. Pp. 25, 133-149.
20. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Op. Cit., p. 36.
21. KAPLAN, E. Ann. Op. Cit., p. 136.
22. DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. P. 307.
23. KAPLAN, E. Ann. Op. Cit., pp. 148-9.
24. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Op. Cit., p. 11.
25. WILLIS, Sharon. Op. Cit., pp. 110-3.
26. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Op. Cit., pp. 72-3.
27. CHION, Michel. Audio-Vision. Sound on Screen. New York: Columbia University Press, 1994. P. 158-9.
28. MOUNSEF, Donia. Women Filmmaker and the Avant-Garde: From Dulac to Duras. In: LEVITIN, Jacqueline; PLESSIS, Judith; Raoul, VALERIE (eds.). Women Filmmakers: Refocusing. New York/London: Routledge, 2003. P. 46.
29. Idem, pp. 45-9.
30. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Op. Cit., pp. 36.
31. MOUNSEF, Donia. Op. Cit., p. 46.
32. Idem, pp. 48-9.
33. Ibidem, p. 47.
34. Ibidem.
35. Ibidem, p. 48.
36. Ibidem, p. 39.
37. AUMONT, Jacques. Op. Cit., p. 163.
38. CHION, Michel. La Voix au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, réédition 1993. P. 18.
39. FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Musica e Cinema. Tradução Inês Autran Dourado da Motta. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2ª edição, 2009. P. 357, FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits 1954-1988. Tome II, 1970-1975. Paris: Éditions Gallimard. Pp. 763-4.
40. Idem, pp. 356-65; Idem pp. 762-771.
41. Ibidem, p. 360; Ibidem, p. 766.
42. CHION, Michel. La Voix au Cinéma. Op. Cit., p. 22.
43. DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 306.
44. Idem, p. 308.
45. Ibidem, p. 297.
46. Ibidem, pp. 297, 303-4, 305.
47. LAGIER, Luc. Op. Cit., p. 71.
48. CHION, Michel. La Voix au Cinéma. Op. Cit., pp. 13-4, 24-5, 30, 32, 36, 97, 132.
49. Idem, pp. 121-2.
50. LAGIER, Luc. Op. Cit., p. 84.
51. CHION, Michel. La Voix au Cinéma. Op. Cit., p. 112.
52. Das Entrevistas de Dominique Noguez com a escritora no documentário La Couleur des Mots. India Song. Le Bureau d’Animation Culturelle, du Ministère des Relations Extériores. Realização Jérôme Beaujour e Jean Mascolo, 1984.
53. CHION, Michel. La Toile Trouée. La Parole au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1988. P. 161.
54. _______. Le Son au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, réédition 1992. P. 40.
55. Idem, pp. 40-1.
56. BONITZER, Pascal. Le Champ Aveugle. Essais sur le Réalisme au Cinéma. Paris. Cahiers du Cinéma, 1999. Pp. 91, 95, 102.
57. CHION, Michel. La Voix au Cinéma. Op. Cit., p. 149.
58. ver nota 52.
59. Documentário L'Ecriture Filmique de Marguerite Duras. Entretien Avec Madeleine Borgomano. Realização Olivier Brunet. Blaq Out, 2007.
60. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Paris: Quadrige/Puf, 2001. P. 314.

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