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Roberto Acioli de Oliveira

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18 de fev. de 2017

Wim Wenders e o Deserto de Nossas Vidas


 Paris, Texas até foi seu primeiro filme sobre os Estados Unidos, 
talvez influenciado pela leitura de um poema épico da Grécia Antiga. 
Contudo,  para  o  próprio  cineasta, o filme é sobre uma mulher 

Deserto do Medo do Medo

Nas imagens aéreas de um deserto dos Estados Unidos logo vemos uma figura humana caminhando no meio do nada. Uma águia pousa e olha para ele, então percebemos que era o ponto de vista dela que estávamos acompanhando. É Travis, vestido com terno e boné ele toma seu último gole de água. Não parece, mas ele está voltando para o mundo dos vivos após perambular por quatro anos no meio do nada. Imerso num mutismo absoluto, primeiro ele encontra um bar, onde desmaia. A seguir, acorda numa clínica. Com pesado sotaque alemão, o médico que o acolhe encontra o numero de telefone de Walt, o irmão de Travis, que vem buscá-lo. Anne, a esposa de Walt, esboça certa preocupação com a perspectiva do retorno de Travis. Quando Walt chega, ele já sumiu. Mais de uma vez, Walt tem de procurar o irmão que foge. Os dois se olham em silêncio e Travis entra no carro. Após nova tentativa de fuga, Walt conta que ele e Anne adotaram Hunter, o filho de Travis. Até então, ele não havia pronunciado qualquer palavra, os dois ainda estavam no caminho para Los Angeles quando Travis diz: “Paris...Paris...Podemos ir lá agora?” Walt pensa na capital francesa, mas é um lugar desértico no Texas onde Travis comprou um terreno. Walt o está levando para sua casa na Califórnia, mas Travis se recusou a pegar um avião. Travis mostra ao irmão uma imagem com o cartaz de “vende-se” no meio do deserto – era para lá mesmo que ele estava indo esse tempo todo? Na casa de Walt, Travis e Hunter são apresentados. Longo silêncio. Hunter diz olá. No dia seguinte, Travis já limpou os sapatos da família quando Hunter chega, os dois se olham timidamente. Travis fará uma primeira tentativa de buscar Hunter na escola, mas não dá certo. (imagem acima, Jane se vira na direção do intruso, mas não pode ver que se tratava de Travis; abaixo, ele grava uma mensagem para Hunter confessando seus medos)


Ao  admitir  sua  culpa  por  separar  mãe e filho, Travis fala do medo
de enfrentar o medo de consertar seus erros. O tema do medo do medo
já aparece em Alice nas Cidades (1974) e O Amigo Americano (1977) (1)

Naquela noite Walt projeta um antigo filme caseiro. Quando a imagem de Jane aparece, Travis fecha os olhos por alguns segundos. Naquela noite Hunter o chamará de pai pela primeira vez. No dia seguinte, vestido com o terno de um “pai digno”, Travis aguarda Hunter na saída da escola. Eles chegam em casa como pai e filho. Sua nora explica que ela quase não se comunica com eles, a não ser por um cheque que Jane deposita uma vez por mês num banco em Houston. Agora Travis compra uma caminhonete para procurar Jane. Para desespero de Anne, Hunter acaba se juntando a Travis, até que a descobrem quando está depositando dinheiro. Seguem-na até um clube masculino na periferia, com uma irônica estátua da liberdade pintada na fachada dos fundos. Hunter espera no carro. Quando o dono avisa que as mulheres estão noutro lugar, Travis se retira e Jane se vira para olhar, mas não o vê. Ele encontra as cabines de peep-show, onde pode falar com elas sem ser visto. Numa segunda tentativa, é Jane quem aparece. Sem se revelar, com rodeios pergunta se ela é faz programa com os clientes. Ela explica que não. Ele sai confuso. De volta ao carro, Hunter espera em vão por informação. Travis retorna ao peep-show e Jane agora fica sabendo quem é – ele confessa seus erros e lembra que ela o acusou de aprisioná-la através de uma gravidez. Depois de reunir mãe e filho, Travis some novamente. O pai deixa uma gravação para Hunter explicando que foi ele que os separou, mas que temia não se capaz de confessar pessoalmente. Disse que nunca seria capaz de consertar o que ele fez, e que tem medo de fugir de novo. Medo do que pode encontrar. Medo de não ser capaz de enfrentar esse medo. (imagem abaixo, Travis no deserto, apesar de caminhar em linha reta, não se livra do círculo vicioso do pesadelo que criou para si mesmo)

Deserto de Ulisses e do Contracampo


Não é história de amor e também não  é  melodrama com família
desfeita, embora mostre relações afetivas problemáticas. Paris, Texas 
aponta para o movimento, do interior para o exterior e vice-versa

Em Paris, Texas (1984), o cineasta alemão Wim Wenders realizou seu primeiro filme a respeito dos Estados Unidos. De fato, Wenders já havia mostrado os Estados Unidos em Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974) e Hammett - Mistério em Chinatown (Hammett, 1982) e O Estado das Coisas (Der Stand der Dinge, 1982). Contudo, Michel Boujut afirma que estes não são filmes a respeito do país, mas sobre a relação do cineasta com ele. Boujut adiciona outra referência ao remeter à fala do produtor norte-americano Jeremy Prokosch em O Desprezo (Le Mépris, direção Jean-Luc Godard, 1963), que disse: “precisamos de um diretor alemão para filmar a Odisseia”. Boujut acredita que o texto grego entrou mais como um viés do que uma inspiração direta, embora admita que a referência em O Desprezo pudesse servir de antecipação do Ulisses (Odisseu) amnésico de Paris, Texas. Boujut considera Hunter um irmão de Alice, a garotinha solta no mundo em Alice nas Cidades, em busca da mãe que a abandonou. Duas crianças em deslocamento, nas típicas viagens erráticas de Wim Wenders (2). “[Paris, Texas, disse Wenders], o vejo como o filme que desejei realizar desde o início. Tinha a impressão de sempre ter um filme para fazer a respeito dessa América com a qual sempre sonhei. Havia também uma vontade de acabar com essa minha fixação em relação à América. Tal fixação, era sobretudo o desejo de filmar nos grandes espaços que encantaram minha infância...” (3). Eis porque, além das tantas razões do mundo da ficção, é inútil questionar o fato de que a verdadeira Paris, no Texas, não fica numa área desértica, ou ainda que a sinalização das placas nem sempre confira com os destinos de Travis e Hunter em sua busca por Jane. (imagem abaixo, segundo e último diálogo entre Travis e Jane)


(...) Nós esperamos [por Jane] até o fim com Travis, na incerteza
e no medo...  Eu  nunca  tinha feito um filme de amor,  nunca  tinha
penetrado   na   intimidade  entre  um  homem  e  uma  mulher”

Wim Wenders a respeito de Travis e Jane (4)

De acordo com Boujut, Paris, Texas marcou uma virada essencial na obra de Wim Wenders. Entre outras coisas, o cineasta reinventa o melodrama de família. Além disso, abandona também as “muletas” da cinefilia: “Eu não podia mais falar da morte do cinema. Depois de O Estado das Coisas, um filme totalmente narcísico que questionava o cinema e seus meios, para mim tratava-se verdadeiramente de reencontrar a alegria de narrar, um domínio da história. Sem isso, não acredito que poderia sobreviver enquanto cineasta!” (5) Foi então que Wenders pediu ajuda a dois amigos americanos, Sam Shepard (que quinze anos antes havia colaborado no roteiro de Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni), contribuiria no roteiro, e Ry Cooder, na música – Wenders já havia pedido a ajuda de ambos, em vão, para Hammett - Mistério em Chinatown. Embora os dois sejam norte-americanos, lembrou Wenders, possuíam a mesma relação do cineasta com os Estados Unidos. Shepard, por exemplo, tinha o mesmo interesse pela estrada e a viagem. Wenders conta que começou a fazer uma espécie de roteiro a partir de um livro de Shepard, Motel Chronicles. Ela começaria por um tipo que aparece no deserto, amnésico, após ter sofrido um grande choque afetivo, e que retornava ao “mundo dos vivos” para reencontrar sua família. Inicialmente, concluiu Wenders, havia pensado no próprio Shepard como protagonista, mas desistiu porque o papel era próximo demais do amigo e seria redundante. Durante as filmagens, Wenders pretendia filmar um pouco em muitos lugares do país, mas Shepard sugeriu que ele encontraria tudo no Texas, que chamou de uma espécie de miniatura dos Estados Unidos. O cineasta testou a hipótese e concordou com o amigo.

“Foi durante essas viagens que ele realizou as fotografias objeto de uma exposição no Centro Georges Pompidou na primavera de 1986. Elas foram reunidas no álbum Written in the West (1987). ‘O oeste [norte-]americano, disse Wim, é sempre o lugar mítico onde a magia continua sem explicação. Penetramos aí e somos enfeitiçados por sua luminosidade, por suas cores, pela infinidade de seu espaço e por seu horizonte. Percebemos que essa paisagem foi concebida e conquistada pelo sonhos...’ Mistério e hiper-realismo que animam muitos signos de um passado caído, tais como outdoors, [letreiros em] neon, placas com sinais de trânsito, grafite... Uma chave para penetrar na obra de Wim Wenders” (6) (imagem abaixo, no primeiro diálogo entre Travis e Jane, ele tenta provar para si mesmo sua hipótese de que ela sempre foi uma prostituta)


As cenas no peep-show, entre Travis e Jane,
foram  escritas  por  Wim Wenders  e  Kit Carson,
o  pai  do  garoto  que  atua  como  Hunter (7)

O tempo passou, o roteiro continuava inconclusivo mesmo depois que as próprias filmagens haviam começado, até que Shepard teve de se afastar por motivo de trabalho e Wenders ficou sozinho. Foi então que recebeu a ajuda do escritor texano L. M. Kit Carson, pai de Hunter Carson, o menino que o cineasta escolheu para atuar como filho de Travis. Shepard era informado das mudanças no roteiro, das quais gostou muito, e diariamente ditava novos diálogos pelo telefone. Mas é preciso dizer que Shepard não via a situação como problemática, ele mesmo afirmou estar bastante gratificado com a forma de trabalho – até a metade do caminho, eles nunca se perguntaram “para onde estamos indo?”; disse ainda que até então essa foi sua melhor experiência com um roteiro. Na opinião de Wenders, a música de Ry Cooder está tão colada no filme que parecem feitos ao mesmo tempo. As imagens da abertura, seguindo o ponto de vista da águia que logo vemos pousar numa rocha, é parte da ilusão do faroeste que nos acostumamos a ver por décadas - estamos no Parque Nacional Big Bend, num lugar chamado Devil’s Graveyard, próximo à fronteira com o México. Um alucinado avança em linha reta tropeçando no cascalho seco e esturricado como tudo a sua volta. Retorna de lugar nenhum para se reconectar com o mundo dos vivos... Para Boujut, Paris, Texas se abre sem medo e sem culpa deste super clichê cinéfilo. Em estado de mutismo absoluto, Travis lembra Mignon, o personagem de Nastassja Kinski em Movimento em Falso (Falsche Bewegung, 1975), outro filme de estrada de Wenders. Fazendo referência à biografia do cineasta alemão, Peter Buchka vai um pouco além:

“Deve-se admitir que se trata, sem dúvida, de uma imagem muito europeia e até transfigurada da América, que nos próprios [norte-]americanos, sobretudo, é claro, nos nova-iorquinos mais consegue provocar irritação, porque mitifica algo que é a realidade cotidiana à volta deles. Para explicar o que aqui, depois de tantas tentativas, encontra expressão, temos talvez que lembrar a fascinação do garoto [(Wenders)] do Ruhrpott [(Vale do Ruhr, na Alemanha)] pelos westerns, onde via um homem montar seu cavalo e viajar cinco dias para atingir o povoado mais próximo. Até mesmo o aluno da Faculdade de Cinema contrapunha – em Três LP’s Americanos [(3 amerikanische LP's, 1969), um dos curtas-metragens que Wenders realizou lá, com a participação do próprio Buchka] – a utopia de uma liberdade sem fronteiras à estreiteza abafada das cidades alemãs (...)” (8) (imagem abaixo, Travis se revela para Jane, porém nunca mais estará ao alcance de sua mão)


(...)   Curiosamente,   meu   primeiro  personagem  foi  o  de
Nastassja Kinski. Era quem eu queria, mesmo antes de iniciar
o roteiro. Por acaso, ela estava livre e gostou da história (...)

Wim Wenders (9)

Wenders reiterou que ele e a equipe se esforçaram em não seguir modelos, mostrando o mundo que encontrassem (nas locações), ajustando uma solução plástica correspondente às necessidades da história. A ideia do vermelho que atravessa o filme inteiro (desde os créditos iniciais) foi a única verdadeiramente deliberada. Juntamente com Robby Müller, diretor de fotografia, o cineasta tentou pela primeira vez ligar as cores à história, ao invés de simplesmente ordená-las. De acordo com Wenders, “se este também se tornou um filme como eu nunca havia feito antes, foi apenas porque tentamos fazer justiça às paisagens e aos locais nos quais filmamos. A América, afinal de contas, é incrivelmente colorida” (10). É o carro vermelho de Jane que Travis e Hunter (com blusas vermelhas) seguem pelas rodovias depois que ela deposita o dinheiro no banco. Ao entrar no clube onde Jane trabalha, Travis (que usava um boné vermelho quando estava no deserto) será envolvido por luz vermelha. Ela está vestida de vermelho – no segundo e definitivo encontro estará vestindo preto. A solução descoberta para que a sequência do encontro entre Travis e Jane ultrapassasse o clichê dos filmes dramáticos foi a “gaiola” do peep-show. Para Philippe Dubois, a solução encontrada por Wenders se enquadra nas tentativas do cinema fazer diferente entre 1977 e 1987. Nos anos 1980, época da reciclagem generalizada de imagens e sons, época da “impureza pós-moderna”, não é mais possível filmar como antes, como nos planos filmados dez anos antes. Muitos cineastas saíram em busca de ultrapassar esses limites (11). Dubois cita a sequência do peep-show como um desses momentos, onde Wenders reinventa o padrão campo/contracampo: 

“(...) Vejamos como Wim Wenders filma, na sequência chave de Paris, Texas, uma cena (clássica) de reencontro entre um homem e uma mulher. Sentindo que não pode mais fazê-lo segundo a velha e boa cenografia do campo/contracampo, ele inventa um dispositivo cênico complexo, tortuoso e perverso (um espaço de peep-show) para suprir esta falta e superar este bloqueio. No espaço do peep-show, os dois protagonistas poderão certamente se falar e se ver, mas apenas por intermédio de interfones e através de um vidro (a tela-espelho). E eles o farão, não ao mesmo tempo, mas alternadamente, segundo um jogo sutil de luz e obscuridade que torna visível quem está sob a luz, mas não lhe permite ver o outro que está na sombra, e vice-versa. Como se não bastasse toda essa obliquidade, Wim Wenders vai ainda inverter o jogo, voltando o dispositivo do peep-show contra ele mesmo pela inversão da luz [quando Travis vira o foco de luz em sua direção]. Maneira de ‘refletir’ o velho esquema do campo/contracampo marcando explicitamente, cenicamente, a ‘comutação’ de sentido dos olhares. Maneira também de significar metaforicamente a possibilidade de uma troca entre a sala escura e o outro lado da tela. (...) Outros elementos vêm ainda tornar mais complexa esta cena do peep-show: o fato de que o protagonista Travis tenha vindo ali uma primeira vez sem ter sido reconhecido e volta no dia seguinte; o fato de que cada personagem (escondido na sombra) deve virar de costas para falar com o outro, dando assim as costas ao vidro, como se falar e ver se excluíssem (...)”  (12) (imagens abaixo, Wenders registra sistematicamente os deslocamentos dos personagens)


“Wenders  parece  fascinado,  até  obcecado  pelo  movimento.  [...] 
Migração  eterna,  vadiagem  vaga  e  imprecisa, desejo de vagar sem
rumo,  mania   de   locomoção   incerta,   versatilidade  avassaladora,
ao mesmo tempo dominam e constituem o ritmo de seus filmes”

Lotte H. Eisner, Wim Wenders et l’Évasion, 1981 (13)

Ainda que Ulisses possa ter sito uma inspiração, ou quase isso, Ícaro faz parte do arsenal de Wenders há mais tempo. Para além do fato de que incorporar o movimento do mundo no travelling (o “plano-feito-viagem”) é parte da alma do cinema, Dubois se refere às imagens aéreas recorrentes em Wenders, os amplos travellings aéreos com helicópteros em muitas aberturas e encerramentos de seus filmes – as primeiras imagens de Paris, Texas, com o ponto de vista do gavião que logo vai pousar, vêm logo à lembrança (14). Wenders iniciou sua carreira profissional em 1970, mas apenas em 1984, com Paris, Texas, alcança sucesso comercial – a distribuidora norte-americana 20th Century Fox, que até então ignorava o filme, agora oferece um milhão de dólares para distribuição nos Estados Unidos. Nos áureos tempos do Cinema Novo Alemão, o cineasta havia ajudado a criar e era sócio da Filmverlag der Autoren em 1971, uma produtora e distribuidora de filmes independentes, a qual tinha uma participação em Paris, Texas. Contudo, não apenas repetiu a péssima assessoria dada a O Estado das Coisas, mas anunciou o filme como história de amor. Wenders rompe o contrato e entra em confronto com a Filmverlag. Na opinião de Buchka, é uma ironia que justamente a produtora e lar do Cinema Novo Alemão tenha entrado em confronto com Wenders em função de Paris, Texas, filme que inaugura uma nova tendência estética (15). Talvez nenhum outro elemento do filme tenha sido tão decisivo para o confronto com a Filmverlag, e, em última instância com o talvez agora (na década de 1980) defunto Cinema Novo Alemão, do que a sequência do diálogo entre Travis e Jane, cada um em sua “gaiola”. Assim Wenders resumiu a empreitada:

“No início, não pensei que seria possível trabalhar com um [vidro espelhado]. Pensei num [efeito especial]. Depois Robby Müller disse que tinha de tentar. Nós trabalhamos com uma grande quantidade de luz, como no tempo do cinema mudo. Fazia um calor infernal na ‘gaiola’ de Nastassja. Tínhamos de refazer sua maquiagem depois de cada tomada! Isso criou uma situação muito interessante, um desafio. Quase um ato heroico. Nastassja podia olhar diretamente para a câmera, algo que geralmente evitamos no cinema. Foi uma sensação muito intensa vê-la olhar diretamente para a lente sem que isso quebrasse a narrativa” (16)

Deserto da Culpa 


(...) Esboço fílmico de uma ideia de família,
 um  filme  das  imagens  irrepresentáveis  que
 as  pessoas  fazem  umas  das  outras (...)(17)

Buchka acredita que apesar dos clichês do deserto do faroeste, em Paris, Texas Wenders teria sido capaz de ir além. Além de representar uma utopia negativa, o deserto do cineasta estreita as relações entre natureza e civilização. Walt, o irmão de Travis, é proprietário de uma fábrica de outdoors, letreiros gigantes cuja simulação dos produtos que anunciam compõe uma segunda pele daquele país (e do deserto naquele país): “A amplidão está para o deserto não domesticado assim como a publicidade para uma civilização consumista virada do avesso, que tem uma necessidade evidente de, a cada passo, fazer propaganda de si mesma (...)” (18). De acordo com Buchka, o poder das imagens, algo que também define a imagem dos Estados Unidos, se torna o calcanhar de Aquiles do “sonho americano”, um sonho que também é imagem. Ele se pergunta qual a aparência do sonho num país onde as pessoas não sabem mais ver, porque há muito tempo se acostumaram a receber o que lhes mostram? A relação entre Travis e Hunter só começam a melhorar quando cada um reconhece as particularidades do outro e sua individualidade. A partir de algumas cenas do filme caseiro, Hunter começa a reconhecer em Travis uma imagem de pai. Este, por outro lado, procura corresponder a essa imagem (pede ajuda à arrumadeira para montar um pai). O essencial, conclui Buchka, é que cada qual produziu uma imagem do outro e quer corresponder a ela, mesmo que seja preciso ir contra as convenções. Sintomático que o próprio Travis carregue as lembranças de uma relação problemática com seus pais, cuja história ele vai contando aos poucos para Walt e Hunter – Travis acredita ter sido concebido no encontro entre seus pais em Paris, no Texas (19). (imagens abaixo, três imagens de Travis e outra, abaixo à direita, de seu ponto de vista, olhando para as costas de Jane, sem reconhecê-la)


“Todos  os  personagens  de  Wenders, de Alice nas Cidades 
à Paris Texas, e de O Amigo Americano a O Estado das Coisas,
[...] têm o olhar sonâmbulo... Eles foram anjos antes da hora”

Jean-Philippe Domecq, 
a propósito do filme seguinte de Wim Wenders, Asas do Desejo, Positif, nº 319, setembro 1987 (20)

O pai de Travis desconfiava de que sua esposa havia sido uma prostituta. “por mais que ele a olhasse”, contou Travis à Hunter, “nunca a via”. Explicou que seu pai fazia piada disso para todo mundo, até que acabou acreditando em sua própria ilusão. Olhar e não ver, em Wenders isso pode mudar o destino de uma pessoa. Esta é a conclusão de Buchka, embora enfatize que o ponto não é a distância entre a ideia de uma pessoa e a pessoa real, trata-se apenas de um alarme. Wenders, Buchka continua, não é um realista, a ele importa definir o tipo de ideia fixa que se instalou numa mente. Pode ser uma utopia ou uma mania, se esta for causada por medos, o limite é a solidão. Travis repetiu o erro do pai e destruiu seu casamento com Jane - criou uma imagem para a esposa e acreditou nela -, mas acabou por reconhecer sua culpa. Ele foi o primeiro herói de Wenders a compreender o que fez. O conceito de culpa é algo novo no universo do cineasta. A separação do casal em Paris, Texas vai além das que ocorrem em filmes anteriores, onde os personagens antecipadamente encaravam como passageiras as amizades e relações amorosas.

“Essa culpa fez com que Travis – antes de se conscientizar – perdesse a voz, que vagasse emudecido por quatro anos no lugar nenhum do deserto. De volta a terra dos vivos, começa para ele a epifania, a penitência, que consiste em restabelecer a ordem nas relações de uma família na qual já não pode nem deve desempenhar um papel. Só quando aceitamos este móvel da ação é que podemos compreender o comportamento de Travis. Pois não é um comportamento racional, no sentido que a burguesia prática atual confere ao termo: Travis arranca o filho da proteção da família do irmão para conduzi-lo a uma mulher que ele, inconscientemente, continua acreditando ser uma prostituta” (21) (imagem abaixo, o filme caseiro mostrando uma família feliz)


“Eu só conheço homens e mulheres que viveram relações desfeitas 
Quero  dizer aqueles   que   estão   na   casa   dos   trinta   e   que   têm
catástrofes  atrás  de  si,   ou   adiante   ou   estão  dentro  delas”  (22)

Com esta afirmação, Wim Wenders permite que compreendamos um pouco mais seus
 filmes.  Em  No Decurso do Tempo,  por exemplo,  encontramos várias falas misóginas 

O palco onde toda essa culpa se resolve é no peep-show, embora inicialmente Travis parece se render ao seu antigo medo (de que Jane seja uma prostituta) e se perde em perguntas que procuram provar para si mesmo que ela recebe homens por dinheiro. Foi justamente após esse primeiro encontro que um Travis bêbado contou a história de seus pais à Hunter. Para Buchka, é a partir do segundo encontro no peep-show que Travis confessa sua culpa, o que irá facilitar sua convivência com o erro e torná-lo capaz de renunciar à Jane e Hunter, como condição para reunir novamente mãe e filho. O vidro espelhado do peep-show se transforma num confessionário. Ainda que, em determinado momento, Travis chegue a posicionar o foco de luz de forma que Jane o veja, eles nunca mais irão se reencontrar. Depois de assistir, a uma distância segura, à reunião de Jane e Hunter, Travis volta para a estrada, agora motorizado com sua caminhonete. Buchka chama atenção para o outdoor que cruza o caminho do homem com a frase curta e amarga: “Juntos, faremos acontecer” (Together we make it happen). Por tudo isso, Buchka enxerga no filme algo que vai além do melodrama banal de família que poderia fazer dele apenas mais um entre outros:

Paris, Texas, não é um filme sobre uma família que se desagregou – se fosse isso, sua beleza não o impediria de cair no kitsch -, mas o esboço fílmico de uma ideia de família, um filme das imagens irrepresentáveis que as pessoas fazem umas das outras. A diferença é sensível. E nela se funda a qualidade extraordinária do filme de Wenders. Pois o espectador não vê essas ideias e imagens – ao contrário, por exemplo, dos tão explícitos murais publicitários, que, por sua vez, simulam algo que não é, ou pelo menos oferecem algo muito diverso da mercadoria que louvam. Wenders narra aqui, portanto, duas histórias: a que vemos e outra invisível. Uma que trata da liberdade nas estradas, da inocência com que os homens se entregam a seus sonhos e necessidades, da solidão a que os condena sua individualidade. E outra, que narra as pressões íntimas, a culpa que se alimenta de falsas ideias, a penitência e o sacrifício que o reconhecimento da culpa (e o conhecimento de si) acarreta” (23) (imagem abaixo, durante o segundo encontro no peep-show, Travis irá se revelar)

Deserto das Almas Perdidas 


Famílias   disfuncionais   eram  comuns  nos
filmes realizados pelo Cinema Novo Alemão

De acordo com Peter Buchka, desde Paris, Texas se pode dizer que Wenders passa a acreditar na possibilidade da utopia da completa alteridade (24). Até então o pode-se dizer que o cineasta não se distinguia muito das características de alguns de seus colegas famosos do Cinema Novo Alemão, Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog, pelo menos até a caracterização de suas filmografias por Thomas Elsaesser em 1989 – curiosamente o mesmo ano da queda do muro de Berlim, cuja razão de existir tanto influenciou aos cineastas alemães do pós-guerra, naquilo que então se chamava Alemanha Ocidental. Para Fassbinder, identidade é sempre o ponto final de uma trajetória negativa, e as famílias são sempre incompletas ou tortas; existem esposas e mães, irmãs, irmãos ou amantes, mas raramente ou nunca pais ou uma figura paterna. Para Herzog, a insistência pessimista de seus heróis no isolamento e fruto da oposição entrelaçada de rebelião e submissão. O esforço dos heróis leva sempre a uma situação fútil irônica, eles são sempre rebeldes solitários, incapazes de solidariedade e sempre fracassados – o qual redime sua ambição e arrogância. O interesse de um filme como O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle, 1974), realizado por Herzog, é o complexo padrão psicanalítico: a fantasia de ser abandonado, órfão, com um relacionamento incerto em relação a todas as formas de socialização, em relação à identidade sexual e a maioridade, tentando sobreviver entre um bom pai substituto e uma imagem paterna ruim. Na medida em que remete ao grande Pai, o título original do filme aponta bem mais objetivamente tal complexidade: “cada um por si e Deus contra todos” (25).

“Em certo sentido, o interesse manifestado pelo Cinema Novo Alemão pela família não passa de uma variante, amarrada a referências históricas bem específicas [(por exemplo, como os milhões de soldados alemães que não voltaram para suas famílias)], do fenômeno da ‘sociedade sem pai’ e da ‘crise do patriarcado’, que são traços comuns à maior parte das sociedades ocidentais. (...) É significativo que algumas das produções do Cinema Novo Alemão que alcançaram maior sucesso no estrangeiro, por exemplo, Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972) e ou O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog, Paris, Texas, de Wim Wenders, ou mesmo Heimat: Uma Crônica da Alemanha (Heimat - Eine Deutsche Chronik, 1980-4), de Edgar Reitz, sejam consagradas ao tema do retorno do filho pródigo, ou à revolta dos órfãos, condenando a si mesmos ao exílio. Mas enquanto a maior parte dos filmes hollywoodianos gravitam em torno de uma figura duplamente deslocada do pai (que retorna, por exemplo, nos filmes da trilogia Indiana Jones, de Steven Spielberg, com traços amplificados, antes de desaparecer novamente), a maior parte dos filmes alemães, pelo contrário, retiram da ausência do pai histórias mais ou menos sentimentais ao estilo Kaspar Hauser” (26) (imagem abaixo, a fotografia do terreno que Travis comprou para ser feliz com Jane em Paris, no Texas)


“Em  Wim Wenders  os  marginais  sofrem  essa  espécie   de   ‘Unrast[desassossego] típico alemão, essa agitação febril, inquietude ofegante, 
transtorno,  essa divagação onde  se  deixam  levar  à  deriva que não é
mais  ‘Wanderlust[desejo de viajar],  mas uma forma de fuga suicida”

Lotte H. Eisner, Wim Wenders et l’Évasion, 1981 (27)

Pelo menos até a chegada de Paris, Texas, a obra de Wenders corrobora a constatação de que a família e a questão da identidade abastecem a narrativa padrão dos cineastas do Cinema Novo Alemão. De fato, explica Elsaesser, Wenders parece evitar ainda mais que Herzog tornar a família o centro emocional ou dramático da história. Geralmente, em Wenders encontramos apenas mães ou mães substitutas: O Medo do Goleiro Diante do Pênalti (Die Angst des Tormanns beim Elfmeter, 1972), Alice nas Cidades, Movimento em Falso. A rebelião quase não aparece, os conflitos entre pais e filhos são quase sempre deslocados, geralmente para rivalidade entre irmãos e laços homoeróticos ambíguos entre homens: O Amigo Americano (Der Amerikanische Freund, 1977), No Decurso do Tempo (Im Lauf der Zeit, 1976). Embora no último filme, quando Robert visita o pai, expresse seu conflito de infância ao escrever uma manchete onde o acusa de tê-lo afastado e induzido sua mãe ao suicídio. Enquanto isso, seu amigo Bruno visita a casa onde viveu sozinho com a mãe, numa ilha no meio do rio Reno. Em várias situações encontradas durante a deriva dos dois amigos pela fronteira da então Alemanha Ocidental apontam para um processo de deslocamento e substituição que torna referentes implícitos a Alemanha e a família alemã. A cultura popular norte-americana funciona aqui como compensação por uma vida insatisfatória em família e como lar substituto. A busca dos protagonistas exclusivamente masculinos dos filmes mais conhecidos de Wenders até Paris, Texas está frequentemente ligada a uma oposição entre Alemanha e Estados Unidos. Todos envolvem homens viajando ao longo de fronteiras e limites, numa versão do interesse de Herzog em testar extremos de situações e estados mentais.

“Desta forma, exílio e viagem se tornam sobre determinados: no próprio ato da revolta contra a família, representam um retorno a suas funções de criação. É assim que se poderia ler o conto de fadas contado por Philip para Alice, [em Alice nas Cidades], abandonada por sua mãe em Nova York e Amsterdã, e buscando em vão por sua avó no [vale do] Ruhr [na então Alemanha Ocidental]. Um garoto deixado acidentalmente na floresta é levado para passear e guiado por todo tipo de ajudantes, animais e humanos, até que afinal um caminhão de estrada o leva para o mar onde, miraculosamente, sua mãe espera por ele. Esse retorno à mãe, por de um homem que se tornou criança novamente, que experimentou a destruição da família como um trauma, tornando-o literalmente esquizofrênico, é claro, é a estória de Paris, Texas” (28) (imagem abaixo, Hunter aguarda Travis do lado de fora do clube onde o pai encontrou Jane trabalhando no peep-show)

Deserto do Visível e do Invisível


Aquilo  que  até   Paris, Texas   Wenders   não
conseguia tornar visíveis eram os sentimentos

A fonte da inquietação dos personagens, a incapacidade de captar a distância entre realidade e sonho, geradora da culpa que os engole, só não consome o louco que no viaduto anuncia o fim do mundo. Na opinião de Wenders, este é um dos principais personagens de Paris, Texas, pois seu pequeno monólogo amplia a situação daquela família para englobar a humanidade: aquilo que fazem uns aos outros fazem também a Terra. Toda infelicidade e frustração dos personagens de Wenders até Paris, Texas, encontra neste filme finalmente uma porta de saída. Para resolver a disparidade entre a realidade e a utopia, entre o eu e os outros, que ninguém conseguia visualizar operando em si mesmos, se buscava uma harmonia fora de si, no mundo exterior. O cineasta concluiu que tal coisa era um beco sem saída para ele mesmo, que repetia a situação em seus personagens filme após filme (ou pelo menos bastante claramente nas perambulações em No Decurso do Tempo e O Estado das Coisas). A pátria de Travis é aquele pedaço de chão que comprou sem nunca ter visto, mas onde acredita que ele mesmo começou e onde poderia realizar sua ideia de família e pátria. Segundo Buchka, Wenders finalmente encontrou uma maneira de tornar visível o invisível que não torna a cena estranha, apenas evidenciando o humor momentâneo do personagem (quando Travis foge do irmão, passa diante de um anúncio de motel que indica o que ainda está por vir [Marathon Motel]; ou quando lustra os sapatos da família, evidenciando seu desconforto com a situação; o falcão da primeira sequência; a sombra dos aviões decolando; a estátua da liberdade na parede do prédio do peep-show) (29).

“Mas de onde deriva a força emocional incontestável de Paris, Texas? De certo, não da súbita dedicação de Hunter, ou das lágrimas de Jane, ou da renúncia de Travis, que no final sobe em seu carro e parte no crepúsculo, assim como outrora os heróis dos westerns clássicos montavam em seus cavalos e partiam, depois de cumprida a missão – eternamente sem repouso, sem pátria. Em vez de se apoiar em tais elementos, Wenders prefere aproveitar a dupla estrutura de sua dramaturgia [(são paralelas, mas dialéticas, complementando-se uma à outra; a resposta para uma está na outra e vice-versa; um plano narrativo preenche as lacunas do outro)] – e isto é absolutamente novo na história do cinema, se não considerarmos as longínquas tentativas de Robert Bresson, que além do mais apontavam evidentemente em outra direção. Dissemos acima que aqui são narradas duas histórias, uma visível, outra invisível; a seguir sugerimos que cada uma leva à soluções distintas: a realização do amor e a renúncia a ele; estas soluções são mais uma vez ampliadas diferenciadamente pela frustração, a nível de conteúdo, e pela promessa, a nível formal. Pois bem, agora essas diferenças estruturais desembocam num sentido unitário, composto de forma genial: justamente, naquela maneira delicada de lidar com os sentimentos, que pedem uma representação, e não uma dissecação, uma sensualidade perceptível, mas não propositadamente descarada” (30) (imagens abaixo, sentimento de Travis)


Em Paris, Texas, Wim Wenders representa os sentimentos
em imagens, mas sem os truques calculados do melodrama

Wenders sempre desconfiou da gratuidade de imagens belas, mas agora tudo mudou e o cineasta já não se impõe mais uma proibição de representar sentimentos em imagens. Talvez porque, Buchka sugeriu, até Paris, Texas ainda não tivesse encontrado imagens para as emoções. Até então, apenas alusões aos sentimentos: através de paráfrase de textos literários (Summer in the City, 1971), de sonhos (Movimento em Falso, No Decurso do Tempo), ou de canções em quase todos os filmes. Ainda segundo Buchka, Paris, Texas não tem nada disso, mas também não existem sentimentos provocados por truques típicos do melodrama. O modo como o melodrama induz os sentimentos é para Wenders uma traição da ideia utópica contida neles. Esta postura o coloca no extremo oposto de seu conterrâneo Fassbinder. Wenders explicou para Laurent Tirard que, antes de Paris, Texas, as imagens eram mais importantes do que a história – Tirard não datou a entrevista, que publicou em 2002. A partir daí, a necessidade de fazer belas imagens passou ao segundo plano. Para Wenders, o dever do diretor é acima de tudo ter algo a dizer, ter o desejo de contar. Em sua experiência com Paris, Texas, passou a ver a história como um rio no qual devemos entrar para nos deixar levar, elas existem sem nós. Wenders não apenas admitiu preferir realizar filmes sem estar preso a um roteiro detalhado, como passou a encarar os atores de outra forma (trabalhar mais com eles, compreender seus métodos, e só então construir a cena, no próprio set de filmagem), quando teve a oportunidade de dirigir uma peça de teatro pouco antes de filmar Paris, Texas (31). Wenders termina sua entrevista retornando à questão do visível e do invisível levantada por Buchka:

“(...) Enfim, no que diz respeito aos erros que não devem ser cometidos, há muitos, e creio que cometi todos eles. Mas o maior é sem dúvida o de pensar que é preciso mostrar tudo o que se está tentando contar. No domínio da violência, por exemplo, parece que ninguém consegue encontrar outra alternativa além de mostrar, ao passo que o cinema com frequência chega ao seu mais alto grau de potência quando renuncia justamente a mostrar aquilo que ele pode evocar” (32) (imagem abaixo, o filme caseiro mostrando uma família feliz)

Família no Deserto


Intrusão da vida na ficção, o filme caseiro projetado em Paris, Texas 
foi  feito  por  Wenders.  Os  primeiros filmes dos Lumière, no começo
do cinema, também  são  filmes  caseiros  de  situações  cotidianas (33)

Depois de assistirem ao filme caseiro onde Travis se viu acompanhado por Jane e Hunter se viu acompanhado por Travis, o garoto vai chamá-lo de pai pela primeira vez. Pelo jeito que Travis reagiu quando Jane apareceu, Hunter acha que ele ainda a ama. De qualquer maneira, lamentou Hunter numa espécie de comentário pós-moderno, não era Jane, apenas a imagem dela num filme, “há muito tempo atrás, numa galáxia muito, muito distante...” – nesta fala de Hunter, remete a um blockbuster de Hollywood por décadas, Guerra nas Estrelas (Star Wars, direção George Lucas, 1977); sua própria roupa de cama reproduz o tema. Travis finalmente conseguiu a atenção de Hunter e voltaram juntos da escola do garoto. Enquanto isso, Anne começa a demonstrar ciúmes da possibilidade de Travis levar Hunter embora. Ela reclama com Walt que ele fica “empurrando” pai para o filho e vice-versa. Percebendo que não conseguirá nada de Walt, Anne resolve contar a Travis o que diz ser um segredo. Jane decidiu que Hunter ficaria com Anne e Walt, porque não consegue ser uma boa mãe e fazia ligações telefônicas de algum lugar no Texas (Houston). Disse ainda que Jane pediu para abrir uma conta de banco para enviar dinheiro para o filho, depois parou de ligar. Anne parece induzir Travis a procurar por Jane bem longe dali. Ela só não imaginava que Hunter iria preferir procurar a mãe com Travis, então ela se deita na cama do garoto e desiste de lutar. Quando Travis se mostrou a Jane no peep-show, perguntou a ela por que não ficou com Hunter. Ela respondeu que não tinha o que sabia que ele precisava e se recusava a usá-lo para preencher seu vazio.

“Travis solta o interfone e se retira. Com a ‘missão cumprida’, saída de campo e afastamento voluntário. ‘Ele vai desaparecer novamente’, previne Wim [Wenders]. Ele renuncia a essa mulher e a essa criança que ele ama, mas assim torna deles o filme, que continuará com os dois. Este poderia ser então o começo de um novo filme, desta vez sem Travis...’. Sam Shepard explica: ‘O que Travis descobriu, é que não basta recolher os pedaços estilhaçados de seu passado. É ele mesmo que deve juntar essas peças. É a si mesmo que deve agora reencontrar. E isto, deve fazer sozinho’” (34) (imagem abaixo, o segundo desencontro entre Travis e Jane)


Paris, Texas é mais a respeito de Jane do que de Travis

Embora a retirada de Travis tenha acontecido depois de ele “fazer o bem”, parece pouco provável que não se trate de mais uma “fuga suicida”, como escreveu Lotte Eisner em 1981 a respeito dos personagens masculinos de Wenders. De qualquer forma, como disse ela mesma, os personagens do cineasta sempre terminal voltando para uma espécie de “migração eterna”. Afinal, como próprio Wenders admitiu certa vez: “Eu só conheço homens e mulheres que viveram relações desfeitas”. De fato, numa entrevista em 1992, Wim Wenders define a situação de Travis como uma espécie de estado obsessivo onde ele não conseguia enxergar o Outro, no caso, Jane. De fato, é isso que o próprio Travis reconhece em algumas passagens da gravação que deixou para Hunter:

“(...) Existe certa obsessão em todo amor, em todo ato de se apaixonar, porque se apaixonar também é uma espécie de doença; apaixonados, perdemos a nós mesmos e o senso de realidade. Isso também está ligado a certa forma de narcisismo, porque às vezes você percebe aquilo pelo que você se apaixonou é você mesmo, e não o Outro. É disso que fala Paris, Texas, é o que Travis percebe. Ele vai embora ao final porque percebe que, [não obstante estivesse] apaixonado pelo Outro, nunca realmente ‘viu’ o Outro (35)

Wenders esclarece definitivamente as dúvidas daqueles que enxergam em Paris, Texas um filme a respeito de Travis – se quiser, um filme sobre a crise da masculinidade na modernidade. Pode até ser, faz sentido – como faz sentido falar em história de amor. Contudo, na verdade, apenas na medida em que a mulher é o centro da atenção masculina. Assim, o papel “menor” de Jane na tela não pode ser mais relevante do que o papel dela nas decisões da vida de Travis. Muitas são as interpretações de Paris, Texas como um filme sobre a família disfuncional (que na prática é a família disfuncional alemã), ou um filme de amor, ou sobre Travis, ou ainda sobre o movimento. Walter Donohue questionou o fato de que, entre Paris, Texas, Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987) e Até o Fim do Mundo (Bis ans Ende der Welt, 1991), a mulher se torna um personagem cada vez mais central. Wenders definiu Paris, Texas como um filme a respeito de uma mulher e, como Até o Fim do Mundo, que foi escrito logo após (mas só foi lançado muito depois) e antes de Asas do Desejo, corresponde ao interesse de escrever algo onde a mulher esteja no centro:

“No final de Paris, Texas Travis desaparece, e o ponto de vista masculino, por assim dizer, desaparece com ele, deixando a mulher e seu pequeno filho. Naquela cena em que Nastassja Kinski envolve Hunter com seus braços, realmente me pareceu como se toda uma carga de restrições tivesse sido superada, e daquele momento em diante eu podia contemplar um filme de maneira diferente, olhar para um filme através de um ponto de vista feminino, ou olhar para um filme que poderia ter muitos personagens distintos. Esse foi o início de um novo embasamento para trabalhar” (36) (imagem abaixo, durante o primeiro encontro no peep-show, e ainda sem saber que se trata do pai de seu filho, Jane procura compreender o que deseja seu estranho cliente )


Leia também:


Notas:

1. BOUJUT, Michel. Wim Wenders. Une Voyage Dans ses Films. Paris: Flammarion, 1986. P. 156.
2. Idem, pp. 145-8, 153-6.
3. Ibidem, p. 145.
4. Ibidem, p. 153.
5. Ibidem, p. 146.
6. Ibidem, p. 147n1.
7. Ibidem, p. 158.
8. BUCHKA, Peter. Olhos não se Compram: Wim Wenders e seus Filmes. Tradução Lúcia Nagib. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. P. 133.
9. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 149.
10. Idem, p. 154.
11. DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. Tradução Mateus Araújo Silva. São Paulo: Cosac Naify, 2004. P. 138.
12. Idem, p. 141.
13. EISNER, Lotte. Wim Wenders et l'évasion. In: Wim Wenders. Paris: Ramsay Poche Cinéma, Caméra Stylo, nº 1, 2ª ed., 1987. P. 5.
14. DUBOIS, Philippe. Op. Cit., pp. 184-6.
15. BUCHKA, Peter. Op. Cit., pp. 23-4.
16. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 158.
17. BUCHKA, Peter. Op. Cit., p. 138.
18. Idem, p. 134.
19. BUCHKA, Peter. Op. Cit., pp. 133-7.
20. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 178.
21. BUCHKA, Peter. Op. Cit., p. 137.
22. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 91.
23. BUCHKA, Peter. Op. Cit., p. 138.
24. Idem, p. 142.
25. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. Pp. 221, 223, 226, 228, 230-2.
26. --------------------------. R.W. Fassbinder. Un Cinéaste d’Allemagne. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005. Pp. 201-2.
27. EISNER, Lotte. Op. Cit.
28. ELSAESSER, Thomas. 1989. Op. Cit., p. 232.
29. BUCHKA, Peter. Op. Cit., pp. 138-142.
30. Idem, pp. 141, 142.
31. TIRARD, Laurent. Grandes Diretores de Cinema. Tradução Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Pp. 118-9, 120-1, 122-3.
32. Idem, p. 123.
33. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 152.
34. Idem, p. 158.
35. DONOHUE, Walter. Revelations. An interview with Wim Wenders. London: Sight & Sound, vol. 1, nº 12, April 1992. Pp. 11-2.
36. Idem, p. 8.

18 de set. de 2016

Miklós Jancsó: História e Nudez


“Estou terrivelmente velho, muitas centenas de anos. Agora entendi
  que a única coisa que  você  pode fazer a respeito do mundo é rir dele. 
 Nos  velhos  tempos   eu   tentava  ser  muito   sério  e  levar  as  coisas
 muito  a  sério porque eu achava que era possível mudar o mundo” 

Miklós Jancsó desabafa em entrevista no início dos anos 2000 (1)

Censura e Cinema na Hungria 

John Cunningham assinalou que muitos talentos se perderam na esteira do levante de 1956 contra a presença soviética na Hungria. Embora o cineasta húngaro Miklós Jancsó (1921-2014) já realizasse curtas-metragens desde 1950, talvez por este motivo seu primeiro longa-metragem, Os Sinos Foram para Roma (A harangok Rómába mentek), tenha sumido das telas desde sua estreia em 1959. O filme foi repudiado pelo próprio cineasta. Mas essa atitude, naquela época e lugar (a Europa Oriental), talvez signifique uma questão de sobrevivência: até que o governo compreendesse que não poderia continuar a repressão indefinidamente, entre os anos de 1956 e 1959, 35,000 pessoas foram investigadas, 13,000 presas e 350 executadas. Apenas em março de 1963 os últimos prisioneiros políticos foram anistiados. De acordo com Cunningham, comparado a outros casos, a repressão na Hungria foi curta – o tempo máximo de prisão para os insurgentes foi de seis anos: os prisioneiros de Franco na guerra civil espanhola nunca foram anistiados; os comunistas gregos encarcerados pelos generais durante a guerra civil na Grécia teriam de esperar vinte anos; os prisioneiros que Stalin enviou para o Gulag durante a década de 1930 teriam de esperar até Nikita Khrushchov em 1956. Evidentemente, isso não ameniza a truculência do comunismo húngaro, mas talvez explique o início de um longo e complexo processo que transformaria a Hungria no menos opressor dentre os países da esfera soviética na Europa Oriental durante a Guerra Fria – novos ares que oxigenaram o cinema daquele país (2). (imagem acima, Vermelhos e Brancos, 1967; imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)


Jancsó foi o mais importante representante
do  cinema  húngaro  entre  1960  e  1970  (3)

Em 1973, o cineasta húngaro Péter Forgács conta que foi banido das universidades húngaras e não receberia suporte institucional porque participava de atividades culturais esquerdistas que buscavam construir um comunismo melhor e mais puro – o que parece uma ironia, mas não é, basta nos lembramos de Serguei Eisenstein e Lev Kulechov na União Soviética, apoiadores da revolução comunista cujas obras que contestavam as arbitrariedades do poder e a massificação da propaganda não eram mais úteis depois que os bolcheviques tomaram o poder do Czar. Forgács menciona o estúdio Béla Balázs como o único em que os cineastas gozavam de certa autonomia – o que não quer dizer que não fossem financiados pelo Estado. Ele conta que...

“Todos os outros cineastas em todos os outros estúdios húngaros (existiam cinco), mais o estúdio de animação, mais o estúdio de documentário, tinham de mostrar seus roteiros para os administradores e, claro, existia também uma grande dose de autocensura. Existia um discurso de duplo sentido generalizado na cultura cinematográfica húngara durante essa era: você podia compreender o que eu queria dizer, mas também compreendia aquilo que eu não podia dizer por causa daqueles caras ali – mas ambos sabíamos o que sabíamos! Eu acho que foi Miklós Jancsó que originalmente rompeu com esse discurso de duplo sentido” (4) (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)


 Juntamente com Akira Kurosawa, Jean-Luc Godard e Nagisa Oshima, 
Jancsó é reconhecido como  um  daqueles  que  utilizou o Cinemascope
de  forma  a  romper  com  o  classicismo   emanado  de  Hollywood  (5)

Jancsó já estava realizando seus curtas quando o famoso cineasta soviético Vsevolod Pudovkin desembarcou na Hungria em 1950. Nomeado conselheiro especial, sua função era aconselhar os cineastas húngaros a conhecer melhor o marxismo-leninismo e pedir conselhos aos representantes do Partido Comunista. Em seu retornou no ano seguinte, avaliou toda a produção ainda não distribuída e sugeriu mudanças em todos os filmes. Pudovkin insiste na importância maior do roteiro em relação à encenação (o que, na verdade, se pode concluir que facilita a avaliação de cada filme, e talvez explique o desinteresse de cineastas russos como Andrei Tarkovski em relação ao enredo (6)), e encoraja todos a seguir a influência soviética. Um “degelo cultural” se produz no início dos anos 1960, permitindo a eclosão de Jancsó e István Szabó, entre outros, que se debruçam sobre temas até então tabus (incluindo a revolta de 1956) (7). Há um distanciamento em relação ao estilo em voga nos anos 1950 e o acolhimento da Nouvelle Vague e do cinema de arte europeu de cineastas como Federico Fellini, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. (imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)

Histórias da Hungria


O ápice da utilização do plano longo bem estruturado
(como  em  Orson Welles  e  Ingmar Bergman)  é  visível
nos  filmes  de  Miklós  Jancsó,  por  volta  de  1970 (8)

Após vinte e oito curtas-metragens desde 1950 e três longas, realiza Meu Caminho (Így jöttem, 1965) – Cunningham chama atenção para a presença da futura cineasta e roteirista Judit Elek enquanto ainda era estudante de cinema nos créditos, o que agregava valiosa experiência antes mesmo do final do curso de cinema. Ambientado próximo ao final da Segunda Guerra Mundial quando Joska, um húngaro com dezessete asnos de idade, é capturado pelos russos e desenvolve uma amizade com Kolja, o guarda soviético responsável por ele, o qual morrerá por uma enfermidade que o acompanha durante todo o filme. Joska é bem tratado pelos russos, enquanto seus encontros com outros húngaros não é tão harmonioso – será confundido com o inimigo por duas vezes. Embora admita que pareça uma simplificação excessiva, Cunningham sugere que o filme afirme o argumento de certa compreensão ou aproximação de algum tipo entre húngaros e russos. Meu Caminho já apresenta algumas das características que se tornarão marcas registradas do estilo de Jancsó: figuras isoladas em contraste com grandes espaços vazios a céu aberto, tomadas a partir de ângulos altos (com gruas ou guindastes), plano aberto e travellings melancólicos. Os primeiros trabalhos de Jancsó e Szabó são frequentemente classificados como manifestações do Cinema Novo húngaro – Jancsó se antecipou ao colega conterrâneo no que diz respeito a coproduções no estrangeiro. Cunningham sugere cautela, já que muitos daqueles que são reunidos sob esse rótulo partilham pouco em comum além de certo temperamento (9). (imagem abaixo, Os sem Esperança, 1966)


Na primeira parte da obra de Jancsó, a nudez dos corpos
simboliza  a  humilhação  do  vencido  diante   do   poder

Jancsó realiza então aquela que será considerada sua obra-prima magistral, Os sem Esperança (Szegénylegények, 1966) (imagem acima). Em 1967, com Vermelhos e Brancos (Csillagosok, katonák), outro filme histórico, o assunto é a participação de húngaros no exército soviético (os vermelhos), contra as forças do Czar (os brancos), durante a guerra civil que se seguiu à revolução bolchevique de 1917. Coprodução de húngaros e soviéticos rodado próximo à cidade russa de Kostrona, as margens do rio Volga, ao norte de Moscou. Feitos prisioneiros de guerra pelos brancos, um grupo de húngaros e de outras nacionalidades é “solto” para ser caçado – há muita morte em Vermelhos e Brancos; prisioneiros de ambos os lados são humilhados ao serem forçados a se despir. Chegam a ser socorridos por outros húngaros do exercito vermelho, mas os brancos triunfam naquela hora. Antonin e Mira Liehm explicam que em Vermelhos e Brancos a maior parte das figuras é filmada em profundidade de campo (deep focus) contra uma paisagem imutável, indiferente e de uma beleza lírica, levando Andrew Horton a concluir que Jancsó se esforça para evitar uma psicologia simples de causa e efeito:

“As semelhanças entre Jancsó e [o cineasta grego Theo] Angelopoulos em termos de orientação histórica e foco estilístico são ainda maiores do que possa inicialmente parecer. A descrição a seguir do cinema de Jancsó por Mira e Antonin J. Liehm pode igualmente ser aplicada a Angelopoulos: ‘Todos os sistemas políticos, todas as épocas históricas, podem ser acomodadas nesse balé cinematográfico de violência e opressão, desenvolvidos a partir da tensão entre a ‘beleza’ da estilização artística e a ‘feiura’ do testemunho’. O que os Liehms enfatizam é que a forma estética oferece um contraponto à ‘violência’ da autoridade/política/poder que consegue elevar o momento para além de seu contexto histórico na direção de um plano mais universal” (10) (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)


Vermelhos e Brancos celebra o 50º aniversário da revolução russa, 
mas as autoridades  soviéticas não gostaram do retrato ambíguo e não
heroico   e   fizeram   mudanças.   Felizmente,   Jancsó  podia  escolher
a versão a ser levada para a Hungria e distribuída mundialmente (11)

Ao aproximar Angelopoulos de Jancsó, Horton também está se referindo a certa característica que une os dois e os distingue dos cineastas ocidentais. Segundo Horton, os cineastas que trabalhavam na União Soviética e na Europa Oriental (então sob a influência do comunismo soviético) geralmente não separavam a arte e a política, sempre conectando forma, conteúdo e finalidade. Durante uma entrevista em 1993, perguntaram a Angelopoulos porque seus filmes são tão não hollywoodianos. O grego respondeu que quase não existem filmes que traduzam verdadeiramente o que acontece naquela parte da Europa, e que ele pretendia capturar algo da melancolia de um povo com aqueles problemas políticos e institucionais. Na hora de mostrar isso é que muitos verificam a similaridade entre os travellings longos de Angelopoulos e Jancsó. Como o húngaro, em filmes como Os sem Esperança e Vermelhos e Brancos, o grego rejeita a montagem em favor de uma tomada contínua acoplada a uma câmera com movimentos circulares ou em linha reta (12). Presente durante as filmagens, em 1968 o cineasta e roteirista Gyula Maár falou a respeito das tomadas extremamente longas (a maior com quatro minutos) típicas de Jancsó como se a câmera (muito móvel) fosse um observador caminhando de um lado a outro (notam-se composições geométricas), parando para prestar atenção em alguma coisa até que outra chame sua atenção. Maár destacou também a quantidade de instruções que Jancsó passava em voz alta durante as filmagens, razão pela qual preferia a dublagem na pós-produção ao invés da filmagem com som direto:

“Existem outras razões do por que ele prefere dublar depois. Naturalmente também porque som construído é o que ele deseja para seu mundo construído, e apenas dublagem posterior pode liberar do som indesejado na locação. Também é verdade que a leve e portátil câmera Arriflex, importante para ele, é imprópria para gravação simultânea. Contudo, o fator decisivo – estou certo disso – é que ele quer ser capaz de dirigir uma cena enquanto ela está acontecendo...” (13) (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)


Miklós Jancsó  rompeu com o discurso de duplo sentido utilizado por
todos que pretendiam sobreviver na Hungria do regime comunista (14)

Jancsó manterá seu foco em datas chave da história húngara em Silêncio e Grito (Csend és kiáltás, 1968), novamente com poucos diálogos, pouca informação sobre o enredo e ligações apenas sugeridas entre os personagens. Ambientado nos últimos dias da República dos Conselhos em 1919, um soldado do agora derrotado exercito vermelho húngaro está fugindo e se abriga numa fazenda. O chefe de polícia local fecha os olhos para sua presença, mas ele acaba se revelando ao denunciar a mulher do fazendeiro (que o estaria envenenando) para as autoridades. O fazendeiro dá uma arma para o soldado cometer suicídio, mas ele mata o chefe de polícia. A seguir, em Ventos Brilhantes (Fényes szelek, 1969), com 31 tomadas em 82 minutos de filme, acompanhamos um grupo de estudantes do Nékosz logo após o final da Segunda Guerra Mundial, quando invadem uma escola religiosa – reconhecida por seu sectarismo, Nékosz (Népi Kollégiumok Országos Szövetsége, Associação Nacional dos Colégios do Povo) foi uma organização comunista de escolas e colégios com educação alternativa para filhos de trabalhadores da agricultura e da indústria; será fechada em 1949, quando seus líderes são apanhados e presos no julgamento-espetáculo de László Rajk. No filme de Jancsó os estudantes do Nékosz se dividem em dois grupos, aqueles que pretendem debater com os religiosos e aqueles que pretendem forçá-los a aceitar seu ponto de vista.  Para seu ensaio de 2001 a respeito do Nékosz, Dini Metro-Roland relacionou o processo de stalinização da Hungria do imediato pós-guerra e os Colégios do Povo, em 1999 havia perguntado a uma entrevistada que ela achou do filme:

“Eu não queria ver aquilo. Mas aí passou na televisão então assisti. Achei que era muito infantil e simplesmente não era verdadeiro. Mas pensei sobre isso meia hora mais tarde e ele me atingiu. Ocorreu-me que quando me disseram que aquilo era democracia, não era exatamente. Não sei se você está familiarizado com o filme, mas havia uma cena em que estudantes estavam cantando, dançando e jogando todo tipo de jogos ao ar livre e, enquanto isso, a liderança determinava como seriam as coisas. Ocorreu-me cerca de uma hora mais tarde, com meu marido, que isso foi verdade. Realmente. Foi verdade porque muitas vezes quando pensávamos que ‘agora, estamos decidindo’, e ‘isso é verdadeiramente democracia’, o mais provável é que foi a liderança quem decidiu. Apenas foi disfarçado. Por isso, foi uma sensação terrível então. Não sei se era isso que Jancsó tinha em mente quando fez o filme, mas, para mim, anos após [o Nékosz], com esse filme, ocorreu-me que não era democracia de verdade e que, talvez, nem sequer tenha existido ali a democracia real que imaginavamos (Hungarian Studies, 2001, p.70)” (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)

Da Narrativa à Parábola dos Fatos


A visão que Jancsó tem do poder é fundamentalmente kafkiana

Críticos e historiadores do cinema localizam a parte essencial da obra de Jancsó entre as décadas de 1960 e 1970. Mais especificamente, Os sem Esperança e Vermelhos e Brancos são os dois filmes considerados suas criações mais refinadas – no primeiro, finalmente todas as características mais importantes de seu estilo estão reunidas; no segundo, este estilo alcança reconhecimento internacional. András Bálint Kovács ecoa as declarações de Horton ao afirmar que o cinema moderno da Europa central e oriental aponta seu foco em temas históricos e políticos. A carreira de Jancsó foi dominada pela investigação da natureza do poder político, foi a pressão da censura em seu país que o levou a trabalhar a questão através de temas históricos. Disfarçado de história, a crítica social e política era mais aceitável para as autoridades do que a crítica direta. Neste sentido, Os sem Esperança pôde ser lançado na Hungria em 1966 sob a condição de que Jancsó afirmasse explicitamente numa entrevista de que o filme não falava de retaliações pela repressão à revolta de 1956, mas sobre as retaliações à revolução de 1848. Estava claro para todo mundo, explicou Kovács, que o cenário histórico era apenas um disfarce, para acalmar os censores. Os sem Esperança torna-se o primeiro representante de todo um gênero no cinema húngaro, a parábola histórica, que virou moda no país, especialmente no início dos anos 1970 (15). (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)


 Jancsó   assumiu  a  influência  de  Michelangelo Antonioni, 
particularmente  em  função  de  A Noite.  Mas  ele  ultrapassa
o modernismo do mestre e desenvolve um estilo próprio (16)

Vale lembrar que naquela época a Hungria ainda era um satélite soviético no auge da Guerra Fria. Os sem Esperança aborda a fracassada revolução de 1848, quando justamente os russos (então muito antes da revolução bolchevique e sob o comando do Czar Nicolau I) vieram em socorro da monarquia Habsburgo para derrotar os húngaros e restabelecer a unidade do Império Austro-Húngaro (que seguiu se arrastando até finalmente se esfacelar ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918). Aprisionados numa fortaleza perdida na vastidão da planície húngara os rebeldes, que aos olhos dos donos do poder eram apenas criminosos comuns (embora fossem retratados como libertadores nas músicas folclóricas), convivem com a rotina de brutalidades em busca dos líderes. Quase sem trilha sonora e com poucos diálogos, o filme apresenta os rebeldes privados de sua humanidade e de heroísmo. Na opinião de Robert Vas, Jancsó convida o espectador a jogar fora o sonho aconchegante e confortável de uma história húngara romântica e heroica para encarar a realidade, onde o oprimido se confunde com o opressor e vice-versa (17). Para Kovács, entretanto, uma sinopse como está talvez não acalme os ânimos dos muitos espectadores que não conseguem compreender a lógica da narrativa de Jancsó. Muito poucos detalhes são revelados, sabemos apenas que existe uma investigação que pretende encontrar o assassino de dois pastores. O interrogatório do suspeito é parte de um jogo desconhecido, já que se sabe quando ele está mentindo ou não. Portanto, conclui Kovács, o espectador está vendo uma versão ritualizada de investigação. (imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)


“Ele foi meu mestre” 

Miklós Jancsó a respeito da influência de Michelangelo Antonioni em sua obra (18)

Segundo Kovács, o que fica evidente em Os sem Esperança é que o estilo narrativo de Jancsó não encadeia uma serie de eventos que leva a um resultado necessário. Os eventos, que guardam pouca coerência lógica entre si, são parte de um ritual simbólico que varia de forma durante a história, mas que em sua essência e resultados se mantém o mesmo sempre: opressão e humilhação – aquilo que no filme parece ser uma investigação não possui outro sentido senão quebrar a moral e confundir os presos. A narrativa sugere que nenhuma iniciativa individual controla os eventos. Todos executam um elemento particular de uma ordem, mas a totalidade do sistema é fundamentalmente desconhecida de todos. Jancsó esboça assim sua visão basicamente kafkiana do poder. Contudo, Kovács nos lembra de que a seriedade e o mistério metafísico dos tempos em que Kafka escreveu. Ou melhor, depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial e da experiência das ditaduras nazista e comunista na Hungria (e boa parte da Europa), o “segredo do poder” se assemelha para Jancsó com nada mais do que um ritual cruel, cujo principal objetivo é assegurar a sobrevivência do próprio sistema hierarquizado de poder. (imagem abaixo, Os sem Esperança, 1966)


Jancsó radicalizou a proposta  de  Antonioni, modificando
a forma como a alienação dos personagens é representada
Kovács acredita que o estilo extremamente minimalista e simbólico de Jancsó é a maneira adequada para expressar tais ideias. Para sua concepção de relações humanas alienadas, o cineasta escolheu Antonioni como seu modelo, cujo estilo parece a Kovács o mais adequado para representar pessoas cuja relação com os outros e com o ambiente está basicamente quebrada, comprometida. Vagueando sem rumo num ambiente com o qual não tem contatos, os personagens de Antonioni produzem um sentimento de vazio que foi uma das novidades do cinema moderno na época. Ainda segundo Kovács, essa busca dos personagens do cineasta italiano pelo contato perdido com o ambiente produz a ilusão da presença de um enredo linear, mas o fato é que as histórias nunca levam a nada. Jancsó radicalizou o projeto de Antonioni de duas maneiras:

“Embora ele ainda mantenha a ilusão do desenvolvimento de um enredo linear em Os sem Esperança, deixa claro que isso não irá levar para fora da situação na qual a história se inicia: uma vez que os homens são capturados, serão todos liquidados um a um sem nenhum outro argumento adicional. Sendo assim, o desenvolvimento do enredo linear é basicamente circular. Segundo, o movimento constante dos personagens motivados por uma busca típica de filmes de Antonioni, se torna nos filmes de Jancsó no elemento central de expressão, e são inteiramente autônomos, assim como o ponto inicial e o resultado final são essencialmente o mesmo. O movimento de um personagem possivelmente não irá levá-lo para fora da situação na qual começou. Portanto, o movimento da câmera e dos personagens se torna cada vez mais ritualizado e ornamental. A natureza ornamental desses movimentos torna necessário que a câmera os siga o tempo todo, como uma dança ou balé, levando Jancsó a criar um estilo baseado na tomada extremamente longa. Tudo está subordinado à ritualização do movimento, é por isso que os cenários do filme são muito abstratos e minimalistas. Jancsó utiliza muito poucos ingredientes, de modo que nada pode bloquear o caminho dos personagens e da câmera. O espaço de Antonioni é a cidade grande, onde o labirinto de ruas determina o movimento aleatório dos personagens. Em Os sem Esperança, o espaço estruturando os movimentos dos personagens é absolutamente aberto e nenhuma limitação exterior controla a direção e coreografia de seu movimento. A representação da alienação por Jancsó é radical também de outra maneira. Enquanto a novidade de Antonioni foi quebrar o contato entre o ambiente e os personagens, Jancsó eliminou a diferença entre os personagens e o ambiente, mas de uma maneira que resulta numa representação mais radical da alienação. Os personagens perdem sua autonomia e por seus movimentos ritualizados tornam-se meros elementos do ambiente. Enquanto os heróis de Antonioni são individuais que sofrem psicologicamente por sua solidão e perda de contato com o mundo externo, os heróis de Jancsó também são privados de sua individualidade. Eles não possuem nenhuma vida privada, nenhuma emoção, e a única coisa que os determina é sua posição na hierarquia do poder (...)” (19) (imagens abaixo, Vícios Privados, Virtudes Públicas, 1976)

Anos 1970 e 1980


“Para   Jancsó,   os   anos    1970   foram   uma   década    desigual,
poucos de seus filmes deste período não tiveram problemas” (20)

Antes de István Szabó, Jancsó já havia aderido a coproduções com outros países, como no caso do franco-hungaro Vento de Inverno (Sirokkó, 1969). Depois de Agnus Dei (Égi bárány, 1971), que, como Silêncio e Grito, também é ambientado nos dias da República dos Conselhos em 1919, o cineasta passaria a trabalhar fora da Hungria por consideráveis períodos de tempo, principalmente na Itália. Sua produção daquela época no estrangeiro inclui três filmes na Itália, A Pacifista (La pacifista - Smetti di piovere, 1970), La Tecnica e il Rito (1972) e Roma Rivuole Cesare (1974); o ítalo-iugoslavo Vícios Privados, Virtudes Públicas (Vizi privati, pubbliche virtù, também conhecido no Brasil pelo título Vícios e Prazeres, 1976) – de acordo com Cunningham, todos estes filmes tiveram apenas uma distribuição limitada e foram muito pouco vistos na Hungria e, quando apresentados, causaram pouco impacto; alguns deles podem ter tido uma distribuição bastante limitada; Vícios Privados, Virtudes Públicas foi o único que causou certo impacto na Grã-Bretanha, mas é preciso observar que aí o filme seria comercializado como um pornô leve. Realiza ainda em 1981 a coprodução ítalo-húngara O Coração do Tirano (A zsarnok szíve, avagy Boccaccio Magyarországon) e Bocca di Leone, que foi totalmente filmado na Hungria, com equipe e técnicos húngaros. (21). (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)


Na opinião  de  John Cunningham,   Salmo Vermelho  é  datado,  “peça
de museu do final dos anos 1960 e cinema agitprop dos anos 1970”  (22)

Além da repercussão limitada de seu trabalho na Itália, a década de 1970 foi problemática para Jancsó. Salmo Vermelho (Még kér a nép, 1972) e Querida Electra (Szerelmem, Elektra, 1974) se destacaram (embora o primeiro não tenha sido uma grande bilheteria na Hungria), mas Rapsódia Húngara (Magyar rapszódia) e Allegro Barbaro (Allegro barbaro - Magyar rapszódia 2), ambos de 1979, não foram muito bem compreendidos e aceitos pelo público, tanto em seu pais quanto no estrangeiro. Estes dois últimos foram concebidos como parte de uma trilogia, que deveria se chamar Vitam et Sanguinem (latim para “Nossa Vida e Nosso Sangue”; acredita-se que foi o grito dos nobres húngaros em setembro de 1741, diante da futura monarca Habsburgo, Maria Teresa, na cidade de Pozsony, nome húngaro da cidade de Bratislava, que atualmente é a capital da Eslováquia), mas a terceira parte, Concerto, nunca seria concluída. Salmo Vermelho aborda o movimento agrário na virada do século XIX para o XX, um tempo de agitação no campo e dos centros de ação numa greve de trabalhadores rurais, que serão suprimidos pelos militares no final do filme. Música e dança, elementos já presentes noutros filmes de Jancsó, estão em primeiro plano e grande parte do filme se entrega a interpretações de várias canções, algumas radicais e revolucionárias, muitas vezes com uma nova letra (como as Marseilles, A garota de Varsóvia, da revolução russa de 1905, e a norte-americana Johnny is my Darling). Encontramos também hinos e preces com novas letras radicais feitas pelos camponeses, incluindo uma oração ao Senhor socialista, o que explica a razão de ser do título em inglês do filme – o título húngaro é retirado de um poema de Sándor Petofi, O Povo Ainda Exige. (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)


Entre 1990  e  1999,  Jancsó aparece em 
seus filmes e aposta no poder do riso (23)

Querida Electra revisita a lenda grega transposta para a planície húngara. Baseado numa peça de László Gyurkó, o filme mistura elementos da história original com um cenário moderno de opressão e resistência, além de uma elaborada coreografia com luzes de velas, planos abertos e travellings. Depois que Electra se junta a seu irmão Orestes para expulsar o tirano Egisto, o filme termina de forma triunfal com o povo celebrando a vitoria e um helicóptero vermelho desce do céu. Embora Rapsódia Húngara seja focado demais em referências históricas específicas para agradar a um público não húngaro, Cunningham o considera muito interessante do ponto de vista estilístico, com seus camponeses se movendo em massa e suas velas acesas. Proprietário de terras, responsável pela morte de líder camponês, acaba simpatizando com a causa dele e termina o filme na linha de frente de uma manifestação. A alegoria segue em Allegro Barbaro, quando um proprietário de terras abandona seus companheiros que colaboram com os nazistas e se torna um guerrilheiro contra o exercito alemão. Durante a década de 1980, Jancsó está mudando. Em O Coração do Tirano, abandona muito do zelo revolucionário, idealismo e otimismo de Salmo Vermelho e Querida Electra, e explora um universo problemático, pessoalmente comprometido e perturbador. Entre outros, além de uma versão do texto de Goethe, Doutor Fausto (Faustus doktor boldogságos pokoljárása, 1982) e a filmagem da banda Omega (Omega, Omega, Omega, 1984), em Amanhecer (A Hajnal, 1986), adaptação do livro de Eli Wiesel (A Noite), um sobrevivente do Holocausto avesso a assassinato é obrigado a matar um soldado. Depois da queda do Muro de Berlim em 1989, tudo mudou (nem sempre para melhor) na Europa Oriental. Na década de 1990, os dilemas da “nova” Hungria fazem Jancsó se aproximar do riso em Lanterna do Senhor em Budapeste (Nekem lámpást adott kezembe az Úr Pesten, 1999). (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)

Nudez no Cinema: Miklós Jancsó


Na obra de Jancsó, quando ideias de liberdade e revolução
encarnam na mulher, a  nudez  dos  corpos passa de imagem
da  humilhação  à  beleza  de  uma  liberdade  a  conquistar

Quando imaginávamos que John Cunningham havia deixado claro que e estética de Jancsó se caracteriza “apenas” por seus planos abertos e altos, seus longos travellings melancólicos, Michel Estève afirma que o tema central do cineasta húngaro, o esforço do homem para sair do círculo traçado pela prisão da História, se articula a um elemento que particulariza ainda mais sua obra – o qual Cunningham cita muito rapidamente. Para Estève, desde Os sem Esperança (1966) até Querida Electra (1974), dois ciclos se opõem na obra de Jancsó. De um lado, o fracasso de uma tentativa de libertação através da revolta nacionalista (Os sem Esperança), a revolução ferida (Vermelhos e Brancos, 1967) ou esmagada (Silêncio e Grito, 1968; Agnus Dei, 1971). Do outro lado, a exaltação de um projeto revolucionário baseado na defesa da dignidade do homem, a busca da liberdade, a aspiração pela vitória de uma Revolução ao serviço do homem (Os Ventos da História, Fényes Szelek, 1969; Salmo Vermelho, 1972; Querida Electra,1974). Nesta oposição entre os dois ciclos, concluiu Estève, juntamente com o tratamento das cores (a policromia substituindo o preto e branco), é a dramaturgia do nu que desempenha papel simbólico decisivo (24). (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)


Na opinião de Jancsó, pelo menos  em  certa nudez  existia uma
conexão entre a sexualidade e a violência, a guerra e o erotismo

Explorando o destino trágico do indivíduo no interior do grupo, no primeiro ciclo fervilha o desnudamento de homens e mulheres. Independente de qualquer registro realmente erótico, a nudez corporal, muitas vezes associada ao tema da água, explorada pelo poder político ou militar, sugere primeiramente o caráter intercambiável das pessoas, vencidas, cativas, desprovidas das roupas através das quais exprimem sua condição ou seu ser interior. Para Estève, essa nudez implicitamente empurra o espectador às relações mais ou menos existentes entre a sexualidade e a violência, a guerra e o erotismo. Mais objetivamente, essa temática do nu serve, sobretudo, em Jancsó, para exprimir a humilhação e a submissão da pessoa aos caprichos dos carrascos, à fantasia cruel do opressor. Em Os sem Esperança, uma mulher nua corre de um lado para o outro numa linha reta enquanto é chicoteada até a morte. Em Agnus Dei, um violinista toca música enquanto as pessoas são mortas pelos homens do militar húngaro Miklós Horthy – uma estranha antecipação da prática nos campos de extermínio nazistas. Em Vermelhos e Brancos, Jancsó contrapõe numa longa sequência o corpo nu de uma mulher aos corpos mortos de soldados vermelhos. É Jancsó que diz: “Todos os nus possuem sua própria dramaturgia, tanto em Vermelhos e Brancos quanto em Silêncio e Grito. (...) A ausência de vestimentas (...) exprime sempre a servidão extrema: em Vermelhos e Brancos, é da servidão ao poder que se trata e, igualmente, em Silêncio e Grito, mas com essa amplificação de que estar nu é também uma doação feita àqueles que detêm o poder” (25). (imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)


No início da carreira  de  Jancsó, a nudez feminina
 representava  a  humilhação  da  condição de objeto. 
Em Salmo Vermelho, representa a alegria de viver

Cunningham faz referências às linhas retas na encenação em Jancsó. Estève percebeu a posição dominante e função ambivalente do círculo. No primeiro ciclo de inspiração de Jancsó citado acima, encontram-se rodas de vítimas e carrascos, galopes de cavalos, longos movimentos de câmera (em travellings e panorâmicas). Círculos encerram os personagens na prisão da violência. A partir de Salmo Vermelho, círculos se transformam no símbolo da fraternidade revolucionária. Círculos de moças, círculos protegendo a nudez de três meninas, círculos com fitas vermelhas e na reunião entre camponeses e camponesas. Em Salmo Vermelho, o círculo se abre e aponta um impulso lírico de comunhão em grupo na revolta contra o totalitarismo. A dramaturgia se torna, aqui, como em Querida Electra, o símbolo da exaltação da liberdade. No início de Salmo Vermelho, três mulheres caminham de seios nus entre os soldados falando da opressão do poder e depois tiram as roupas. Querida Electra exalta a beleza dos corpos nus das moças, a luminosidade da dança entre homem e mulher nus: a representação do nu se insere na realidade de um espetáculo e simboliza a beleza da liberdade a conquistar. Neste filme, assim como em Salmo Vermelho, desaparecem o sadismo e a crueldade que marcam certas sequências dos primeiros filmes: quando uma panorâmica passa sobre o corpo de uma mulher nua, antes do segundo massacre dos socialistas, é para exprimir a nostalgia da beleza do corpo feminino condenado à morte, à decomposição. Pela primeira vez em Jancsó, ideias de liberdade e revolução humanista encarnam na mulher: “anteriormente, disse o cineasta, mostrava a nudez das mulheres como uma imagem de humilhação. Elas eram apenas objetos nas mãos dos opressores; em Silêncio e Grito, por exemplo: peões sobre um tabuleiro de xadrez. Em Salmo Vermelho, a nudez é a alegria de viver. E a mulher representa também a ternura” (26). 


Leia também:

Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I)

Notas:

1. CUNNINGHAM, John. Hungarian Cinema. From Coffe House to Multiplex. London/New York: Wallflower Press, 2004. P. 147.
2. Idem, pp. 93, 95, 98, 219n24.
3. KOVÁCS, András Bálint. Szegénylegények/The Round Up. In: HAMES, Peter (Ed.). The Cinema of Central Europe. London/New York: Wallflower Press, 2004. P. 107.
4. MACDONALD, Scott. Péter Forgács: an Interview. In: NICHOLS, Bill; RENOV, Michael (Eds.). Cinema’s Alchemist. The Films of Péter Forgács. London/Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011. P. 11.
5. AUMONT, Jacques. Du Visage au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1992. P. 156.
6. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 244.
7. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Paris: Quadrige/Puf, 2001. P. 245.
8. AUMONT, Jacques. O Cinema e a Encenação. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2008. P. 106n159.
9. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., pp. 100-1, 110-5, 123, 220-1n15, 222n26.
10. HORTON, Andrew. Theo Angelopoulos. A Cinema of Contemplation. New Jersey/USA: Princeton University Press, 1997. P. 83.
11. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., p. 112.
12. HORTON, Andrew. Op. Cit.
13. CUNNINGHAM, John. Op. Cit.
14. MACDONALD, Scott. Op. Cit., p. 11.
15. KOVÁCS, András Bálint. Op. Cit., pp. 107-14.
16. Idem, p. 107.
17. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., pp. 110-1.
18. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 393.
19. KOVÁCS, András Bálint. Op. Cit., pp. 113-4.
20. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., p. 123.
21. Idem, pp. 123-4, 146, 223n8-9.
22. Ibidem, p. 123.
23. Ibidem, p. 146.
24. ESTÈVES, Michel. Jancsó (Miklós). In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. 1991. Pp. 208-9.
25. Idem, p. 208.
26. Ibidem, p. 209.

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