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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

16 de dez. de 2011

Tatischeff e a Vida em Linha Reta






“(...) Playtime
talvez seja a Europa
de 1968 filmada pelo
primeiro cineasta marciano,
o Louis Lumière ‘deles’? Então,
ele vê aquilo que não vemos
mais, escuta aquilo que
não escutamos mais e
filma diferente (...)”


François Truffaut, 1967 (1)



Por ocasião de uma entrevista para Cahiers du Cinéma, Jacques Tati (nascido Jacques Tatischeff) se referiu à importância da linha reta em Playtime. Tativille foi uma “cidade” modelo da arquitetura moderna, cujo aspecto mais importante para o cineasta francês é o ângulo reto. Os personagens, explicou Tati, são prisioneiros da arquitetura moderna, os arquitetos os obrigaram a circular sempre em linha reta. Na cena da boate inacabada que abre mesmo assim, e talvez por isso mesmo, a personalidade das pessoas aflora. Mesmo assim, logo na entrada o que vemos é um sinal luminoso de neon (com defeito) que indica a direção a ser seguida (a seta indica a direção da porta com uma linha reta que se afasta de um círculo em espiral) (imagem acima). Tati pediu a personagens e figurantes que sempre caminhassem em linha reta, reproduzindo o padrão arquitetônico moderno nas ruas, nos escritórios e nas residências (2). Como numa aula de antropologia, Playtime mostra como as pessoas são (ou naquilo em que estão a se transformar) através das formas dos lugares onde vivem (a linha reta) e pelos materiais de que são construídos (aço, concreto, vidro, plástico, material sintético).


Para Truffaut,
o problema de Ta
ti,
aquilo que pode fazer a
platéia parar de rir de seus
filmes
, é que ele é muito
lógico
. A questão é que
a “vida real” que Tati
pretende retratar
não é lógica


Referindo-se à Meu Tio (Mon Oncle, 1958), François Truffaut assinalou alguns pontos desse filme que chamou de “documentário do amanhã”, detalhes que o aproximam dos padrões de comportamento em Playtime. De acordo com Truffaut, o fato de Tati não suportar elipses faz com que muitas situações que poderiam ser subentendidas somem-se ao tempo do filme e causem uma sobrecarga. Por exemplo, a cozinha ultramoderna da casa Arpel e o peixe do jardim, que cospe água sempre que alguém passa pelo portão (imagem acima, à direita). Truffaut acha que a repetição da cozinha faz o riso ir embora, enquanto o cenário do peixe “não precisaria” ser reapresentado tantas vezes. Entretanto, Truffaut explica que retirar essas coisas do caminho não seria lógico para Tati. Para escamotear o peixe seria preciso um close, mas “na vida” isso não acontece dessa forma! Segundo o argumento francês de Tati explicado por Truffaut, “ninguém chega tão perto do nariz das pessoas” – essa observação é curiosa, pois em países como o Brasil é justamente assim que as coisas acontecem; algo que certamente deixa muitos visitantes europeus desconcertados. Sendo assim, conclui Truffaut, Tati leva às últimas conseqüências a presença de elementos aos quais não mais prestamos atenção, ou sequer ouvimos: o barulho dos saltos da senhora Arpel em Meu Tio, e de outros tantos personagens em Playtime, sons de equipamentos eletrônicos e do ar saindo do forro da poltrona (segunda imagem abaixo, à esquerda), etc (3).


Encarregada do
elenco de Playtime,
Marie-France Siegler
convenceu esposas de
militares americanos
morando na Europa
a interpretarem o
grupo de turistas
(4)


Para Serge Daney, os seis longas-metragens de Tati são os filmes que melhor analisam a história da França e do cinema francês do pós-guerra. Dia de Festa (originalmente lançado no Brasil como Carrossel da Esperança, Jour de Fête, 1949) aponta para o otimismo numa Europa arrasada, As Férias do Senhor Hulot (Les Vacances de Monsieur Hulot, 1953) e Meu Tio apontam para a sátira social francesa e se enquadram num “cinema de qualidade”. O caso de Playtime é particular, pois antecipa o bairro parisiense de La Défense e ao mesmo tempo sugere que o cinema francês não seria mais capaz de tratar das transformações na realidade do país, “degradando-se” em co-produções internacionais da mesma forma que o estilo arquitetônico internacional (onipresente neste filme) e a americanização da vida (elemento que já esbarrava na vida do carteiro em Dia de Festa). Situação que deságua em As Aventuras de M. Hulot no Tráfego Louco (Trafic, 1971) e Parada (Parade, 1974), respectivamente, uma co-produção com a Holanda e uma encomenda da televisão sueca. Além disso, as acusações de que Tati fosse um homem voltado para o passado são infundadas (5).



A pesquisa
para Playtime fez
de Tati um verdadeiro
etnólogo do tempo
presente
(6)



Desde Dia de Festa o cineasta já havia começado a fazer experimentos com a sonorização no cinema. Daney também nos esclarece que, com trinta anos de antecedência, Parada é uma extraordinária sondagem no mundo do vídeo. De fato, Daney nos abre os olhos e mostra que o grande tema dos filmes de Tati são as mídias, no sentido que lhes deu Marshall McLuhan: os meios de informação como extensões das faculdades mentais ou psíquicas do homem e prolongamentos de seu corpo. Em Dia de Festa, entregar a carta é um problema, mas verdadeira mensagem é o meio (o carteiro). As mídias são os fogos de artifício, sugere Daney, lançados cedo demais em As Férias do Senhor Hulot, que prenunciam o final de Parada, onde qualquer um pode se tornar rastro luminoso numa paisagem eletrônica. Em Meu Tio, não vemos a televisão do casal moderno, apenas a luz que emana dela e “ilumina” suas vidas e seu jardim e sua casa eletrônica. Tais exemplos mostram na opinião de Daney, como Tati prova que o mundo antigo é melhor (economia e calor humano) sem condenar o mundo moderno (o malfeito e o desperdício).



“(...) É preciso se dar conta
de que trabalhamos durante dois
anos em Playtime: foi muito tempo!
Neste filme, estiveram milhares de
pessoas. Pessoas que morreram,
algumas se casaram, outras se
divorciaram. Tati não mudou!”


Eugène Roman,

Cenógrafo em Playtime (7)



De acordo com Daney, com a exceção de Meu Tio, não se pode dizer que a obra de Tati elogia o antigo. O cineasta está com o olho na modernização assim, como os caminhos campestres de Dia de Festa e as auto-estradas de As Aventuras de M. Hulot no Tráfego Louco levam os homens cada vez mais do campo para as cidades. Daney também chama nossa atenção para a maneira como Tati escapa das catástrofes burlescas típicas de certos humorismos. Quando vemos Playtime, afirmou Daney, tendemos a esquecer que todas as ações realizadas são razoavelmente coroadas de sucesso: “Somos tão habituados pelo cinema a rir do fracasso, a nos divertir com a insignificância, que terminamos por acreditar que, diante de Playtime, também rimos contra alguma coisa, embora não haja nada (...)” (8). Daney insiste uma vez mais e afirma que Tati é diferente dos outros cômicos porque nele não existe queda. Não se pode rir em seus filmes daquele que cai já isso quase não existe, eis porque Daney gosta tanto da cena do restaurante em Playtime, quando uma mulher cai no chão por acreditar que o garçom lhe oferecia uma cadeira: “humano” não é rir daquele que cai; para Tati, manter-se de pé é o mais engraçado; e o fato de balançar, diria Daney em relação à passada de Hulot, é que é humano.




(...) A mensagem é
clara
: em Playtime, a
vedete
, é o cenário”(9)





Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
O Silêncio de Jacques Tati
Arte do Corpo: Natacha Merritt e o Diário Digital
Fassbinder em Petra von Kant
A Ideologia, a Mulher e o Cinema na Itália
O Marcello de Mastroianni

1. EDE, François ; GOUDET, Stéphane. Playtime. Paris: Cahiers du Cinéma, 2002. P. 15.
2. GOUDET, Stéphane. Jacques Tati, de François le Facteur à Monsieur Hulot. Paris: Cahiers du Cinéma, 2002. Pp. 80-1.
3. TRUFFAUT. François. Os Filmes de Minha Vida. Tradução Vera Adami. São Paulo: Nova Fronteira, 1989. P. 273.
4. DONDEY, Marc. Tati. Paris: Éditions Ramsay, 2009. P. 194.
5. DANEY, Serge. A Rampa. Cahiers du Cinéma 1970-1982. Tradução Marcelo Rezende. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Pp. 157-162.
6. DONDEY, M. Op. Cit.
7. GOUDET, S. Op. Cit., p. 79.
8. DANEY, S. Op. Cit., p. 161.
9. DONDEY, M. Op. Cit., p. 196.

25 de nov. de 2011

A Bela e o Desejo de Buñuel




(...)  De   uns   anos   para   cá,
 assisti      ao    
desaparecimento
 progressivo,     mesmo   em   sonho,
do  meu   instinto   sexual. Me  alegro 
com   isso,   pois   é  como se tivesse me
livrado   de   um  tirano.  Se  Mefistófeles
aparecesse   e   me   oferecesse  de volta o
 que chamam  de  virilidade, eu  lhe diria:  
‘Não,     obrigado,    isso   eu   não quero, 
mas    fortaleça    meu   fígado  e meus 
pulmões      para    que     eu   possa
continuar bebendo
e fumando’”

Luis Buñuel (1)



Uma Loura e Seu Tédio

Séverine Serizy é uma dona de casa burguesa vivendo na França da década de 60 do século passado. Esposa virginal, ela não quer ter filhos (e sexo) com o marido, afirmando que isso poderia arruinar a preciosidade daquela união. Ela tem fantasias sexuais masoquistas que não se encaixam em seu casamento com Pierre, um marido afetuoso e romântico. Na cena inicial quase somos levados a pensar o contrário, já que ele arranca a loura esposa de um passeio romântico repleto de palavras gentis numa charrete em meio a um bosque, para entregá-la aos dois cocheiros, que rasgam sua roupa, a amarram, chicoteiam e estupram – inicialmente ela protesta, mas logo percebemos sua expressão de prazer (imagens abaixo, à direita e esquerda). Entretanto, logo a seguir descobrimos que se trata de mais um delírio de Séverine, enquanto se deita para dormir em sua cama burguesa. Podemos então concluir que aquela violência não foi forçada sobre ela, mas se tratava de uma fantasia de Séverine. Uma amiga comenta sobre Henriette (uma burguesa como elas), uma conhecida de ambas que estava trabalhando num bordel. Séverine acha que transar com estranhos deve ser horrível, mas fica tão curiosa que pergunta a Pierre sobre como são as coisas num bordel. Certo dia, ela acaba procurando a satisfação de seus desejos se empregando como prostituta num bordel. Sem o conhecimento do marido, a vida dupla de Séverine emergirá do sonho para a realidade. Suas fantasias envolvem ser açoitada, amarrada, estuprada, e assumir uma posição passiva diante dos homens, pelos quais irá sentir maior atração na medida em que eles forem autoritários com ela (na imagem acima, seu primeiro cliente).

(...) A Bela
da Tarde talvez
tenha   sido   o  maior
sucesso     comercial   de

minha vida, sucesso que
atri
buo mais às putas
do filme do que a
meu trabalho”


Luis Buñuel (2)




Marcel é um cliente violento de Séverine no bordel onde ela arrumou um emprego. Certa vez, com uma fotografia de Pierre na mão, se refere a ele como um obstáculo. A seguir, Pierre leva um tiro, aparentemente disparado por Marcel - que será perseguido e morto pela polícia. Em conseqüência, Pierre ficou cego e paralisado numa cadeira de rodas - coincidentemente, dias antes ele passeava com Séverine quando se deparou com uma cadeira de rodas vazia na calçada em seu caminho. Séverine comenta com Pierre que não sonhou mais desde o acidente dele - no final da primeira fantasia, no início do filme, quando ela volta para o mundo "real", Pierre demonstra saber a respeito desses sonhos dela com carruagens... Henri Husson, um amigo dele que deseja Séverine (que por sua vez o detesta), ameaça contar tudo sobre a vida dupla dela para o marido - o endereço do bordel onde ela trabalha foi indicado por Henri, que chegou a encontrá-la por lá, mas não transou com ela alegando que o que o atraia era a pureza que acreditava existir na esposa do amigo. Vemos Henri se retirando do cômodo onde está Pierre e deixando o apartamento do casal. Séverine vai até o marido, que está imóvel. Esperando pelo pior, quando ela chega perto dele o tique-taque do relógio é substituído pelo som de sinos de ovelhas. Séverine sorri e vemos Pierre se levantar da cadeira de rodas como se tudo fosse uma encenação. Séverine agora escuta o som dos guizos da charrete de sua fantasia inicial. Na imagem final, acompanhamos a charrete seguindo pelo mesmo longo e reto caminho do bosque.

A Perversão é Desejar

“A partir de
O Diário de Uma Camareira,   minha   vida praticamente se confunde com     os     filmes
 que realizei”

Luis Buñuel (3)



A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967) é uma adaptação para cinema do romance de Joseph Kessel realizada pela cineasta espanhol Luis Buñuel, com a parceria de Jean-Claude Carrière no roteiro. Ao delinear o perfil de uma jovem burguesa masoquista, Buñuel explica que pretendia dar vazão a seu interesse pelo fetichismo, que já era patente desde O Alucinado (Él, 1953) (a primeira cena) e O Diario de Uma Camareira (Le Journal d’une Femme de Chambre, 1964) (a cena das botinas). Contudo, o cineasta adverte que seu interesse pela perversão é puramente teórico. “Ela me diverte”, disse ele, que afirmou não ter nada de perverso em seu comportamento sexual. Além disso, completou Buñuel, um verdadeiro perverso não mostra em público suas perversões. Uma dessas perversões, ou diversões, de Buñuel foi cortada pela censura. É na cena em que Séverine, já como prostituta, é contratada para deitar-se num caixão enquanto um homem chama pela filha dele e aparentemente se masturba. Isso acontece numa capela, e o cineasta lamentou que a missa que veio antes (provavelmente da filha morta) tenha sido cortada. Segundo Buñuel, esse corte altera o clima da cena (4). (imagens abaixo, a expressão prostrada de Séverine é sempre a mesma: à direita, na primeira vez que ouve falar de alguém de sua classe social que foi trabalhar num bordel; à esquerda, após voltar da fantasia das chicotadas)



“[Luis]    Buñuel
e Nelson [Rodrigues
]
partilham uma obsess
ão
pelos extremos de castidade
e  de  depravação  que podem
coexistir  na  mesma  pessoa
;
basta fazer uma comparação
entre A Bela da Tarde e A
Dama do Lotação
(5) (...)”

Braulio Tavares (6)



Ao contrário do que possa parecer, quando Buñuel afirmou que a partir de 1964 sua vida praticamente se confunde com seus filmes, o cineasta não seria Séverine! Se considerarmos as declarações de sua esposa, por traz daquela máscara de surrealista risonho havia um tirano nas relações familiares. Portanto, se algum personagem de A Bela da Tarde representa Buñuel, seriam os clientes – de quem Séverine vai gostar mais na medida em que forem mais autoritários. No que diz respeito à representação do desejo feminino neste filme, Peter Evans sugere a questão é muito mais complexa do que a dicotomia entre a “boa” e a “má” representação das mulheres. Para uma feminista radical, afirma Evans, A Bela da Tarde seria apenas mais um exemplo da exploração estereotipada em relação à mulher, já que a exibição erótica do corpo feminino estará sempre ligada à violência e coerção masculinas. Por outro lado, conclui Evans, aquela que ele chamou de “feminista libertária”, consideraria a libertação e a exploração da sexualidade feminina como algo mais importante do que uma imposição masculina. Algo que teria o potencial não apenas de interrogar a sexualidade em geral, mas também de explorar situações e comportamentos extremos, ultrapassar o realismo e expandir as fronteiras da consciência.




Dividida entre o
sentimento do pecado e
a angústia da punição, Séverine
é a melhor representante de uma
longa linha de personagens
neuróticas na obra
de Buñuel
(7)




Entretanto, Harmony H. Wu esclarece que as conclusões de Evans se baseiam mais no livro de Joseph Kessel do que no filme de Buñuel. Ao contrário do filme, com poucas referências à infância de Séverine, o livro a detalha bastante, levando Evans a construir explicações freudianas para o comportamento de Séverine que acabarão por validar a conclusão de que o comportamento dela é mais uma aberração no interior da heterossexualidade patriarcal – é verdade que Buñuel ancora a suposta frigidez de Séverine numa cena primitiva traumatizante: ainda criança ela se deixa beija por um trabalhador; escutamos a voz em off da mãe dela, que pergunta se a menina já vem; não há resposta (8). De acordo com Wu, não existe nada de perverso nas fantasias e desejos de Séverine, embora a efetivação deles no mundo real talvez possa aponta para a sujeição do desejo feminino ao masculino. Mas a própria Wu Tania Modelski, para quem a fantasia masoquista de ser levava à força poderia conter, paradoxalmente, um desejo de poder e vingança. Na lógica da sexualidade feminina “normal” do ponto de vista do patriarcado, Wu sugere que a verdadeira “perversão” de Séverine é o fato de ela conseguir prazer, mesmo vivendo num sistema que tende a apagar o prazer feminino da equação sexual (9).

Após sua primeira
experiência no bordel,
Séverine joga suas roupas
 
íntimas na lareira. No início
de  Esse  Obscuro  Objeto do
Desejo
(1977)
, Faber ordena
 a  seu  empregado  faça  o
mesmo com
a calcinha
que achou na sala


Sendo assim, conclui Wu, se A Bela da Tarde não aponta para uma alternativa feminista à sexualidade feminina sob o jugo patriarcal, o filme dispara um mecanismo do desejo a partir do interior do sistema que tem o potencial de desmantelar todo o sistema – algo que, segundo Wu, acontece no final do filme. De acordo com Wu, mesmo o bordel constitui uma avenida institucionalizada desses desejos sexuais irrecuperáveis no sistema burguês da sexualidade – sob o patriarcado, os bordéis servem apenas para os homens buscarem prazer. É por esse motivo que o eventual uso do bordel para seu próprio prazer sugere um caminho subversivo no interior do sistema. É um mecanismo perfeitamente buñueliano, diria Wu: o próprio mecanismo de repressão criando as condições de erupção do desejo que irá atacá-lo. Como disse o próprio Buñuel, a grande repressão sexual na Espanha católica tornou o próprio desejo que pretendia reprimir numa força avassaladora na psicologia dos espanhóis (10). (imagem acima, à direita, Séverine é a única dentre as prostitutas que se interessa pelo conteúdo da caixinha do cliente chinês; muitas pessoas perguntaram a Buñuel o que havia ali dentro, irritado ele respondia: "o que você quiser")

Real-Fantasia-Vida


A profunda cisão
da   subjetividade   de
Séverine
,  exacerbada   por
contraditórias     imposições
patriarcais   (virgem-esposa-
mãe-prostituta)
, se  reflete
na  estrutura  narrativa
  fraturada do filme
(11)



Wu afirma também que, ao nível da forma, A Bela da Tarde trabalha no sentido de libertar o olhar e a narrativa da pressão da autoridade patriarcal. Parte do “jogo” de assistir a este filme estaria na frustração ao tentar separar o “real” da fantasia. Na medida em que as fantasias de Séverine começam a tomar uma dimensão real através do bordel, aumenta nossa dificuldade em distingui-las da realidade. Essa lógica tão comum em nossa prática cotidiana (distinguir entre o sonho e a realidade) acaba se revelando um esforço totalmente fútil. As incertezas do final do filme não apenas tornam ambíguo seu desfecho, mas acabam por comprometer todo o castelo de cartas de dicotomias que possamos eventualmente ter construído em torno da narrativa. Cada segmento do filme que estabelecemos como sendo uma seqüência de sonho se dispersa. Essa é a hipótese de Paul Sandro, que Harmony Wu endossa, lembra que esse raciocínio leva também ao envolvimento da própria subjetividade do espectador, além de minar a própria estrutura da narrativa patriarcal da narrativa: “Esse ‘rompimento’ de categorizações produz uma indeterminação que subverte completamente uma lógica narrativa que seja dependente de uma temporalidade causal estrita; porque as contradições e auto-anulações não podem ser racionalmente explicadas fora de um universo ficcional ordenado e puro” (12). (imagens acima e abaixo: à esquerda, no começo do filme ele faz juras de amor enquanto ela não permite que ele a beije; à direita, no final do filme, depois do acidente ele se torna, pelo menos por alguns momentos, o marido totalmente dependente)





A cena em que
Séverine bisbilhota

a prostituta e seu cliente

é um momento de reflexão
sobre     o     espectador

em     relação     à

   Bela da Tarde (13)






Wu acredita que o caráter subversivo de A Bela da Tarde é que, como O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972) e ao contrário de Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929), o filme age contra as convenções sem se recusar a interagir com elas. As cenas “reais” de Séverine, Wu observa, são marcadas acusticamente pelo som dos relógios, que sublinham a “realidade” com uma progressão “real” do tempo – a obsessão com o tempo marca ao mesmo tempo o mundo estruturado da burguesia e a progressão estruturada do tempo na narrativa convencional. Porém, essa distinção entre fantasia e realidade cairá por terra na conclusão do filme – o trabalho de Buñuel com a trilha sonora des constrói a narrativa tradicional e desafia o elemento visual como o aspecto mais importante num filme. Na opinião de Wu, essa utilização convencional do tempo torna ainda mais inquietante a ilegibilidade da seqüência final.

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
O Marcello de Mastroianni
Casanova de Fellini e o Infantilismo Italiano
O Peplum e a Indústria do Espétáculo

Notas:

1. BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009. P. 75.
2. Idem, p. 337.
3. Ibidem.
4. Ibidem, pp. 336-7.
5. Adaptação de uma história do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980), o filme foi dirigido pelo também brasileiro Neville d’Almeida em 1978.
6. TAVARES, Bráulio. O Anjo Exterminador. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. P. 128.
7. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995. P. 186.
8. Idem, p. 234.
9. WU, Harmony H. Unraveling Entanglements of Sex, Narrative, Sound, and Gender: The Discreet Charm of Belle de Jour In: KINDER, Marsha (Ed.). Luis Buñuel The Discreet Charm of Bourgeoisie. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. Pp. 123-4, 125.
10. BUÑUEL, Luis. Op. Cit., p.337.
11. WU, Harmony H. Op. Cit., pp. 131-2.
12. Idem, pp.127-8, 132.
13. Ibidem, p. 134.


20 de out. de 2011

Joana de Falconetti e Dreyer





Nunca foi a primeira
opção!  A  decisão para
se realizar um filme sobre
o  martírio  da  padroeira  e
santa Joana d’Arc  só será
tomada num jogo com
palitos   de   fósforos




O Cinema Mudo que Fala

O cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968) se encontrava em Paris para decidir o que fazer com o financiamento oferecido pela Société générale de Films. O tema da heroína Joana d’Arc surgiu por acaso, Dreyer havia proposto três temas: Maria Antonieta, Catharina de Médicis e Joana d’Arc. Não conseguiram chegar a uma conclusão, até que o cineasta sugeriu que deveriam decidir no palitinho. O próximo passo, conseguir uma atriz para o papel principal, se transformou no próximo problema. Grandes atrizes francesas da época como Madeleine Renard e Marie Belle recusaram o papel e se mostraram assustadas com o temperamento do cineasta, que não se interessava em envolvimentos comerciais e pedia que elas raspassem a cabeça – o que corresponde à parte final, após a sentença do tribunal inquisitorial. Tempos depois, Dreyer encontra a atriz Maria Falconetti (nascida Renée Jeanne Falconetti, 1892-1946) no Théâtre de Paris, onde interpretava uma feminista na comédia La Garçonne, de Victor Marguerite. Falconetti foi seduzida pela extravagância do projeto e pela personalidade do cineasta, concordando inclusive em raspar a cabeça no final do filme (1). Assim surgiu A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), filme clássico da era do cinema mudo realizado basicamente a partir de closes de rostos.




Na hora de escrever o roteiro,
a parceria  com Delteil não dá certo.
Embora  ele  apareça  nos  créditos do
filme,   o   verdadeiro   colaborador   de
Dreyer  foi   um  especialista   na vida

de Joana d’Arc, mencionado apenas
como “conselheiro histórico”





Beatificada em 1909 e canonizada em 1920, Joana d’Arc virou santa 500 anos após sua morte. Declarada padroeira da França em 1922, Joana se encaixa no exemplo clássico da jovem camponesa analfabeta capaz de operar milagres – cuja memória também era conveniente para que o Vaticano conseguisse estreitar os laços com aquele país. Sendo assim o filme de Dreyer, realizado entre 1927 e 1928, se encaixava num tema que estava na ordem do dia. Já na primeira década do século passado, Joana havia inspirado escritores franceses de várias gerações e correntes diversas e até mesmo opostas. Jean Sémolué cita como exemplos Anatole France (1844-1924) com La Vie de Jeanne d’Arc (1908); Charles Péguy (1873-1914) com uma série de livros, sobretudo Le Mystère de la Charité de Jeanne d’Arc (1910); Joseph Delteil (1894-1978), que acabara de publicar Jeanne d’Arc, com certo impacto (em 1925 o livro recebeu o prêmio Femina, levando o autor a ser excluído do grupo surrealista, com o beneplácito da ira do líder André Breton). Além disso, Sainte Jeanne, peça teatral do irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), apareceria em 1923. Mais especificamente na seara de Dreyer, Marc de Gastyne (1889-1982) dirigiu La Merveilleuse Vie de Jeanne d’Arc, lançado em 1929 (2). Dreyer resume seu objetivo:

“A Donzela de Orleans, a trajetória de sua morte. Quanto mais eu me familiarizava com esse material histórico, mais imperativo para mim se tornou recriar o período mais importante na vida [dessa] moça. Queria que o público sentisse todo aquele poder. Os detalhes dos documentos cobrindo o processo de reabilitação foram necessários. Contudo, [o ano em que ocorreram os eventos parecia tão sem importância quanto distinguir entre eles e o tempo presente]. Eu queria criar um hino ao triunfo da alma sobre a vida. Minha vontade, meu sentimento, meu pensamento: compreender o misticismo” (3)

Dreyer Expressionista?




“O filme não impõe uma
interpretação sobrenatural,
mas impõe fortemente a crença de
Joana no sobrenatural. Ele
a   transcreve   no   real”


Jean Sémolué (4)



Depois dos cortes da censura, dos acidentes (incêndios) e de uma versão sonorizada em 1951-2 por Lo Duca, encontrou-se num asilo norueguês em 1981 uma cópia intacta a partir do primeiro negativo. De acordo com Sémolué, essa foi provavelmente uma das duas cópias propostas à censura dinamarquesa em 1928 – Sémolué lamenta a frase incorreta de Joana de cópias antigas que aparece em Viver a Vida (Vivre sa vie, 1962) de Jean-Luc Godard: “Deus sabe para onde nos conduz, mas nós só compreenderemos a estrada ao final de nosso caminho”; a frase correta na versão atual restaurada é: “Seus caminhos não são os nossos”. A versão de Lo Duca substituía os intertítulos por legendas, inseria uma trilha musical de música barroca e uma narração. Dreyer esboçou preocupação, porque embora tenha se baseado em elementos históricos, o texto original do processo não se encaixa na representação dos atores na tela, e os intertítulos seguiam uma inserção orgânica (eram mais do que uma explicação). Quando o padre Massieu (interpretado por Antonin Artaud) vem prepará-la para morrer, Joana insiste ser filha Dele. Massieu pergunta sobre a grande vitória. “Meu martírio”, responde Joana. “E sua libertação?”, ele insiste em saber. “a morte”, responde a mesma Joana que momentos antes havia renegado sua fé (de que fora enviada por Deus) por medo da fogueira. Nas palavras de Sémolué, nesse ponto do filme Dreyer realizou sua ambição: interpretar um hino ao triunfo da alma sobre a vida.



De acordo com Lotte Eisner, só se
pode falar de parentesco entre Dreyer
e  F. W.  Murnau  a  partir  de  O  Vampiro,
filme   posterior   à   Paixão de Joana
d’Arc  - o qual não fez sucesso (5)






No que diz respeito à adaptação das páginas do processo, os discursos do inquisidor Pierre Cauchon foram bem menos longos no filme do que no evento histórico. Por outro lado, o cineasta transcreveu palavra por palavra as falas de Joana na primeira audiência. Portanto, a pesquisa de Dreyer não significava necessariamente a inclusão literal de todas as passagens – como seria mais apropriado considerar a versão de Robert Bresson, O Processo de Joana d’Arc (Le Procès de Jeanne d’Arc, 1962). A proposta de Dreyer em relação ao entendimento do misticismo e do “triunfo da alma” recobre o processo de Joana com uma carga mais simbólica. Na opinião de Sémolué, pode-se mesmo falar de expressionismo em A Paixão de Joana d’Arc. Mas apenas se nos referimos à deformação da manifestação da vida interior, não levando em consideração à ênfase na deformação dos cenários de filmes como O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet der dr. Caligari, direção Robert Wiene, 1920). Enquanto o Caligarismo, explica Sémolué, toma as coisas e seres do mundo real para colocá-los num mundo ideal, Dreyer jamais se afasta da realidade humana para alcançar seu objetivo: levar o espectador a se afastar do presente para absorver o passado.



Em A Paixão de Joana d’Arc,
Dreyer proibirá a utilização de
maquiagem. Para o cineasta ela
carrega o germe da falsificação (6).
Curioso,  seja  quando  lembramos
dos  closes  que  o  caracterizam,
seja  pelo  uso  da  maquiagem
facial  pelo cinema  em geral




Quando o filme expressionista busca um efeito de iluminação, ele se aproxima da luz... Sémolué chama atenção de que a nitidez agressivamente estilizada de A Paixão de Joana d’Arc responde à mesma preocupação da profusão de closes: impor a presença viva do passado, ao invés de construir um cenário torto (prestes a ruir, fora de equilíbrio). Como esclareceu Dreyer em 1930: “tratava-se (...) de fazer de forma que o espectador fosse absorvido pelo passado. (...) Eu não estudei as vestimentas e outras características da época. Porque o ano do acontecimento me parece tão pouco importante quanto sua distância [em relação ao] presente”. Existe uma teatralização, não apenas de um filme de imagens (porque mudo), mas também de um filme de palavras. A encenação em torno das perguntas e respostas do interrogatório a que Joana foi submetida, disse o próprio Dreyer, apontava para a utilização dos closes. Eles acompanham as respostas, e o resultado, afirmou o cineasta, era que o espectador estava exposto ao mesmo choque que Joana ao receber as perguntas e ser torturada por elas.



Em relação aos rostos
cortados  pela  borda em
A Paixão de Joana d'Arc,
seria exemplo do conceito
de“desenquadramento”,
de   Pascal   Bonitzer




Sémolué resgata a observação de Gilles Deleuze, para quem essa obra de Dreyer é o filme afetivo por excelência: “É a cólera do arcebispo, é o martírio de Joana d’Arc, mas dos papéis e das situações só se conservará o necessário para que o a feto se libere e opere suas conjunções, esta ‘potência’ de cólera ou de astúcia, aquela ‘qualidade’ de vítima e de mártir. (...) O afeto é como o expressado do estado de coisas, mas esse expressado não remete ao estado de coisas, só remete aos rostos que o exprimem [e que lhe conferem uma matéria movente]. (...) Composto de primeiros planos curtos, o filme tomou para si esta parte do acontecimento que não se deixa atualizar num meio determinado” (7) – talvez o “desenquadramento de alguns enquadramentos” sugerido por Bonitzer nos autorize eleger a indeterminação como par paradoxal do close. Deleuze também percebeu o interesse de Dreyer pelo branco (luz?), cor cujo uso o filósofo francês considerou terrificante e monstruoso – o branco aprisiona a luz tanto quanto o preto. Por sua vez, referindo-se especificamente a um filme como A Palavra (Ordet, 1955) (outro exemplo da Paixão de Cristo na obra do cineasta dinamarquês), André Bazin ressaltou que “paradoxalmente o branco, que é aqui a cor da Morte (...), por uma genial ambigüidade também é a da vida”. Bazin destacou que “a encenação de Dreyer é dominada por duas tendências: a brancura e a lentidão” – para Bazin, esse filme exaure os últimos simbolismos da “luz sem cor” (8). Dreyer parece atraído por essa cor de maneira bastante... “afetuosa”: “Eu gosto de um branco intenso, apto a ressaltar certos semitons”; “eu sempre gostei dos muros brancos e eles estão em quase todos os meus filmes” (9).

Notas:

Leia também:
Quando Sophia Loren Entrou na Guerra dos Seios
Louise Bourgeois: Mulher Casa
O Rosto no Cinema (V), (VI)
A Religião no Cinema de Carl Dreyer
O Corpo Expressionista
O Melhor Efeito Especial é a Alma Humana
A Nudez no Cinema (VII), (IX)

1. Comentários de Dreyer no documentário Radiografia da Alma (Carl Th. Dreyer. My Metier, direção Torben Skjødt Jensen, 1995).
2. SÉMOLUÉ, Jean. Carl Theodor Dreyer. Le Mystère du Vrai. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005. Pp. 71, 74-7, 183.
3. Ver nota 1.
4. SÉMOLUÉ, Jean. Op. Cit., p. 82.
5. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. P. 199.
6. SÉMOLUÉ, Jean. Op. Cit., p. 155.
7. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. Pp. 26, 94, 137.
8. SÉMOLUÉ, Jean. Op. Cit., pp. 173 e 175.


22 de set. de 2011

A Nudez no Cinema (IX): Carl Theodor Dreyer




De acordo
com Carl Dreyer
,
transformar a pele

em paisagem envolve profundamente aquelas potências figurativas
do cinema
, e sua
relação com a
verdade
(1)




A Carne e a Alma 


O cineasta dinamarquês Carl Dreyer realizou alguns filmes bastante marcados pelas questões religiosas. Evidentemente, isso levou à desdobramentos de ordem formal, pois a maioria dos personagens cobre bastante o corpo. Além do mais, no contexto religioso em questão, a alma vale mais do que o corpo. De qualquer forma, a nudez é uma raridade na obra de Dreyer. Jacques Aumont se refere a um plano de nudez num filme de Dreyer (1889-1968) de 1925, O Senhor da Casa (título português; Du skal ære din hustru). Um garoto inteiramente nu se lava na banheira enquanto sua irmã mais velha joga água nele. Mas não adianta procurar, se é que foi filmada, a cena foi cortada do filme – resta apenas uma fotografia. Na obra do cineasta dinamarquês, o máximo que encontramos são corpos seminus como aquele do carrasco que flagela Cristo, em Páginas do Livro de Satã (Blade af Satans bog, 1920). Às vezes a nudez aparece violentamente, Helofs Marte nua da cintura para cima durante seu processo por feitiçaria, em Dias de Ira (Dies Irae, 1943). A pele enrugada demonstra que se trata apenas de uma mulher cansada (imagem abaixo, à direita). Quase sempre, a nudez é apenas evocada, como quando Gertrud decide consumar o adultério com o jovem pianista, em Gertrud (1964). Ela se despe, porém nós ficamos no quarto ao lado e só o que vemos é a sombra dela tirando a roupa.



Enquanto a maioria
mostra
apenas a nudez de
corpos jovens
, em Dias de Ira Carl Dreyer não se rende ao
preconceito e nos mos
tra o
corpo cansado seminu de
uma velha senhora



Ou então, nos deparamos com outro tipo de nudez. Em O Vampiro (Vampyr, 1932), os pescoços das irmãs perseguidas pelo vampiro, destinados à inscrição da mordida fatal. Ou o pescoço de Joana, em O Martírio de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), nós sabemos que ela será decapitada (última imagem do artigo). Ou ainda, em A Noiva de Glomdal (título português; Glomdalsbruder, 1926) o pescoço da jovem noiva de Glomdal, menos nu do que suas bochechas. Contudo, Aumont insiste que isso tudo quer dizer que Dreyer não procurava, à sua maneira, falar da nudez. A sugestão tem lá sua eficácia e a nudez evocada até agora remete mais ao suplício, ao sofrimento – um elemento muito próximo das temáticas de Dreyer. Da mesma forma, em toda a obra de Dreyer a nudez está profundamente ligada a uma idéia indissociavelmente cristã e pagã do corpo enquanto algo perecível, mas ao mesmo tempo desejável.



As palavras de Johannes
ressuscitam Inger em A Palavra.
No cin
ema sonoro, a Boca da Verdade traz a palavra interior, manifestação da alma. Nesse contexto, o corpo físico,
nu ou vestido
, é irrelevante (2)




A nudez deplorável de Marte, a “feiticeira” torturada pela Igreja (ou, pelo menos, por seus representantes, homens de corpos completamente cobertos, cujas cabeças são os únicos pontos onde vemos a pele nua), está lá para substituir a nudez de Anne, a jovem mulher ardente e de corpo mal desejado (como o corpo de Gertrud). No mesmo registro, mas no outro extremo, está a célebre cena no final de A Palavra (Ordet, 1954). A deploração de Inger por seu marido Mikkel: o corpo estendido da mulher, coberto por um manto com a cruz, contrapartida loura e luminosa do corpo sombrio da morena Léone (O Vampiro), a vampirizada. Enquanto alguém procura consolar Mikkel dizendo que a alma de Inger está em outro lugar, diante da presença inerte dela Mikkel soluça: “também amei o corpo dela!”. Como disse Jean-Marie Straub a propósito do cinema de Dreyer, “são paixões que estão nuas nesse cinema ‘feroz’”.



O que Dreyer
nos mostra através
do
desnudar da sombra de Gertrud é a natureza mesma
da imagem cinematográfica
,
aquela de uma presença
na ausência
(3)



Quanto ao nu propriamente dito, ele só é visível nas margens. No fundo da cena, onde os quadros que Dreyer jamais deixa de colocar nas paredes muitas vezes apresentam imagens de corpos nus como, por exemplo, em Mikaël (1924) e Gertrud. No primeiro filme, uma princesa e um jovem se encontram diante de um quadro mostrando um efebo nu que a faz exclamar: “Mas é você!” – que testemunha grosseiramente o amor ambíguo entre o personagem de Zoret, o pintor, por seu jovem protegido. Em Gertrud, a famosa cena “psicanalítica” diante da tapeçaria que mostra a mulher nua sendo devorada por cães. (imagem acima, à esquerda) Gertrud interrompe a conversa, olha para trás na direção da tapeçaria e afirma surpresa: “Isso, esse é o sonho que tive ontem à noite”. Mais discretamente, em Dias de Ira, o corpo do Crucificado, mais um corpo torturado, respondendo à tortura moral de Anne. Em Thorvaldsen (1949) Dreyer realizou um documentário sobre o escultor dinamarquês Betel Thorvaldsen (1770-1844), onde os corpos esculpidos contracenam com a luz e mostram/escondem seios, nádegas, ventres, ombros. (primeira imagem do artigo) Como definiu Aumont, toda uma pletora de mármore transformado em carne.



“É sua Paixão de
Joana d’Arc
que assegura
a glória de Dreyer. Ele não está
indiferente  ao  fato  de  que esse
filme   seja   antes   de   tudo   uma
sinfonia   de   rostos   em   primeiro
plano,    totalmente    nus.    O   nu
de  alma  e  corpo,  corpo  e  alma,
inseparavelmente  e  desde  seus
primeiros filmes:  tal  seria, no
fim das contas, raro e denso,
o nu dreyeriano”
(4)



Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
A Religião no Cinema de Carl Dreyer
Robert Bresson e Balthazar
O Triângulo Amoroso de Jean Eustache
Arte e Estética da Transgressão
A Grécia de Pasolini
A Tela Muda da Identidade Nacional

1. BRENEZ, Nicole; MATARASSO, David. Peau. In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs). Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991. P. 281.
2. DaLL’ASTA, Monica. Bouche (2). In: Op. Cit., P. 61.
3. D’ALLONNES, Fabrice Revault. Mouvement. In: Op. Cit., p. 245.
4. AUMONT, Jacques. Carl Theodor Dreyer. In: Op. Cit., p. 143. 


26 de ago. de 2011

A Mulher Casada e a Censura na França de Godard



“Fiz um filme
de entomologista
.
Considerei a mulher
como consideraria
um instrumento
:
de um ponto de
vista técnico
(...)”

Jean-Luc Godard,jornal Le Monde, 1964



O Consumo da Relação

Acompanhamos um dia da liberada Charlotte, e também seu marido, seu amante, seu filho e o novo mundo do consume em plena década de 60 do século passado. Ouvimos e vemos muitos slogans, além do monólogo interior de Charlotte enquanto ela perambula por Paris. Charlotte e Pierre moram num novo bloco de apartamentos em Paris (Elysée 2), cujas qualidades descrevem orgulhosamente para um convidado. Pierre é engenheiro (típica profissão daquela fase de progresso tecnológico do pós-guerra na Europa), ela uma jovem mãe. A divisão de sua vida emocional (entre o marido e o amante) parece refletir sua existência fragmentada em meios aos muitos estímulos consumistas que a rodeiam. Ao mostrar sua nova televisão, Pierre declara orgulhosamente que se trata de tecnologia aeronáutica (1). A vida de Charlotte segue, entre a desconfiança do marido e os encontros com o amante. Na seqüência final, ela está com ele, que tenta decorar o texto de Berenice, a peça de Jean Racine (1639-1699). Estão recitando a cena da despedida entre a rainha Berenice e o imperador Tito. Terminada a fala, vemos a mão de Charlotte no meio da tela (com sua aliança enfiada no dedo) acariciando a mão e o braço do amante. Ele pergunta se ela está chorando, depois de alguma hesitação a resposta é positiva. “Justo agora preciso ir”, responde o amante (que deve tomar um avião). “Sim, acabou”, comenta Charlotte, cuja mão já estava solitária no lençol branco a alguns segundos. (todas as imagens são de Uma Mulher Casada; abaixo, à direita, Charlotte não tira a aliança, mesmo quando está com o amante)



Godard havia
mostrado a iconografia
do cons
umismo capitalista
já em Acossado. Em Uma
Mulher C
asada torna-se
o princípio estrutural
do filme (2)



Uma Mulher Casada (Une Femme Mariée, 1964) descreve o adultério como uma série de fragmentos: corpos, palavras, fatos, trajetos, lugares, atos, palavras, imagens. Nas palavras de Antoine de Baecque, o filme mostrava o adultério como um produto da sociedade da “sociedade de consumo” contemporânea (os sociólogos começavam naquela época a utilizar esta expressão), onde a mulher, seu marido, seu amante, são objetos como quaisquer outros – sendo negociados pelas sociedades através do dinheiro, das mídias e da publicidade. Godard disse que se inspirou em La Vie Conjugale (direção André Cayatte, 1963), embora segundo ele o filme apresentasse friamente os pontos de vista da mulher e do homem. Frieza e falta de emoção que o próprio cineasta admite até certo ponto em Uma Mulher Casada, por tratar de personagens considerados como objetos de consumo. Abordagem que “recorta” uma mulher, Charlotte, suas atitudes, leituras, trabalho (ela é fotógrafa de moda da revista Elle) e homens, reinserindo tudo no contexto publicitário (de um recondicionamento dos indivíduos pelas mídias) (3).




“É perfeito.
Você fala muito. Não
terei necessidade de
escrever diálogos”

Godard para Macha Méril,
a atriz no papel de Charlotte (4)


Esses personagens vivem integrados num mundo de imagens, slogans e jornais, repetindo, sem sofrimentos nem alegria aparente, clichês de bem estar e felicidade: “Eu te amo”, “Eu sou feliz, eu sou feliz”, “Eu faço aquilo que eu quiser”. O filme nem tinha um roteiro, tanto que em seu início podemos ler: “Fragmentos de um Filme rodado em 1964”. Contudo, Baecque afirma que essa escolha formal tinha o objetivo de afasta ao máximo uma questão de foro íntimo que ocorria com Godard naquele exato momento: uma mulher, entre seu marido e seu amante. Traduzindo: Anna Karina, entre Godard e Maurice Ronet. Mas Godard insistia que seu ponto de vista era puramente sociológico – ele dizia que gostava dos cientistas sociais, que considerava a mais bela definição do cineasta. Em 1964, Godard afirmou ao jornal Le Monde que havia feito um filme de entomologista – o cineasta espanhol Luis Buñuel gostava de dizer que olhava para seus personagens como alguém interessado acompanha o comportamento das formigas. Uma Mulher Casada, explicou Godard, poderia ser visto como um folheto sobre a mulher que se compõe de braços, de pernas, de ventre, de rosto, de mãos, de “eu te amo”... Uma abordagem sociológica que não se preocupa em estabelecer o certo e o errado.

“Numa outra entrevista ao mesmo jornal, Godard acrescenta: ‘Imagine alguém que, como o Persa de Montesquieu ou o [índio] Huron de Voltaire, faça perguntas sobre um planeta desconhecido. Ele dirá ‘O que são homens?’, e responderemos: ‘São seres que, sem mulher, não pode viver e morrem’. Ele dirá então: ‘O que são mulheres?’, e responderemos: ‘Elas são feitas de braços, de pernas, de olhos, de saias, de suéteres e também de casamentos, de mentiras, de encontros, de ternura, de amizade” (5)

A Mulher Liberada em Pedaços



A expressão
vazia no rosto de
Macha Méril é um

elemento chave
  do filme (6)




No papel de Charlotte, a atriz Macha Méril estava à vontade num filme sobre a sexualidade e a contracepção – a cena onde um ginecologista comenta sobre métodos de contracepção é significativa, já que naquela época poucos países haviam legalizado se uso. Macha, explica Baecque, é uma “mulher liberada”, que fala sem preconceitos sobre sua sexualidade, seus desejos, sobre o prazer. Uma Mulher Casada foi o primeiro francês a falar abertamente sobre a pílula anticoncepcional. Por outro lado, observa Baecque, Godard revela um pudor protestante na representação do amor: fragmentos de rostos, de pernas, de coxas, ventre, garganta; mas nunca um seio, um sexo que não esteja coberto, ou alguma visão do ato sexual propriamente dito. Godard faz diferente: mãos que se aproximam e se acariciam, se apertam; uma perna entre duas outras; uma boca sobre uma orelha; um gesto que faz cair a alça do sutiã, que abaixa a calcinha.

Foi assistindo a
Mônica e o Desejo,
de Ingmar Bergman,
que Godard e Truffaut
aprenderam como
filmar uma mulher


Antoine
de Baecque (7)

O filme começa: uma mão de mulher surge da parte inferior da tela, no dedo correspondente uma aliança determina: uma mulher casada. Uma mão de homem vem a seu encontro e agarra-lhe o pulso com firmeza. Passamos às pernas de uma mulher, que se cruzam com as de um homem. Como letras de um alfabeto do corpo humano. De acordo com Jean-Luis Leutrat, as primeiras imagens de Uma Mulher Casada devem ser relacionadas às imagens iniciais de dois filmes, o filme anterior de Godard, O Desprezo (Le Mépris, 1963) e Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, 1959), dirigido por Alain Resnais. Charlotte utiliza as mesmas palavras de Camille em O Desprezo: “Eu não sei”, padrão entre as mulheres godardianas desse período, explica Leutrat com alguma ironia. Charlotte recita a ladainha narcísica e amorosa de suas perguntas (“Você ama meus ombros? Meus tornozelos?”). Quando o homem (o amante) fala, faz afirmações definitivas sobre o corpo dela: “Eu amo seus dentes”. Na opinião de Leutrat, essa afirmação, além dos tradicionais “eu te amo” e “eu também”, são afirmações bem fracas se comparadas às de Paul Javal diante de Camille: “Eu te amo totalmente, ternamente, tragicamente” (8). (imagem acima, à direita, planos em negativo se repetirão em Alphaville; talvez esta imagem seja uma homemagem a Bergman, em certo momento de Mônica e o Desejo, a protagonista se lava de forma semelhante; no prólogo de Persona, uma cena de desenho animado também reproduz esse movimento. A única diferença é que nos dois filmes do cineasta sueco as figuras femininas lavam os seios por dentro da blusa e o maiô, enquanto no filme de Godard a moça lava o rosto. Censura? Auto-censura? A quem diga que o cineasta francês tem um "tabu" em relação a seios)

Amante: Você deveria fazer
como nos filmes italianos,
as mulheres não se raspam debaixo dos braços;
Charlotte: Eu prefiro os filmes americanos de Hollywood, é mais bonito;
Am
ante: Sim, mas menos excitante!


Enquanto em O Desprezo os corpos imóveis de Camille e do marido são mostrados num plano-sequência, os de Charlotte e seu amante são mostrados de forma fragmentada (recortada) e em breves movimentos. Para Leutrat, esses corpos são justapostos em oposição às estátuas de Aristide Maillol (1861-1944) que veremos pouco depois nas ruas de Paris: corpos roliços, florescentes e maciços (imagem abaixo, à esquerda). Para Godard, explica Leutrat, Camille lembra a Eva de Piero Della Francesca (1415-1492). Por sua vez, Eva lembra a serpente. Atuando como ele mesmo, Fritz Lang (1890-1976) afirma em O Desprezo que o CinemaScope foi feito para as serpentes e para os funerais, não para os homens. Leutrat sugere que o corpo alongado (deitado) de Camille lembra a linha de uma serpente, por sua vez evocada pelo movimento da mão de Charlotte deslizando pelo lençol branco. Podemos distinguir o masculino e feminino em Uma Mulher Casada, o que não já acontece nas cenas iniciais de Hiroshima Meu Amor. Aqui as epidermes não parecem humanas. No filme de Resnais, a histórias dos amantes está ligada à História (a bomba atômica), enquanto que a aparição de um avião rasgando o idílio do casal no filme de Godard anuncia apenas o retorno do marido de Charlotte. Temos que esperar os campos de concentração no final para encontrar a História.

Auschwitz e a Má Consciência  



Até então,
o cinema francês

não havia mostrado
o Holocausto, pelo
menos num filme 
de ficção



O dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) falava de um teatro épico onde a platéia encontraria distração e ao mesmo tempo engajamento. Ele insistiu que para alcançar esse objetivo deve-se proceder a uma separação radical de elementos: música, diálogo, encenação. A ficção não deve ser unificada por sua forma, deve apresentar seus elementos à platéia para ser analisada e recombinada. De acordo com Colin MacCabe, em Uma Mulher Casada temos o verdadeiro início da aplicação da estética brechtiana, que irá dominar a obra de Godard até Tudo Vai Bem (Tout va Bien, 1972). Ainda de acordo com MacCabe, um dos maiores apoiadores de Brecht na França de então era o semiólogo Roland Barthes. MacCabe acredita que o pensamento de Barthes ainda serve de contraponto a Uma Mulher Casada – Barthes recusou um convite para atuar em Alphaville (1965). Em seu livro Mitologias (que afetou bastante a Truffaut ao ser lançado em 1957), Barthes toma como texto a sociedade de consumo, analisando as maneiras como a apresentação burguesa do mundo constantemente nega a história em favor de um apelo totalmente falso à natureza. As propagandas que se pode ver em Uma Mulher Casada apontam justamente para o apelo falso a uma Paris criada a partir do nada. Com a referência a Auschwitz no documentário Noite e Neblina (Nuit et Brouillard, direção Alain Resnais, 1955), Godard mostra que a história da Segunda Guerra Mundial não pode ser apagada (9).




No documentário
A Tristeza e a Piedade
(1969
), Max Ophuls mostraria
que os franceses colaboraram
bastante com o seu ocupante nazista
, que são tão (ou
mais?) anti-semitas





O escritor e cineasta Roger Leenhardt (1903-1985) surge no filme de Godard trazido por Pierre em seu avião, ele faz a Charlotte um comentário sobre Auschwitz. Para Baecque, trata-se de uma referência a um episódio ocorrido meses antes daquela filmagem. Em 20 de dezembro de 1963, vinte e duas pessoas que trabalharam no campo de extermínio enfrentaram um processo em Frankfurt. Quando terminar, em 1965, dezoito serão condenados à morte ou prisão perpétua e quatro absolvidos. Pouco antes, em 1961, houve o julgamento do carrasco Eichmann em Israel. Tudo isso aponta para uma tomada de consciência do extermínio de judeus e para a necessidade de julgar os responsáveis. De acordo com Baecque, Uma Mulher Casada foi o primeiro filme onde o extermínio dos judeus foi mencionado. Ao ser apresentado a Charlotte ainda na pista do aeroporto, Leenhardt pergunta a ela se já ouviu falar de Auschwitz. Ela retruca: “é a Talidomida?”. Não exatamente, responde o homem, é uma velha história judia, um campo.... Charlotte: “Ah sim, Hitler”. A Talidomida é um medicamento contra insônia que estava então no centro dos debates. Prescrito para mulheres grávidas, provocou deformações nos recém-nascidos. Para Leenhardt, conclui Baecque, o horror na história é o campo da morte. Para Charlotte, o horror na vida de uma mulher grávida seria uma criança-monstro (10).




Segundo Godard,
a
verdadeira obscenidade
era a reutilização das imagens
dos campos de morte
em
filmes comerciais
(11)




A seguir Leenhardt conta outra história em que duas pessoas conversam e alguém afirma que foram mortos todos os judeus e os cabeleireiros. O interlocutor pergunta por que os cabeleireiros, e Charlotte também. Baecque explica que Godard filma aqui o bom senso francês, que ele julga anti-semita por natureza, como uma boa consciência monstruosa. Fazendo referência a Roberto Rossellini, Pierre conta que certa vez em 1955 (dez anos depois da libertação) o cineasta italiano viu um grupo de ex-prisioneiros de Auschwitz. Eles não estavam magros e haviam ganhado algum dinheiro. Rossellini pensou que se tratava de uma falsa memória do campo de extermínio. Noutra parte do filme, quando Charlotte se encontra com o amante no cinema, por acaso está sendo exibido o documentário Noite e Neblina. Godard justapõe Auschwitz e a relação sexual entre os dois – através do recurso da montagem, uma demonstração da banalização do mal. O cineasta francês via com desconfiança as cerimônias e filmes sobre Auschwitz, uma memória adulterada que ele associa à obscenidade da boa consciência de uma sociedade que ignora milhões de excluídos.

“A idéia de que uma sociedade possa comemorar o passado, erigindo como mártires oficiais as vítimas dos campos, ao mesmo tempo em que aceita que milhões de pessoas vivam mal e morram em condições miseráveis no presente, esse paradoxo das memórias irrita o cineasta. Ele retornará regularmente em seus filmes, de 1964 há nossos dias, sobre essa questão com explosiva carga simbólica” (12)

O Caso da Mulher Casada


Em 1964,
oito Deputados Democrata-
Cristãos questionaram o Ministro
i
taliano sobre a presença do filme de
Go
dard no Festival de Veneza. Sendo um
evento financiado com dinheiro público,
viam o Estado como cúmplice de
uma obra considerada

 imoral (13)




No Festival de Veneza de 1964, Uma Mulher Casada será derrotado por O Deserto Vermelho (il Deserto Rosso, 1964), do italiano Michelangelo Antonioni. De qualquer forma o filme foi ali apresentado, tendo recebido poucos aplausos e alguma atenção da crítica. Entretanto, poucos dias depois, a comissão de controle impõe uma proibição total da obra. Henry Segogne, o presidente da comissão, procura explicar as razões em carta a Alain Peyrefitte, então Ministro da Informação do governo de François de Gaulle: “Em primeiro lugar, o próprio título dessa produção, A Mulher Casada, pela generalização que implica, surge como uma espécie de ultraje para todas as mulheres que se encontram nesse estado. Em segundo lugar, esse filme é mais ou menos exclusivamente direcionado à fotografia, em close-up, das travessuras amorosas de uma mulher com seu amante. As cenas de nu são numerosas, hábil e viciosamente fotografadas, sempre o gesto sugestivo, a atitude no limite do atentado ao pudor. Não são apenas algumas cenas que a comissão poderia solicitar o corte, mas a metade do filme. Esse filme propõe uma ilustração devassa da sexualidade” (14).




Com exceção de
Carmen de
Godard,
a nudez
das atrizes nos
filmes do cineasta francês
é
, de modo geral, até
bastante pudica

Alain Bergala (15)

 


A carta não era pública, Segogne divulgou apenas uma nota: “imagens contrárias aos bons costumes”. A comissão não poderia instituir a censura, apenas indicar, a tarefa seria do Ministro. A imprensa se mobiliza, é o terceiro caso de censura em poucos meses. Pouco antes, O Silêncio (Tystnaden, 1963), do sueco Ingmar Bergman, só foi liberado após corte de mais de um minuto. Um Só Pecado (La Peau Douce, 1964), de Truffaut, que também aborda o adultério, seria projetado no Festival de Cannes daquele ano apenas após cortes de alguns planos “fetichistas e eróticos”. Num encontro com Godard, Peyrefitte propõe mudar o título, cortar mais ou menos três minutos do filme e dos diálogos, remover as duas alusões diretas aos campos de concentração e extermínio (numa de suas falas, Pierre cita vários além de Auschwitz, Dachau, Mauthausen...). O cineasta deixa a reunião sugerindo que o nome do filme seja trocado para Proibido para Menores de 18 Anos. No final, manteve as referências ao Holocausto, mas realizou alguns cortes – a mudança do título, de A Mulher Casada para Uma Mulher Casada, e uma referência à sodomia enquanto método de contracepção, tema sempre na mira dos católicos, durante a conversa com o ginecologista.


Os seios parecem
ser um tabu para Godard
.
Ele mostra até as nádegas
de uma atriz
, menos os seios
como em O Desprezo (16). O cineasta insistiu em afirmar
que Uma Mulher Casada
não é pornografia


Com a exceção de O Pequeno Soldado (Le Petit, Soldat, 1963), que foi censurado por três anos, os filmes de Godard sempre se beneficiaram (através da mídia) de seus freqüentes problemas com a censura, de Viver a Vida (Vivre as Vie: Film en Douze Tableaux, 1962) e Uma Mulher Casada à Je Vous Salue Marie (1985). Esta é a opinião de Baecque, que cita a denúncia do anti-godardiano Positif contra o “compromisso” entre o cineasta e seus propagandistas (os censores e o Ministro). Macha Méril sai em defesa do filme quando ele finalmente estréia, em dezembro de 1964: “(...) Esse filme introduziu a questão da pílula, mostrou à sua maneira a sexualidade, desdramatizou o adultério, colocou o corpo entre os objetos de consumo. Foi um cinema altamente político, à frente da notícia” (17). Baecque resume a situação afirmando que Godard sairá do “caso Uma Mulher Casada” como um verdadeiro herói de esquerda. O cineasta abandona um “anarquismo de direita”, as piadas de direita em Acossado (À Bout de Souffle, 1960) e seu fascínio em O Pequeno Soldado pela OAS (organização direitista que lutou ao mesmo tempo contra o governo francês e o movimento guerrilheiro durante a guerra de independência da Argélia), prendendo-se mais à realidade, por exemplo, no caso do estatuto e na imagem da mulher. O outono de 1964 testemunha o nascimento do “fenômeno Godard”.

“Não se pode ir muito
 longe no amor; (...) Você
beija alguém
, acaricia,
mas ficamos à margem
.
É como uma casa em
que nunca entramos”


Comentário do amante para
Charlotte, enquanto se acariciam

Notas:

Leia também:

Kieślowski e o Outro Mundo
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Godard e a Distopia de Alphaville (final)
Profissão: Michelangelo Antonioni
O Pragmatismo Cinematográfico de Claude Chabrol
O Triângulo Amoroso de Jean Eustache
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Claudia Cardinale e a Mala de Zurlini
Crítica Cinematográfica e Mercado (I), (II)
A Vertigem Surrealista de Hitchcock

1. DARKE, Chris. Alphaville. New York: I.B. Tauris, 2005. P. 30.
2. MAcCABE, Colin. Godard. A Portrait of the Artist at 70. London: Bloomsbury Publishing, 2004. P. 165.
3. BAECQUE, Antoine de. Godard. Biographie. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2010. Pp. 260-1, 841n134.
4. Idem, p. 262.
5. Ibidem, p. 260.
6. MAcCABE, Colin. Op. Cit., p. 165.
7. Godard Truffaut e a Nouvelle Vague. Documentário escrito por Baecque e dirigido por Emmanuel Laurent, 2009.
8. BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs). Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991. Pp. 384-6.
9. MAcCABE, Colin. Op. Cit., pp. 165-6.
10. BAECQUE, Antoine de. Op. Cit., pp. 265-74, 842n162.
11. Idem, p. 842n163.
12. Ibidem, p. 266.
13. BERGALA, Alain. Godard au Travail. Les Années 60. Paris: Éditions Cahiers du Cinéma, 2006. P. 204.
14. BAECQUE, Antoine de. Op. Cit., p. 267.
15. BERGALA, Alain. Op. Cit., p. 214.
16.
BERGALA, A.; DÉNIEL, J.; LEBOUTTE, P. Op. Cit., p. 169.
17. BAECQUE, Antoine de. Op. Cit., p. 270.

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