Paris, Texas até foi seu primeiro filme sobre os Estados Unidos,
talvez influenciado pela leitura de um poema épico da Grécia Antiga.
Contudo, para o próprio cineasta, o filme é sobre uma mulher
talvez influenciado pela leitura de um poema épico da Grécia Antiga.
Contudo, para o próprio cineasta, o filme é sobre uma mulher
Deserto do Medo do Medo
Nas imagens aéreas de um deserto dos Estados Unidos logo vemos uma figura humana caminhando no meio do nada. Uma águia pousa e olha para ele, então percebemos que era o ponto de vista dela que estávamos acompanhando. É Travis, vestido com terno e boné ele toma seu último gole de água. Não parece, mas ele está voltando para o mundo dos vivos após perambular por quatro anos no meio do nada. Imerso num mutismo absoluto, primeiro ele encontra um bar, onde desmaia. A seguir, acorda numa clínica. Com pesado sotaque alemão, o médico que o acolhe encontra o numero de telefone de Walt, o irmão de Travis, que vem buscá-lo. Anne, a esposa de Walt, esboça certa preocupação com a perspectiva do retorno de Travis. Quando Walt chega, ele já sumiu. Mais de uma vez, Walt tem de procurar o irmão que foge. Os dois se olham em silêncio e Travis entra no carro. Após nova tentativa de fuga, Walt conta que ele e Anne adotaram Hunter, o filho de Travis. Até então, ele não havia pronunciado qualquer palavra, os dois ainda estavam no caminho para Los Angeles quando Travis diz: “Paris...Paris...Podemos ir lá agora?” Walt pensa na capital francesa, mas é um lugar desértico no Texas onde Travis comprou um terreno. Walt o está levando para sua casa na Califórnia, mas Travis se recusou a pegar um avião. Travis mostra ao irmão uma imagem com o cartaz de “vende-se” no meio do deserto – era para lá mesmo que ele estava indo esse tempo todo? Na casa de Walt, Travis e Hunter são apresentados. Longo silêncio. Hunter diz olá. No dia seguinte, Travis já limpou os sapatos da família quando Hunter chega, os dois se olham timidamente. Travis fará uma primeira tentativa de buscar Hunter na escola, mas não dá certo. (imagem acima, Jane se vira na direção do intruso, mas não pode ver que se tratava de Travis; abaixo, ele grava uma mensagem para Hunter confessando seus medos)
Ao admitir sua culpa por separar mãe e filho, Travis fala do medo
de enfrentar o medo de consertar seus erros. O tema do medo do medo
já aparece em Alice nas Cidades (1974) e O Amigo Americano (1977) (1)
de enfrentar o medo de consertar seus erros. O tema do medo do medo
já aparece em Alice nas Cidades (1974) e O Amigo Americano (1977) (1)
Naquela noite Walt projeta um antigo filme caseiro. Quando a imagem de Jane aparece, Travis fecha os olhos por alguns segundos. Naquela noite Hunter o chamará de pai pela primeira vez. No dia seguinte, vestido com o terno de um “pai digno”, Travis aguarda Hunter na saída da escola. Eles chegam em casa como pai e filho. Sua nora explica que ela quase não se comunica com eles, a não ser por um cheque que Jane deposita uma vez por mês num banco em Houston. Agora Travis compra uma caminhonete para procurar Jane. Para desespero de Anne, Hunter acaba se juntando a Travis, até que a descobrem quando está depositando dinheiro. Seguem-na até um clube masculino na periferia, com uma irônica estátua da liberdade pintada na fachada dos fundos. Hunter espera no carro. Quando o dono avisa que as mulheres estão noutro lugar, Travis se retira e Jane se vira para olhar, mas não o vê. Ele encontra as cabines de peep-show, onde pode falar com elas sem ser visto. Numa segunda tentativa, é Jane quem aparece. Sem se revelar, com rodeios pergunta se ela é faz programa com os clientes. Ela explica que não. Ele sai confuso. De volta ao carro, Hunter espera em vão por informação. Travis retorna ao peep-show e Jane agora fica sabendo quem é – ele confessa seus erros e lembra que ela o acusou de aprisioná-la através de uma gravidez. Depois de reunir mãe e filho, Travis some novamente. O pai deixa uma gravação para Hunter explicando que foi ele que os separou, mas que temia não se capaz de confessar pessoalmente. Disse que nunca seria capaz de consertar o que ele fez, e que tem medo de fugir de novo. Medo do que pode encontrar. Medo de não ser capaz de enfrentar esse medo. (imagem abaixo, Travis no deserto, apesar de caminhar em linha reta, não se livra do círculo vicioso do pesadelo que criou para si mesmo)
Deserto de Ulisses e do Contracampo
Não é história de amor e também não é melodrama com família
desfeita, embora mostre relações afetivas problemáticas. Paris, Texas
aponta para o movimento, do interior para o exterior e vice-versa
desfeita, embora mostre relações afetivas problemáticas. Paris, Texas
aponta para o movimento, do interior para o exterior e vice-versa
Em Paris, Texas (1984), o cineasta alemão Wim Wenders realizou seu primeiro filme a respeito dos Estados Unidos. De fato, Wenders já havia mostrado os Estados Unidos em Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974) e Hammett - Mistério em Chinatown (Hammett, 1982) e O Estado das Coisas (Der Stand der Dinge, 1982). Contudo, Michel Boujut afirma que estes não são filmes a respeito do país, mas sobre a relação do cineasta com ele. Boujut adiciona outra referência ao remeter à fala do produtor norte-americano Jeremy Prokosch em O Desprezo (Le Mépris, direção Jean-Luc Godard, 1963), que disse: “precisamos de um diretor alemão para filmar a Odisseia”. Boujut acredita que o texto grego entrou mais como um viés do que uma inspiração direta, embora admita que a referência em O Desprezo pudesse servir de antecipação do Ulisses (Odisseu) amnésico de Paris, Texas. Boujut considera Hunter um irmão de Alice, a garotinha solta no mundo em Alice nas Cidades, em busca da mãe que a abandonou. Duas crianças em deslocamento, nas típicas viagens erráticas de Wim Wenders (2). “[Paris, Texas, disse Wenders], o vejo como o filme que desejei realizar desde o início. Tinha a impressão de sempre ter um filme para fazer a respeito dessa América com a qual sempre sonhei. Havia também uma vontade de acabar com essa minha fixação em relação à América. Tal fixação, era sobretudo o desejo de filmar nos grandes espaços que encantaram minha infância...” (3). Eis porque, além das tantas razões do mundo da ficção, é inútil questionar o fato de que a verdadeira Paris, no Texas, não fica numa área desértica, ou ainda que a sinalização das placas nem sempre confira com os destinos de Travis e Hunter em sua busca por Jane. (imagem abaixo, segundo e último diálogo entre Travis e Jane)
“(...) Nós esperamos [por Jane] até o fim com Travis, na incerteza
e no medo... Eu nunca tinha feito um filme de amor, nunca tinha
penetrado na intimidade entre um homem e uma mulher”
e no medo... Eu nunca tinha feito um filme de amor, nunca tinha
penetrado na intimidade entre um homem e uma mulher”
Wim Wenders a respeito de Travis e Jane (4)
De acordo com Boujut, Paris, Texas marcou uma virada essencial na obra de Wim Wenders. Entre outras coisas, o cineasta reinventa o melodrama de família. Além disso, abandona também as “muletas” da cinefilia: “Eu não podia mais falar da morte do cinema. Depois de O Estado das Coisas, um filme totalmente narcísico que questionava o cinema e seus meios, para mim tratava-se verdadeiramente de reencontrar a alegria de narrar, um domínio da história. Sem isso, não acredito que poderia sobreviver enquanto cineasta!” (5) Foi então que Wenders pediu ajuda a dois amigos americanos, Sam Shepard (que quinze anos antes havia colaborado no roteiro de Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni), contribuiria no roteiro, e Ry Cooder, na música – Wenders já havia pedido a ajuda de ambos, em vão, para Hammett - Mistério em Chinatown. Embora os dois sejam norte-americanos, lembrou Wenders, possuíam a mesma relação do cineasta com os Estados Unidos. Shepard, por exemplo, tinha o mesmo interesse pela estrada e a viagem. Wenders conta que começou a fazer uma espécie de roteiro a partir de um livro de Shepard, Motel Chronicles. Ela começaria por um tipo que aparece no deserto, amnésico, após ter sofrido um grande choque afetivo, e que retornava ao “mundo dos vivos” para reencontrar sua família. Inicialmente, concluiu Wenders, havia pensado no próprio Shepard como protagonista, mas desistiu porque o papel era próximo demais do amigo e seria redundante. Durante as filmagens, Wenders pretendia filmar um pouco em muitos lugares do país, mas Shepard sugeriu que ele encontraria tudo no Texas, que chamou de uma espécie de miniatura dos Estados Unidos. O cineasta testou a hipótese e concordou com o amigo.
“Foi durante essas viagens que ele realizou as fotografias objeto de uma exposição no Centro Georges Pompidou na primavera de 1986. Elas foram reunidas no álbum Written in the West (1987). ‘O oeste [norte-]americano, disse Wim, é sempre o lugar mítico onde a magia continua sem explicação. Penetramos aí e somos enfeitiçados por sua luminosidade, por suas cores, pela infinidade de seu espaço e por seu horizonte. Percebemos que essa paisagem foi concebida e conquistada pelo sonhos...’ Mistério e hiper-realismo que animam muitos signos de um passado caído, tais como outdoors, [letreiros em] neon, placas com sinais de trânsito, grafite... Uma chave para penetrar na obra de Wim Wenders” (6) (imagem abaixo, no primeiro diálogo entre Travis e Jane, ele tenta provar para si mesmo sua hipótese de que ela sempre foi uma prostituta)
As cenas no peep-show, entre Travis e Jane,
foram escritas por Wim Wenders e Kit Carson,
o pai do garoto que atua como Hunter (7)
O tempo passou, o roteiro continuava inconclusivo mesmo depois que as próprias filmagens haviam começado, até que Shepard teve de se afastar por motivo de trabalho e Wenders ficou sozinho. Foi então que recebeu a ajuda do escritor texano L. M. Kit Carson, pai de Hunter Carson, o menino que o cineasta escolheu para atuar como filho de Travis. Shepard era informado das mudanças no roteiro, das quais gostou muito, e diariamente ditava novos diálogos pelo telefone. Mas é preciso dizer que Shepard não via a situação como problemática, ele mesmo afirmou estar bastante gratificado com a forma de trabalho – até a metade do caminho, eles nunca se perguntaram “para onde estamos indo?”; disse ainda que até então essa foi sua melhor experiência com um roteiro. Na opinião de Wenders, a música de Ry Cooder está tão colada no filme que parecem feitos ao mesmo tempo. As imagens da abertura, seguindo o ponto de vista da águia que logo vemos pousar numa rocha, é parte da ilusão do faroeste que nos acostumamos a ver por décadas - estamos no Parque Nacional Big Bend, num lugar chamado Devil’s Graveyard, próximo à fronteira com o México. Um alucinado avança em linha reta tropeçando no cascalho seco e esturricado como tudo a sua volta. Retorna de lugar nenhum para se reconectar com o mundo dos vivos... Para Boujut, Paris, Texas se abre sem medo e sem culpa deste super clichê cinéfilo. Em estado de mutismo absoluto, Travis lembra Mignon, o personagem de Nastassja Kinski em Movimento em Falso (Falsche Bewegung, 1975), outro filme de estrada de Wenders. Fazendo referência à biografia do cineasta alemão, Peter Buchka vai um pouco além:
“Deve-se admitir que se trata, sem dúvida, de uma imagem muito europeia e até transfigurada da América, que nos próprios [norte-]americanos, sobretudo, é claro, nos nova-iorquinos mais consegue provocar irritação, porque mitifica algo que é a realidade cotidiana à volta deles. Para explicar o que aqui, depois de tantas tentativas, encontra expressão, temos talvez que lembrar a fascinação do garoto [(Wenders)] do Ruhrpott [(Vale do Ruhr, na Alemanha)] pelos westerns, onde via um homem montar seu cavalo e viajar cinco dias para atingir o povoado mais próximo. Até mesmo o aluno da Faculdade de Cinema contrapunha – em Três LP’s Americanos [(3 amerikanische LP's, 1969), um dos curtas-metragens que Wenders realizou lá, com a participação do próprio Buchka] – a utopia de uma liberdade sem fronteiras à estreiteza abafada das cidades alemãs (...)” (8) (imagem abaixo, Travis se revela para Jane, porém nunca mais estará ao alcance de sua mão)
“(...) Curiosamente, meu primeiro personagem foi o de
Nastassja Kinski. Era quem eu queria, mesmo antes de iniciar
o roteiro. Por acaso, ela estava livre e gostou da história (...)”
Nastassja Kinski. Era quem eu queria, mesmo antes de iniciar
o roteiro. Por acaso, ela estava livre e gostou da história (...)”
Wim Wenders (9)
Wenders reiterou que ele e a equipe se esforçaram em não seguir modelos, mostrando o mundo que encontrassem (nas locações), ajustando uma solução plástica correspondente às necessidades da história. A ideia do vermelho que atravessa o filme inteiro (desde os créditos iniciais) foi a única verdadeiramente deliberada. Juntamente com Robby Müller, diretor de fotografia, o cineasta tentou pela primeira vez ligar as cores à história, ao invés de simplesmente ordená-las. De acordo com Wenders, “se este também se tornou um filme como eu nunca havia feito antes, foi apenas porque tentamos fazer justiça às paisagens e aos locais nos quais filmamos. A América, afinal de contas, é incrivelmente colorida” (10). É o carro vermelho de Jane que Travis e Hunter (com blusas vermelhas) seguem pelas rodovias depois que ela deposita o dinheiro no banco. Ao entrar no clube onde Jane trabalha, Travis (que usava um boné vermelho quando estava no deserto) será envolvido por luz vermelha. Ela está vestida de vermelho – no segundo e definitivo encontro estará vestindo preto. A solução descoberta para que a sequência do encontro entre Travis e Jane ultrapassasse o clichê dos filmes dramáticos foi a “gaiola” do peep-show. Para Philippe Dubois, a solução encontrada por Wenders se enquadra nas tentativas do cinema fazer diferente entre 1977 e 1987. Nos anos 1980, época da reciclagem generalizada de imagens e sons, época da “impureza pós-moderna”, não é mais possível filmar como antes, como nos planos filmados dez anos antes. Muitos cineastas saíram em busca de ultrapassar esses limites (11). Dubois cita a sequência do peep-show como um desses momentos, onde Wenders reinventa o padrão campo/contracampo:
“(...) Vejamos como Wim Wenders filma, na sequência chave de Paris, Texas, uma cena (clássica) de reencontro entre um homem e uma mulher. Sentindo que não pode mais fazê-lo segundo a velha e boa cenografia do campo/contracampo, ele inventa um dispositivo cênico complexo, tortuoso e perverso (um espaço de peep-show) para suprir esta falta e superar este bloqueio. No espaço do peep-show, os dois protagonistas poderão certamente se falar e se ver, mas apenas por intermédio de interfones e através de um vidro (a tela-espelho). E eles o farão, não ao mesmo tempo, mas alternadamente, segundo um jogo sutil de luz e obscuridade que torna visível quem está sob a luz, mas não lhe permite ver o outro que está na sombra, e vice-versa. Como se não bastasse toda essa obliquidade, Wim Wenders vai ainda inverter o jogo, voltando o dispositivo do peep-show contra ele mesmo pela inversão da luz [quando Travis vira o foco de luz em sua direção]. Maneira de ‘refletir’ o velho esquema do campo/contracampo marcando explicitamente, cenicamente, a ‘comutação’ de sentido dos olhares. Maneira também de significar metaforicamente a possibilidade de uma troca entre a sala escura e o outro lado da tela. (...) Outros elementos vêm ainda tornar mais complexa esta cena do peep-show: o fato de que o protagonista Travis tenha vindo ali uma primeira vez sem ter sido reconhecido e volta no dia seguinte; o fato de que cada personagem (escondido na sombra) deve virar de costas para falar com o outro, dando assim as costas ao vidro, como se falar e ver se excluíssem (...)” (12) (imagens abaixo, Wenders registra sistematicamente os deslocamentos dos personagens)
“Wenders parece fascinado, até obcecado pelo movimento. [...]
Migração eterna, vadiagem vaga e imprecisa, desejo de vagar sem
rumo, mania de locomoção incerta, versatilidade avassaladora,
ao mesmo tempo dominam e constituem o ritmo de seus filmes”
Migração eterna, vadiagem vaga e imprecisa, desejo de vagar sem
rumo, mania de locomoção incerta, versatilidade avassaladora,
ao mesmo tempo dominam e constituem o ritmo de seus filmes”
Lotte H. Eisner, Wim Wenders et l’Évasion, 1981 (13)
Ainda que Ulisses possa ter sito uma inspiração, ou quase isso, Ícaro faz parte do arsenal de Wenders há mais tempo. Para além do fato de que incorporar o movimento do mundo no travelling (o “plano-feito-viagem”) é parte da alma do cinema, Dubois se refere às imagens aéreas recorrentes em Wenders, os amplos travellings aéreos com helicópteros em muitas aberturas e encerramentos de seus filmes – as primeiras imagens de Paris, Texas, com o ponto de vista do gavião que logo vai pousar, vêm logo à lembrança (14). Wenders iniciou sua carreira profissional em 1970, mas apenas em 1984, com Paris, Texas, alcança sucesso comercial – a distribuidora norte-americana 20th Century Fox, que até então ignorava o filme, agora oferece um milhão de dólares para distribuição nos Estados Unidos. Nos áureos tempos do Cinema Novo Alemão, o cineasta havia ajudado a criar e era sócio da Filmverlag der Autoren em 1971, uma produtora e distribuidora de filmes independentes, a qual tinha uma participação em Paris, Texas. Contudo, não apenas repetiu a péssima assessoria dada a O Estado das Coisas, mas anunciou o filme como história de amor. Wenders rompe o contrato e entra em confronto com a Filmverlag. Na opinião de Buchka, é uma ironia que justamente a produtora e lar do Cinema Novo Alemão tenha entrado em confronto com Wenders em função de Paris, Texas, filme que inaugura uma nova tendência estética (15). Talvez nenhum outro elemento do filme tenha sido tão decisivo para o confronto com a Filmverlag, e, em última instância com o talvez agora (na década de 1980) defunto Cinema Novo Alemão, do que a sequência do diálogo entre Travis e Jane, cada um em sua “gaiola”. Assim Wenders resumiu a empreitada:
“No início, não pensei que seria possível trabalhar com um [vidro espelhado]. Pensei num [efeito especial]. Depois Robby Müller disse que tinha de tentar. Nós trabalhamos com uma grande quantidade de luz, como no tempo do cinema mudo. Fazia um calor infernal na ‘gaiola’ de Nastassja. Tínhamos de refazer sua maquiagem depois de cada tomada! Isso criou uma situação muito interessante, um desafio. Quase um ato heroico. Nastassja podia olhar diretamente para a câmera, algo que geralmente evitamos no cinema. Foi uma sensação muito intensa vê-la olhar diretamente para a lente sem que isso quebrasse a narrativa” (16)
Deserto da Culpa
“(...) Esboço fílmico de uma ideia de família,
um filme das imagens irrepresentáveis que
as pessoas fazem umas das outras (...)” (17)
Buchka acredita que apesar dos clichês do deserto do faroeste, em Paris, Texas Wenders teria sido capaz de ir além. Além de representar uma utopia negativa, o deserto do cineasta estreita as relações entre natureza e civilização. Walt, o irmão de Travis, é proprietário de uma fábrica de outdoors, letreiros gigantes cuja simulação dos produtos que anunciam compõe uma segunda pele daquele país (e do deserto naquele país): “A amplidão está para o deserto não domesticado assim como a publicidade para uma civilização consumista virada do avesso, que tem uma necessidade evidente de, a cada passo, fazer propaganda de si mesma (...)” (18). De acordo com Buchka, o poder das imagens, algo que também define a imagem dos Estados Unidos, se torna o calcanhar de Aquiles do “sonho americano”, um sonho que também é imagem. Ele se pergunta qual a aparência do sonho num país onde as pessoas não sabem mais ver, porque há muito tempo se acostumaram a receber o que lhes mostram? A relação entre Travis e Hunter só começam a melhorar quando cada um reconhece as particularidades do outro e sua individualidade. A partir de algumas cenas do filme caseiro, Hunter começa a reconhecer em Travis uma imagem de pai. Este, por outro lado, procura corresponder a essa imagem (pede ajuda à arrumadeira para montar um pai). O essencial, conclui Buchka, é que cada qual produziu uma imagem do outro e quer corresponder a ela, mesmo que seja preciso ir contra as convenções. Sintomático que o próprio Travis carregue as lembranças de uma relação problemática com seus pais, cuja história ele vai contando aos poucos para Walt e Hunter – Travis acredita ter sido concebido no encontro entre seus pais em Paris, no Texas (19). (imagens abaixo, três imagens de Travis e outra, abaixo à direita, de seu ponto de vista, olhando para as costas de Jane, sem reconhecê-la)
“Todos os personagens de Wenders, de Alice nas Cidades
à Paris Texas, e de O Amigo Americano a O Estado das Coisas,
[...] têm o olhar sonâmbulo... Eles foram anjos antes da hora”
à Paris Texas, e de O Amigo Americano a O Estado das Coisas,
[...] têm o olhar sonâmbulo... Eles foram anjos antes da hora”
Jean-Philippe Domecq,
a propósito do filme seguinte de Wim Wenders, Asas do Desejo, Positif, nº 319, setembro 1987 (20)
O pai de Travis desconfiava de que sua esposa havia sido uma prostituta. “por mais que ele a olhasse”, contou Travis à Hunter, “nunca a via”. Explicou que seu pai fazia piada disso para todo mundo, até que acabou acreditando em sua própria ilusão. Olhar e não ver, em Wenders isso pode mudar o destino de uma pessoa. Esta é a conclusão de Buchka, embora enfatize que o ponto não é a distância entre a ideia de uma pessoa e a pessoa real, trata-se apenas de um alarme. Wenders, Buchka continua, não é um realista, a ele importa definir o tipo de ideia fixa que se instalou numa mente. Pode ser uma utopia ou uma mania, se esta for causada por medos, o limite é a solidão. Travis repetiu o erro do pai e destruiu seu casamento com Jane - criou uma imagem para a esposa e acreditou nela -, mas acabou por reconhecer sua culpa. Ele foi o primeiro herói de Wenders a compreender o que fez. O conceito de culpa é algo novo no universo do cineasta. A separação do casal em Paris, Texas vai além das que ocorrem em filmes anteriores, onde os personagens antecipadamente encaravam como passageiras as amizades e relações amorosas.
“Essa culpa fez com que Travis – antes de se conscientizar – perdesse a voz, que vagasse emudecido por quatro anos no lugar nenhum do deserto. De volta a terra dos vivos, começa para ele a epifania, a penitência, que consiste em restabelecer a ordem nas relações de uma família na qual já não pode nem deve desempenhar um papel. Só quando aceitamos este móvel da ação é que podemos compreender o comportamento de Travis. Pois não é um comportamento racional, no sentido que a burguesia prática atual confere ao termo: Travis arranca o filho da proteção da família do irmão para conduzi-lo a uma mulher que ele, inconscientemente, continua acreditando ser uma prostituta” (21) (imagem abaixo, o filme caseiro mostrando uma família feliz)
“Eu só conheço homens e mulheres que viveram relações desfeitas
Quero dizer, aqueles que estão na casa dos trinta e que têm
catástrofes atrás de si, ou adiante ou estão dentro delas” (22)
Quero dizer, aqueles que estão na casa dos trinta e que têm
catástrofes atrás de si, ou adiante ou estão dentro delas” (22)
Com esta afirmação, Wim Wenders permite que compreendamos um pouco mais seus
filmes. Em No Decurso do Tempo, por exemplo, encontramos várias falas misóginas
O palco onde toda essa culpa se resolve é no peep-show, embora inicialmente Travis parece se render ao seu antigo medo (de que Jane seja uma prostituta) e se perde em perguntas que procuram provar para si mesmo que ela recebe homens por dinheiro. Foi justamente após esse primeiro encontro que um Travis bêbado contou a história de seus pais à Hunter. Para Buchka, é a partir do segundo encontro no peep-show que Travis confessa sua culpa, o que irá facilitar sua convivência com o erro e torná-lo capaz de renunciar à Jane e Hunter, como condição para reunir novamente mãe e filho. O vidro espelhado do peep-show se transforma num confessionário. Ainda que, em determinado momento, Travis chegue a posicionar o foco de luz de forma que Jane o veja, eles nunca mais irão se reencontrar. Depois de assistir, a uma distância segura, à reunião de Jane e Hunter, Travis volta para a estrada, agora motorizado com sua caminhonete. Buchka chama atenção para o outdoor que cruza o caminho do homem com a frase curta e amarga: “Juntos, faremos acontecer” (Together we make it happen). Por tudo isso, Buchka enxerga no filme algo que vai além do melodrama banal de família que poderia fazer dele apenas mais um entre outros:
“Paris, Texas, não é um filme sobre uma família que se desagregou – se fosse isso, sua beleza não o impediria de cair no kitsch -, mas o esboço fílmico de uma ideia de família, um filme das imagens irrepresentáveis que as pessoas fazem umas das outras. A diferença é sensível. E nela se funda a qualidade extraordinária do filme de Wenders. Pois o espectador não vê essas ideias e imagens – ao contrário, por exemplo, dos tão explícitos murais publicitários, que, por sua vez, simulam algo que não é, ou pelo menos oferecem algo muito diverso da mercadoria que louvam. Wenders narra aqui, portanto, duas histórias: a que vemos e outra invisível. Uma que trata da liberdade nas estradas, da inocência com que os homens se entregam a seus sonhos e necessidades, da solidão a que os condena sua individualidade. E outra, que narra as pressões íntimas, a culpa que se alimenta de falsas ideias, a penitência e o sacrifício que o reconhecimento da culpa (e o conhecimento de si) acarreta” (23) (imagem abaixo, durante o segundo encontro no peep-show, Travis irá se revelar)
Deserto das Almas Perdidas
Famílias disfuncionais eram comuns nos
filmes realizados pelo Cinema Novo Alemão
filmes realizados pelo Cinema Novo Alemão
De acordo com Peter Buchka, desde Paris, Texas se pode dizer que Wenders passa a acreditar na possibilidade da utopia da completa alteridade (24). Até então o pode-se dizer que o cineasta não se distinguia muito das características de alguns de seus colegas famosos do Cinema Novo Alemão, Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog, pelo menos até a caracterização de suas filmografias por Thomas Elsaesser em 1989 – curiosamente o mesmo ano da queda do muro de Berlim, cuja razão de existir tanto influenciou aos cineastas alemães do pós-guerra, naquilo que então se chamava Alemanha Ocidental. Para Fassbinder, identidade é sempre o ponto final de uma trajetória negativa, e as famílias são sempre incompletas ou tortas; existem esposas e mães, irmãs, irmãos ou amantes, mas raramente ou nunca pais ou uma figura paterna. Para Herzog, a insistência pessimista de seus heróis no isolamento e fruto da oposição entrelaçada de rebelião e submissão. O esforço dos heróis leva sempre a uma situação fútil irônica, eles são sempre rebeldes solitários, incapazes de solidariedade e sempre fracassados – o qual redime sua ambição e arrogância. O interesse de um filme como O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle, 1974), realizado por Herzog, é o complexo padrão psicanalítico: a fantasia de ser abandonado, órfão, com um relacionamento incerto em relação a todas as formas de socialização, em relação à identidade sexual e a maioridade, tentando sobreviver entre um bom pai substituto e uma imagem paterna ruim. Na medida em que remete ao grande Pai, o título original do filme aponta bem mais objetivamente tal complexidade: “cada um por si e Deus contra todos” (25).
“Em certo sentido, o interesse manifestado pelo Cinema Novo Alemão pela família não passa de uma variante, amarrada a referências históricas bem específicas [(por exemplo, como os milhões de soldados alemães que não voltaram para suas famílias)], do fenômeno da ‘sociedade sem pai’ e da ‘crise do patriarcado’, que são traços comuns à maior parte das sociedades ocidentais. (...) É significativo que algumas das produções do Cinema Novo Alemão que alcançaram maior sucesso no estrangeiro, por exemplo, Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972) e ou O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog, Paris, Texas, de Wim Wenders, ou mesmo Heimat: Uma Crônica da Alemanha (Heimat - Eine Deutsche Chronik, 1980-4), de Edgar Reitz, sejam consagradas ao tema do retorno do filho pródigo, ou à revolta dos órfãos, condenando a si mesmos ao exílio. Mas enquanto a maior parte dos filmes hollywoodianos gravitam em torno de uma figura duplamente deslocada do pai (que retorna, por exemplo, nos filmes da trilogia Indiana Jones, de Steven Spielberg, com traços amplificados, antes de desaparecer novamente), a maior parte dos filmes alemães, pelo contrário, retiram da ausência do pai histórias mais ou menos sentimentais ao estilo Kaspar Hauser” (26) (imagem abaixo, a fotografia do terreno que Travis comprou para ser feliz com Jane em Paris, no Texas)
“Em Wim Wenders os marginais sofrem essa espécie de ‘Unrast’[desassossego] típico alemão, essa agitação febril, inquietude ofegante,
transtorno, essa divagação onde se deixam levar à deriva que não é
mais ‘Wanderlust’ [desejo de viajar], mas uma forma de fuga suicida”
Lotte H. Eisner, Wim Wenders et l’Évasion, 1981 (27)
Pelo menos até a chegada de Paris, Texas, a obra de Wenders corrobora a constatação de que a família e a questão da identidade abastecem a narrativa padrão dos cineastas do Cinema Novo Alemão. De fato, explica Elsaesser, Wenders parece evitar ainda mais que Herzog tornar a família o centro emocional ou dramático da história. Geralmente, em Wenders encontramos apenas mães ou mães substitutas: O Medo do Goleiro Diante do Pênalti (Die Angst des Tormanns beim Elfmeter, 1972), Alice nas Cidades, Movimento em Falso. A rebelião quase não aparece, os conflitos entre pais e filhos são quase sempre deslocados, geralmente para rivalidade entre irmãos e laços homoeróticos ambíguos entre homens: O Amigo Americano (Der Amerikanische Freund, 1977), No Decurso do Tempo (Im Lauf der Zeit, 1976). Embora no último filme, quando Robert visita o pai, expresse seu conflito de infância ao escrever uma manchete onde o acusa de tê-lo afastado e induzido sua mãe ao suicídio. Enquanto isso, seu amigo Bruno visita a casa onde viveu sozinho com a mãe, numa ilha no meio do rio Reno. Em várias situações encontradas durante a deriva dos dois amigos pela fronteira da então Alemanha Ocidental apontam para um processo de deslocamento e substituição que torna referentes implícitos a Alemanha e a família alemã. A cultura popular norte-americana funciona aqui como compensação por uma vida insatisfatória em família e como lar substituto. A busca dos protagonistas exclusivamente masculinos dos filmes mais conhecidos de Wenders até Paris, Texas está frequentemente ligada a uma oposição entre Alemanha e Estados Unidos. Todos envolvem homens viajando ao longo de fronteiras e limites, numa versão do interesse de Herzog em testar extremos de situações e estados mentais.
“Desta forma, exílio e viagem se tornam sobre determinados: no próprio ato da revolta contra a família, representam um retorno a suas funções de criação. É assim que se poderia ler o conto de fadas contado por Philip para Alice, [em Alice nas Cidades], abandonada por sua mãe em Nova York e Amsterdã, e buscando em vão por sua avó no [vale do] Ruhr [na então Alemanha Ocidental]. Um garoto deixado acidentalmente na floresta é levado para passear e guiado por todo tipo de ajudantes, animais e humanos, até que afinal um caminhão de estrada o leva para o mar onde, miraculosamente, sua mãe espera por ele. Esse retorno à mãe, por de um homem que se tornou criança novamente, que experimentou a destruição da família como um trauma, tornando-o literalmente esquizofrênico, é claro, é a estória de Paris, Texas” (28) (imagem abaixo, Hunter aguarda Travis do lado de fora do clube onde o pai encontrou Jane trabalhando no peep-show)
Deserto do Visível e do Invisível
Aquilo que até Paris, Texas Wenders não
conseguia tornar visíveis eram os sentimentos
conseguia tornar visíveis eram os sentimentos
A fonte da inquietação dos personagens, a incapacidade de captar a distância entre realidade e sonho, geradora da culpa que os engole, só não consome o louco que no viaduto anuncia o fim do mundo. Na opinião de Wenders, este é um dos principais personagens de Paris, Texas, pois seu pequeno monólogo amplia a situação daquela família para englobar a humanidade: aquilo que fazem uns aos outros fazem também a Terra. Toda infelicidade e frustração dos personagens de Wenders até Paris, Texas, encontra neste filme finalmente uma porta de saída. Para resolver a disparidade entre a realidade e a utopia, entre o eu e os outros, que ninguém conseguia visualizar operando em si mesmos, se buscava uma harmonia fora de si, no mundo exterior. O cineasta concluiu que tal coisa era um beco sem saída para ele mesmo, que repetia a situação em seus personagens filme após filme (ou pelo menos bastante claramente nas perambulações em No Decurso do Tempo e O Estado das Coisas). A pátria de Travis é aquele pedaço de chão que comprou sem nunca ter visto, mas onde acredita que ele mesmo começou e onde poderia realizar sua ideia de família e pátria. Segundo Buchka, Wenders finalmente encontrou uma maneira de tornar visível o invisível que não torna a cena estranha, apenas evidenciando o humor momentâneo do personagem (quando Travis foge do irmão, passa diante de um anúncio de motel que indica o que ainda está por vir [Marathon Motel]; ou quando lustra os sapatos da família, evidenciando seu desconforto com a situação; o falcão da primeira sequência; a sombra dos aviões decolando; a estátua da liberdade na parede do prédio do peep-show) (29).
“Mas de onde deriva a força emocional incontestável de Paris, Texas? De certo, não da súbita dedicação de Hunter, ou das lágrimas de Jane, ou da renúncia de Travis, que no final sobe em seu carro e parte no crepúsculo, assim como outrora os heróis dos westerns clássicos montavam em seus cavalos e partiam, depois de cumprida a missão – eternamente sem repouso, sem pátria. Em vez de se apoiar em tais elementos, Wenders prefere aproveitar a dupla estrutura de sua dramaturgia [(são paralelas, mas dialéticas, complementando-se uma à outra; a resposta para uma está na outra e vice-versa; um plano narrativo preenche as lacunas do outro)] – e isto é absolutamente novo na história do cinema, se não considerarmos as longínquas tentativas de Robert Bresson, que além do mais apontavam evidentemente em outra direção. Dissemos acima que aqui são narradas duas histórias, uma visível, outra invisível; a seguir sugerimos que cada uma leva à soluções distintas: a realização do amor e a renúncia a ele; estas soluções são mais uma vez ampliadas diferenciadamente pela frustração, a nível de conteúdo, e pela promessa, a nível formal. Pois bem, agora essas diferenças estruturais desembocam num sentido unitário, composto de forma genial: justamente, naquela maneira delicada de lidar com os sentimentos, que pedem uma representação, e não uma dissecação, uma sensualidade perceptível, mas não propositadamente descarada” (30) (imagens abaixo, sentimento de Travis)
Em Paris, Texas, Wim Wenders representa os sentimentos
em imagens, mas sem os truques calculados do melodrama
em imagens, mas sem os truques calculados do melodrama
Wenders sempre desconfiou da gratuidade de imagens belas, mas agora tudo mudou e o cineasta já não se impõe mais uma proibição de representar sentimentos em imagens. Talvez porque, Buchka sugeriu, até Paris, Texas ainda não tivesse encontrado imagens para as emoções. Até então, apenas alusões aos sentimentos: através de paráfrase de textos literários (Summer in the City, 1971), de sonhos (Movimento em Falso, No Decurso do Tempo), ou de canções em quase todos os filmes. Ainda segundo Buchka, Paris, Texas não tem nada disso, mas também não existem sentimentos provocados por truques típicos do melodrama. O modo como o melodrama induz os sentimentos é para Wenders uma traição da ideia utópica contida neles. Esta postura o coloca no extremo oposto de seu conterrâneo Fassbinder. Wenders explicou para Laurent Tirard que, antes de Paris, Texas, as imagens eram mais importantes do que a história – Tirard não datou a entrevista, que publicou em 2002. A partir daí, a necessidade de fazer belas imagens passou ao segundo plano. Para Wenders, o dever do diretor é acima de tudo ter algo a dizer, ter o desejo de contar. Em sua experiência com Paris, Texas, passou a ver a história como um rio no qual devemos entrar para nos deixar levar, elas existem sem nós. Wenders não apenas admitiu preferir realizar filmes sem estar preso a um roteiro detalhado, como passou a encarar os atores de outra forma (trabalhar mais com eles, compreender seus métodos, e só então construir a cena, no próprio set de filmagem), quando teve a oportunidade de dirigir uma peça de teatro pouco antes de filmar Paris, Texas (31). Wenders termina sua entrevista retornando à questão do visível e do invisível levantada por Buchka:
“(...) Enfim, no que diz respeito aos erros que não devem ser cometidos, há muitos, e creio que cometi todos eles. Mas o maior é sem dúvida o de pensar que é preciso mostrar tudo o que se está tentando contar. No domínio da violência, por exemplo, parece que ninguém consegue encontrar outra alternativa além de mostrar, ao passo que o cinema com frequência chega ao seu mais alto grau de potência quando renuncia justamente a mostrar aquilo que ele pode evocar” (32) (imagem abaixo, o filme caseiro mostrando uma família feliz)
Família no Deserto
Intrusão da vida na ficção, o filme caseiro projetado em Paris, Texas
foi feito por Wenders. Os primeiros filmes dos Lumière, no começo
do cinema, também são filmes caseiros de situações cotidianas (33)
foi feito por Wenders. Os primeiros filmes dos Lumière, no começo
do cinema, também são filmes caseiros de situações cotidianas (33)
Depois de assistirem ao filme caseiro onde Travis se viu acompanhado por Jane e Hunter se viu acompanhado por Travis, o garoto vai chamá-lo de pai pela primeira vez. Pelo jeito que Travis reagiu quando Jane apareceu, Hunter acha que ele ainda a ama. De qualquer maneira, lamentou Hunter numa espécie de comentário pós-moderno, não era Jane, apenas a imagem dela num filme, “há muito tempo atrás, numa galáxia muito, muito distante...” – nesta fala de Hunter, remete a um blockbuster de Hollywood por décadas, Guerra nas Estrelas (Star Wars, direção George Lucas, 1977); sua própria roupa de cama reproduz o tema. Travis finalmente conseguiu a atenção de Hunter e voltaram juntos da escola do garoto. Enquanto isso, Anne começa a demonstrar ciúmes da possibilidade de Travis levar Hunter embora. Ela reclama com Walt que ele fica “empurrando” pai para o filho e vice-versa. Percebendo que não conseguirá nada de Walt, Anne resolve contar a Travis o que diz ser um segredo. Jane decidiu que Hunter ficaria com Anne e Walt, porque não consegue ser uma boa mãe e fazia ligações telefônicas de algum lugar no Texas (Houston). Disse ainda que Jane pediu para abrir uma conta de banco para enviar dinheiro para o filho, depois parou de ligar. Anne parece induzir Travis a procurar por Jane bem longe dali. Ela só não imaginava que Hunter iria preferir procurar a mãe com Travis, então ela se deita na cama do garoto e desiste de lutar. Quando Travis se mostrou a Jane no peep-show, perguntou a ela por que não ficou com Hunter. Ela respondeu que não tinha o que sabia que ele precisava e se recusava a usá-lo para preencher seu vazio.
“Travis solta o interfone e se retira. Com a ‘missão cumprida’, saída de campo e afastamento voluntário. ‘Ele vai desaparecer novamente’, previne Wim [Wenders]. Ele renuncia a essa mulher e a essa criança que ele ama, mas assim torna deles o filme, que continuará com os dois. Este poderia ser então o começo de um novo filme, desta vez sem Travis...’. Sam Shepard explica: ‘O que Travis descobriu, é que não basta recolher os pedaços estilhaçados de seu passado. É ele mesmo que deve juntar essas peças. É a si mesmo que deve agora reencontrar. E isto, deve fazer sozinho’” (34) (imagem abaixo, o segundo desencontro entre Travis e Jane)
Paris, Texas é mais a respeito de Jane do que de Travis
Embora a retirada de Travis tenha acontecido depois de ele “fazer o bem”, parece pouco provável que não se trate de mais uma “fuga suicida”, como escreveu Lotte Eisner em 1981 a respeito dos personagens masculinos de Wenders. De qualquer forma, como disse ela mesma, os personagens do cineasta sempre terminal voltando para uma espécie de “migração eterna”. Afinal, como próprio Wenders admitiu certa vez: “Eu só conheço homens e mulheres que viveram relações desfeitas”. De fato, numa entrevista em 1992, Wim Wenders define a situação de Travis como uma espécie de estado obsessivo onde ele não conseguia enxergar o Outro, no caso, Jane. De fato, é isso que o próprio Travis reconhece em algumas passagens da gravação que deixou para Hunter:
“(...) Existe certa obsessão em todo amor, em todo ato de se apaixonar, porque se apaixonar também é uma espécie de doença; apaixonados, perdemos a nós mesmos e o senso de realidade. Isso também está ligado a certa forma de narcisismo, porque às vezes você percebe aquilo pelo que você se apaixonou é você mesmo, e não o Outro. É disso que fala Paris, Texas, é o que Travis percebe. Ele vai embora ao final porque percebe que, [não obstante estivesse] apaixonado pelo Outro, nunca realmente ‘viu’ o Outro (35)
Wenders esclarece definitivamente as dúvidas daqueles que enxergam em Paris, Texas um filme a respeito de Travis – se quiser, um filme sobre a crise da masculinidade na modernidade. Pode até ser, faz sentido – como faz sentido falar em história de amor. Contudo, na verdade, apenas na medida em que a mulher é o centro da atenção masculina. Assim, o papel “menor” de Jane na tela não pode ser mais relevante do que o papel dela nas decisões da vida de Travis. Muitas são as interpretações de Paris, Texas como um filme sobre a família disfuncional (que na prática é a família disfuncional alemã), ou um filme de amor, ou sobre Travis, ou ainda sobre o movimento. Walter Donohue questionou o fato de que, entre Paris, Texas, Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987) e Até o Fim do Mundo (Bis ans Ende der Welt, 1991), a mulher se torna um personagem cada vez mais central. Wenders definiu Paris, Texas como um filme a respeito de uma mulher e, como Até o Fim do Mundo, que foi escrito logo após (mas só foi lançado muito depois) e antes de Asas do Desejo, corresponde ao interesse de escrever algo onde a mulher esteja no centro:
“No final de Paris, Texas Travis desaparece, e o ponto de vista masculino, por assim dizer, desaparece com ele, deixando a mulher e seu pequeno filho. Naquela cena em que Nastassja Kinski envolve Hunter com seus braços, realmente me pareceu como se toda uma carga de restrições tivesse sido superada, e daquele momento em diante eu podia contemplar um filme de maneira diferente, olhar para um filme através de um ponto de vista feminino, ou olhar para um filme que poderia ter muitos personagens distintos. Esse foi o início de um novo embasamento para trabalhar” (36) (imagem abaixo, durante o primeiro encontro no peep-show, e ainda sem saber que se trata do pai de seu filho, Jane procura compreender o que deseja seu estranho cliente )
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Notas:
1. BOUJUT, Michel. Wim Wenders. Une Voyage Dans ses Films. Paris: Flammarion, 1986. P. 156.
2. Idem, pp. 145-8, 153-6.
3. Ibidem, p. 145.
4. Ibidem, p. 153.
5. Ibidem, p. 146.
6. Ibidem, p. 147n1.
7. Ibidem, p. 158.
8. BUCHKA, Peter. Olhos não se Compram: Wim Wenders e seus Filmes. Tradução Lúcia Nagib. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. P. 133.
9. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 149.
10. Idem, p. 154.
11. DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. Tradução Mateus Araújo Silva. São Paulo: Cosac Naify, 2004. P. 138.
12. Idem, p. 141.
13. EISNER, Lotte. Wim Wenders et l'évasion. In: Wim Wenders. Paris: Ramsay Poche Cinéma, Caméra Stylo, nº 1, 2ª ed., 1987. P. 5.
14. DUBOIS, Philippe. Op. Cit., pp. 184-6.
15. BUCHKA, Peter. Op. Cit., pp. 23-4.
16. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 158.
17. BUCHKA, Peter. Op. Cit., p. 138.
18. Idem, p. 134.
19. BUCHKA, Peter. Op. Cit., pp. 133-7.
20. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 178.
21. BUCHKA, Peter. Op. Cit., p. 137.
22. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 91.
23. BUCHKA, Peter. Op. Cit., p. 138.
24. Idem, p. 142.
25. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. Pp. 221, 223, 226, 228, 230-2.
26. --------------------------. R.W. Fassbinder. Un Cinéaste d’Allemagne. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005. Pp. 201-2.
27. EISNER, Lotte. Op. Cit.
28. ELSAESSER, Thomas. 1989. Op. Cit., p. 232.
29. BUCHKA, Peter. Op. Cit., pp. 138-142.
30. Idem, pp. 141, 142.
31. TIRARD, Laurent. Grandes Diretores de Cinema. Tradução Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Pp. 118-9, 120-1, 122-3.
32. Idem, p. 123.
33. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 152.
34. Idem, p. 158.
35. DONOHUE, Walter. Revelations. An interview with Wim Wenders. London: Sight & Sound, vol. 1, nº 12, April 1992. Pp. 11-2.
36. Idem, p. 8.