Nunca foi a primeira
opção! A decisão para
se realizar um filme sobre
o martírio da padroeira e
santa Joana d’Arc só será
tomada num jogo com
palitos de fósforos
O Cinema Mudo que Fala
O cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968) se encontrava em Paris para decidir o que fazer com o financiamento oferecido pela Société générale de Films. O tema da heroína Joana d’Arc surgiu por acaso, Dreyer havia proposto três temas: Maria Antonieta, Catharina de Médicis e Joana d’Arc. Não conseguiram chegar a uma conclusão, até que o cineasta sugeriu que deveriam decidir no palitinho. O próximo passo, conseguir uma atriz para o papel principal, se transformou no próximo problema. Grandes atrizes francesas da época como Madeleine Renard e Marie Belle recusaram o papel e se mostraram assustadas com o temperamento do cineasta, que não se interessava em envolvimentos comerciais e pedia que elas raspassem a cabeça – o que corresponde à parte final, após a sentença do tribunal inquisitorial. Tempos depois, Dreyer encontra a atriz Maria Falconetti (nascida Renée Jeanne Falconetti, 1892-1946) no Théâtre de Paris, onde interpretava uma feminista na comédia La Garçonne, de Victor Marguerite. Falconetti foi seduzida pela extravagância do projeto e pela personalidade do cineasta, concordando inclusive em raspar a cabeça no final do filme (1). Assim surgiu A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), filme clássico da era do cinema mudo realizado basicamente a partir de closes de rostos.
Na hora de escrever o roteiro,
a parceria com Delteil não dá certo.
Embora ele apareça nos créditos do
filme, o verdadeiro colaborador de
Dreyer foi um especialista na vida
de Joana d’Arc, mencionado apenas
como “conselheiro histórico”
Beatificada em 1909 e canonizada em 1920, Joana d’Arc virou santa 500 anos após sua morte. Declarada padroeira da França em 1922, Joana se encaixa no exemplo clássico da jovem camponesa analfabeta capaz de operar milagres – cuja memória também era conveniente para que o Vaticano conseguisse estreitar os laços com aquele país. Sendo assim o filme de Dreyer, realizado entre 1927 e 1928, se encaixava num tema que estava na ordem do dia. Já na primeira década do século passado, Joana havia inspirado escritores franceses de várias gerações e correntes diversas e até mesmo opostas. Jean Sémolué cita como exemplos Anatole France (1844-1924) com La Vie de Jeanne d’Arc (1908); Charles Péguy (1873-1914) com uma série de livros, sobretudo Le Mystère de la Charité de Jeanne d’Arc (1910); Joseph Delteil (1894-1978), que acabara de publicar Jeanne d’Arc, com certo impacto (em 1925 o livro recebeu o prêmio Femina, levando o autor a ser excluído do grupo surrealista, com o beneplácito da ira do líder André Breton). Além disso, Sainte Jeanne, peça teatral do irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), apareceria em 1923. Mais especificamente na seara de Dreyer, Marc de Gastyne (1889-1982) dirigiu La Merveilleuse Vie de Jeanne d’Arc, lançado em 1929 (2). Dreyer resume seu objetivo:
“A Donzela de Orleans, a trajetória de sua morte. Quanto mais eu me familiarizava com esse material histórico, mais imperativo para mim se tornou recriar o período mais importante na vida [dessa] moça. Queria que o público sentisse todo aquele poder. Os detalhes dos documentos cobrindo o processo de reabilitação foram necessários. Contudo, [o ano em que ocorreram os eventos parecia tão sem importância quanto distinguir entre eles e o tempo presente]. Eu queria criar um hino ao triunfo da alma sobre a vida. Minha vontade, meu sentimento, meu pensamento: compreender o misticismo” (3)
Dreyer Expressionista?
“O filme não impõe uma
interpretação sobrenatural,
mas impõe fortemente a crença de
Joana no sobrenatural. Ele
a transcreve no real”
Jean Sémolué (4)
Depois dos cortes da censura, dos acidentes (incêndios) e de uma versão sonorizada em 1951-2 por Lo Duca, encontrou-se num asilo norueguês em 1981 uma cópia intacta a partir do primeiro negativo. De acordo com Sémolué, essa foi provavelmente uma das duas cópias propostas à censura dinamarquesa em 1928 – Sémolué lamenta a frase incorreta de Joana de cópias antigas que aparece em Viver a Vida (Vivre sa vie, 1962) de Jean-Luc Godard: “Deus sabe para onde nos conduz, mas nós só compreenderemos a estrada ao final de nosso caminho”; a frase correta na versão atual restaurada é: “Seus caminhos não são os nossos”. A versão de Lo Duca substituía os intertítulos por legendas, inseria uma trilha musical de música barroca e uma narração. Dreyer esboçou preocupação, porque embora tenha se baseado em elementos históricos, o texto original do processo não se encaixa na representação dos atores na tela, e os intertítulos seguiam uma inserção orgânica (eram mais do que uma explicação). Quando o padre Massieu (interpretado por Antonin Artaud) vem prepará-la para morrer, Joana insiste ser filha Dele. Massieu pergunta sobre a grande vitória. “Meu martírio”, responde Joana. “E sua libertação?”, ele insiste em saber. “a morte”, responde a mesma Joana que momentos antes havia renegado sua fé (de que fora enviada por Deus) por medo da fogueira. Nas palavras de Sémolué, nesse ponto do filme Dreyer realizou sua ambição: interpretar um hino ao triunfo da alma sobre a vida.
De acordo com Lotte Eisner, só se
pode falar de parentesco entre Dreyer
e F. W. Murnau a partir de O Vampiro,
filme posterior à Paixão de Joana
d’Arc - o qual não fez sucesso (5)
No que diz respeito à adaptação das páginas do processo, os discursos do inquisidor Pierre Cauchon foram bem menos longos no filme do que no evento histórico. Por outro lado, o cineasta transcreveu palavra por palavra as falas de Joana na primeira audiência. Portanto, a pesquisa de Dreyer não significava necessariamente a inclusão literal de todas as passagens – como seria mais apropriado considerar a versão de Robert Bresson, O Processo de Joana d’Arc (Le Procès de Jeanne d’Arc, 1962). A proposta de Dreyer em relação ao entendimento do misticismo e do “triunfo da alma” recobre o processo de Joana com uma carga mais simbólica. Na opinião de Sémolué, pode-se mesmo falar de expressionismo em A Paixão de Joana d’Arc. Mas apenas se nos referimos à deformação da manifestação da vida interior, não levando em consideração à ênfase na deformação dos cenários de filmes como O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet der dr. Caligari, direção Robert Wiene, 1920). Enquanto o Caligarismo, explica Sémolué, toma as coisas e seres do mundo real para colocá-los num mundo ideal, Dreyer jamais se afasta da realidade humana para alcançar seu objetivo: levar o espectador a se afastar do presente para absorver o passado.
Em A Paixão de Joana d’Arc,
Dreyer proibirá a utilização de
maquiagem. Para o cineasta ela
carrega o germe da falsificação (6).
Curioso, seja quando lembramos
dos closes que o caracterizam,
seja pelo uso da maquiagem
facial pelo cinema em geral
Quando o filme expressionista busca um efeito de iluminação, ele se aproxima da luz... Sémolué chama atenção de que a nitidez agressivamente estilizada de A Paixão de Joana d’Arc responde à mesma preocupação da profusão de closes: impor a presença viva do passado, ao invés de construir um cenário torto (prestes a ruir, fora de equilíbrio). Como esclareceu Dreyer em 1930: “tratava-se (...) de fazer de forma que o espectador fosse absorvido pelo passado. (...) Eu não estudei as vestimentas e outras características da época. Porque o ano do acontecimento me parece tão pouco importante quanto sua distância [em relação ao] presente”. Existe uma teatralização, não apenas de um filme de imagens (porque mudo), mas também de um filme de palavras. A encenação em torno das perguntas e respostas do interrogatório a que Joana foi submetida, disse o próprio Dreyer, apontava para a utilização dos closes. Eles acompanham as respostas, e o resultado, afirmou o cineasta, era que o espectador estava exposto ao mesmo choque que Joana ao receber as perguntas e ser torturada por elas.
Em relação aos rostos
cortados pela borda em
A Paixão de Joana d'Arc,
seria exemplo do conceito
de“desenquadramento”,
de Pascal Bonitzer
Sémolué resgata a observação de Gilles Deleuze, para quem essa obra de Dreyer é o filme afetivo por excelência: “É a cólera do arcebispo, é o martírio de Joana d’Arc, mas dos papéis e das situações só se conservará o necessário para que o a feto se libere e opere suas conjunções, esta ‘potência’ de cólera ou de astúcia, aquela ‘qualidade’ de vítima e de mártir. (...) O afeto é como o expressado do estado de coisas, mas esse expressado não remete ao estado de coisas, só remete aos rostos que o exprimem [e que lhe conferem uma matéria movente]. (...) Composto de primeiros planos curtos, o filme tomou para si esta parte do acontecimento que não se deixa atualizar num meio determinado” (7) – talvez o “desenquadramento de alguns enquadramentos” sugerido por Bonitzer nos autorize eleger a indeterminação como par paradoxal do close. Deleuze também percebeu o interesse de Dreyer pelo branco (luz?), cor cujo uso o filósofo francês considerou terrificante e monstruoso – o branco aprisiona a luz tanto quanto o preto. Por sua vez, referindo-se especificamente a um filme como A Palavra (Ordet, 1955) (outro exemplo da Paixão de Cristo na obra do cineasta dinamarquês), André Bazin ressaltou que “paradoxalmente o branco, que é aqui a cor da Morte (...), por uma genial ambigüidade também é a da vida”. Bazin destacou que “a encenação de Dreyer é dominada por duas tendências: a brancura e a lentidão” – para Bazin, esse filme exaure os últimos simbolismos da “luz sem cor” (8). Dreyer parece atraído por essa cor de maneira bastante... “afetuosa”: “Eu gosto de um branco intenso, apto a ressaltar certos semitons”; “eu sempre gostei dos muros brancos e eles estão em quase todos os meus filmes” (9).
Notas:
Leia também:
Louise Bourgeois: Mulher Casa
O Rosto no Cinema (V), (VI)
A Religião no Cinema de Carl Dreyer
O Corpo Expressionista
O Melhor Efeito Especial é a Alma Humana
A Nudez no Cinema (VII), (IX)
1. Comentários de Dreyer no documentário Radiografia da Alma (Carl Th. Dreyer. My Metier, direção Torben Skjødt Jensen, 1995).
2. SÉMOLUÉ, Jean. Carl Theodor Dreyer. Le Mystère du Vrai. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005. Pp. 71, 74-7, 183.
3. Ver nota 1.
4. SÉMOLUÉ, Jean. Op. Cit., p. 82.
5. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. P. 199.
6. SÉMOLUÉ, Jean. Op. Cit., p. 155.
7. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. Pp. 26, 94, 137.
8. SÉMOLUÉ, Jean. Op. Cit., pp. 173 e 175.