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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

15 de dez. de 2008

Berlin Alexanderplatz (final)





“Minh
a vida acabou.
Acabou! Para mim, chega.
Que cidade é essa? Que cidade
enorme é essa? E que tipo
de vida eu levei nela?”


Palavras de Franz no início
epílogo de Berlin Alexanderplatz





A Prostituta da Babilônia

O epílogo começa logo depois que Franz é preso como suspeito pela morte de Mieze. Ele entra num estupor e é internado. Sofrendo de alucinações, acredita que está sendo atormentado pela Prostituta da Babilônia do Livro das Revelações. Embora ao longo dos capítulos sejamos informados que no passado Franz havia sido cafetão, em sua tentativa de tornar-se um homem honesto ele se recusa a voltar a fazer isso. Quando estavam sem dinheiro e Lina se predispõe a buscar clientes na rua, ele se recusa. Quando Eva, prostituta de clientes ricos, que ama Franz e que reaparece vez por outra em sua vida, quer lhe dar dinheiro ele não aceita. Mas o filme não informa sobre um dado histórico pertinente. Em 1900, Berlim tinha tantas prostitutas que foi apelidada de Prostituta da Babilônia. Portanto, essa prostituta que atormenta Franz pode ser também a própria metrópole moderna: Berlim (1). (imagem abaixo, à direita, Alexanderplatz em 1906; acima, Eva assiste a crucificação de Franz, o homem que ela sempre amou. Ela sempre quis ajudá-lo, mas ele impedia)

Antes da Primeira Guerra Mundial, Berlim contava com uma Polícia da Moral vigiando as ruas tentando distinguir quem estava se prostituindo. O resultado foi um intrincado jogo de sinais faciais como sorrisos, balanço da cabeça e piscadelas entre as prostitutas e seus clientes que pudesse garantir a comunicação. Podemos ver um exemplo disso no filme, quando Franz, empoleirado na janela de um apartamento e entregue a bebida depois de abandonar Lina, dá umas piscadelas para uma vizinha casada que é conhecida por trair o marido. Quase imediatamente, ela surge na porta de Franz, que hesita, fazendo com que ela se irrite e vá embora reclamando (parte 4 do filme).

O pintor e gravador expressionista Ernst Kirchner, amigo de Döblin, não compartilhava o otimismo deste pela metrópole moderna. De qualquer forma, essa amizade era resultado do interesse cada vez maior dos artistas em colocar-se a serviço de uma mensagem política e social. Kirchner chegou a ilustrar um dos romances de Döblin em 1913 e pouco depois uma peça dele sobre uma “história de bordel” (2). Muito conhecido por seus quadros que retratam a vida noturna de Berlim, mostra as prostitutas como um elemento humano que mostra claramente o impacto da cidade grande nas vidas das pessoas. Mas ele não elogia, nem deprecia a prostituta, apenas direciona um foco de luz sobre esse elemento que havia se tornado vital na vida da rua da metrópole que se tornava Berlim. (imagem ao lado, Cinco Mulheres na Rua. Óleo sobre tela de Ernst Ludwig Kirchner, 1913. Ao contrário do amigo Alfred Döblin, que a considerava o lugar do Homem, Kirchner questionava o papel positivo da metrópole moderna)

O norueguês Eduard Munch, considerado o primeiro pintor psicológico do século 20, criador de O Grito (1893) (ao lado), abre a trilha para Kirchner. Na série de pinturas Cenas das Ruas de Berlim, Kirchner mostra poderosas expressões psicológicas dessa estranha mistura de alegria e alienação na vida urbana moderna nos primeiros anos do século 20. Não estava nem com medo da metrópole, nem morrendo de amores por ela. Kirchner olhava para ela e suas prostitutas como um estranho olha para o que parece ser o pulsar erótico do coração desse mostro urbano. Como outros artistas, Kirchner entendia a natureza dos relacionamentos sexuais no interior da metrópole como um dos elementos básicos da experiência urbana moderna. Antes, pintava mulheres nuas em cenários naturais exóticos. Agora, na metrópole, elas estão vestidas, mas isso não implica uma perda de liberdade. Não se trata de apontar a desarmonia da cidade grande, mas dizer que a harmonia dos valores primitivos naturais foi inventada na metrópole moderna.

A experimentação sexual – hetero ou homossexual – era moda na Berlim daqueles tempos. Essa metrópole germânica também era conhecida como centro mundial da prostituição homossexual (3). Após 1918, com o término da Primeira Guerra Mundial e a condenação da Alemanha a pagar reparações de guerra aos vencedores, além da crise econômica mundial, não é difícil imaginar o motivo pelo qual todo tipo de comércio sexual proliferou em Berlim até 1933 (ano em que o Nazismo subiu ao poder). Não fica difícil imaginar também as inclinações de Franz Biberkopf durante o filme em relação a Reinhold, a quem parece beijar durante um delírio em que está lutando contra o amigo/inimigo num ringue de boxe. (ao lado, o grito de Franz)

Antes disso, quando examinava o material pornográfico que um jornaleiro lhe havia oferecido para vender para ele, Franz diz que sente pena desses homens, mas Lina chega a duvidar das tendências dele. Em 1933, Hitler faz da prostituta uma fora da lei, sendo mandada para os campos de concentração ostentando uma cruz preta no peito. Elas estão entre as primeiras habitantes de Auschwitz. Hitler reprimiu o homossexualismo com a mesma receita (4), sendo mandadas/os para os campos de concentração ostentando um triângulo rosa (5). Não vamos nos esquecer que o próprio Franz aderiu ao discurso da “lei e da ordem” ao colocar (com alguma relutância) a braçadeira com a suástica nazista no braço enquanto vendia um jornal Nazista.

Foi Lina, a mulher que Franz tirou da prostituição, quem desconfiou dessa suástica e forçou Franz a abandonar esse trabalho. Ela chega a comentar como é difícil a situação da Alemanha naquele momento, além da falta de emprego, temos que prestar muita atenção a quem está nos oferecendo emprego e no que exatamente estamos trabalhando. Num dos delírios de Franz, ele atira em Ida (aquela namorada que ele matou na parte 1, motivo de prisão) pensando que atirava em Reinhold. Na hora do tiro, uma figura atrás dele fala da Prostituta da Babilônia, comenta que “ela bebeu o sangue dos santos que ela dilacerou”. Seja como for, no caso de Franz Biberkopf, a Prostituta da Babilônia perde a batalha. Mas perde para a Morte (representada pela morte dele na cruz e de todas as pessoas de sua vida na explosão atômica no epílogo).

Fascismo Enquanto Desejo Frustrado



"Franz: Sabe de uma coisa Baumann?
Agora sei o que é
a coisa mais
estranhadesse mundo. Você também?
Baumann: As pessoas.
Franz: Isso mesmo"


4º episódio



Quando questionado a respeito da função de filmes como O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978, primeira parte da Trilogia Alemã) Lola (1981) e O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsuch der Veronika Voss, 1981), Fassbinder acaba resumindo muito objetivamente a questão que está por trás de Berlin Alexanderplatz. Inclusive a primeira parte da primeira frase se parece mais com o que nós brasileiros normalmente achamos que só diz respeito a nossa relação com nossa história e que nunca seria o caso de um país como a Alemanha:

“Nós não aprendemos muito sobre a história da Alemanha na Alemanha, então temos que capturar alguma informação básica, e como cineasta eu simplesmente utilizei essa informação para contar uma história. Isso não significa nada mais do que tornar a realidade tangível. Eu vejo muitas coisas hoje novamente que acordam meu medo novamente. A convocação por lei e ordem. Eu quero usar este filme para dar a sociedade de hoje algo suplementar a sua história. Nossa democracia foi decretada para a zona de ocupação Ocidental, nós não lutamos por ela nós mesmos. Velhas maneiras de pensar têm muitas oportunidades vazarem pelas rachaduras, sem uma suástica, é claro, mas com velhos métodos de educação. Eu estou surpreso como o rearmamento veio rapidamente neste país. As tentativas da geração mais jovem de se revoltar foram totalmente patéticas. Eu também quero mostrar como a década de 50 formou as pessoas da década de 60. Como as instituições confrontaram a juventude engajada, que foi empurrada para a anormalidade do terrorismo”. (6)

Como Fassbinder havia feito com seus “filmes sobre mulheres”, O Casamento de Maria Braun, Lili Marlene (Lili Marleen, 1980), entre outros, Berlin Alexanderplatz parte do melodrama privado para ilustrar temas políticos (7). O cineasta queria mostrar especificamente como a frustração nacional do período entre-guerras levou ao Nazismo. Como se dá a conexão entre desejo frustrado e violência no contexto sócio-histórico do final da República de Weimar. (imagem acima, à esquerda, no fundo, os dois anjos que acompanham Franz. Na frente deles, numa luz roxa, o próprio Fassbinder acompanha o sofrimento de Franz sem esboçar nenhuma emoção; imagem ao lado, em seu delírio, Franz reencontra Mieze viva. Ao fundo os anjos)

Entretanto, a maior parte das imagens de Alexanderplatz durante a República de Weimar que Döblin havia descrito aparece no filme apenas durante as aberturas das 14 partes e sob os créditos iniciais. Imagens que evocam o desespero daqueles tempos: desempregados, manifestantes, crianças pedindo dinheiro. Podemos perceber essa situação nos esforços inúteis de Franz para conseguir dinheiro e também em seus apartamentos baratos. (imagem abaixo, Mieze conhece Meck)

Apesar de ser filme o mais caro financiado pela televisão da Alemanha Ocidental na época, Fassbinder não tinha dinheiro para gravações externas e cenários caros. Filmou a maior parte em estúdio fechado, contribuindo para um clima claustrofóbico: “mesmo fora da prisão, as pessoas são prisioneiras” (8). Foram feitas apenas algumas externas. O filme dá mais ênfase do que o livro quando um velho bêbado recruta Franz para vender o jornal nazista Völkische Beobachter (Observador do Popular), mas só depois de testar nosso protagonista para saber se ele é um “alemão verdadeiro”. Franz é obrigado a usar uma braçadeira com a suástica nazista. Na seqüência da cena, surge uma tela com a inscrição: “Deve haver ordem no paraíso”.

“Considerando a antecipação explícita de Fassbinder [em relação à] chegada do regime Nazi em suas adaptações de outros dois romances do final da era de Weimar, Bolwieser [1976] e Despair – Uma Viagem Para a Luz [Despair - Eine Reise ins Licht, 1977], não surpreende que as referências políticas mais diretas no filme sejam suas representações do fascismo do período, [porém] percebido por um olhar do pós-guerra. Esse tratamento transforma as vagas premonições do romance em antecipações explícitas do desastre próximo [que é a chegada do] Terceiro Reich”. (9)

Döblin escreveu o romance entre 1928 e 1929, portanto não podia antecipar o futuro dos nazistas. Fassbinder não reproduz esse distanciamento, mostra o Nazismo do ponto de vista de quem sabe o que aconteceu depois de 1933 – quando os nazistas subiram ao poder. Portanto, o filme transforma as vagas premonições do livro em antecipações explícitas do Terceiro Reich (na parte 2 do filme). Como quando Franz tenta vender o jornal nazista. Um salsicheiro pergunta a ele se o jornal calunia os judeus. Franz responde que não tem nada contra os judeus, mas que é a favor da ordem. O salsicheiro lê algumas calunias e sai desejando boa sorte a Franz, que fica sem graça quando o homem diz que é judeu mas que não tem importância.

Em seguida, no mesmo “buraco” do metrô, se dá o encontro de Franz com um antigo amigo das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Dreske é comunista e está com alguns amigos questionando o fato de Franz estar usando uma braçadeira com a suástica nazista. No livro, esse episódio não passa de algumas piadas sobre o fato. Mas no filme a cena se transforma num amargo confronto entre Franz e Dreske. Franz reencontra Dreske e os amigos no bar naquela noite. Cantam a Internacional, o hino comunista, convidando Franz para cantar também. Franz responde com um poema e uma música sobre camaradas mortos na guerra, então muda para uma sincera interpretação de “A Vigília no Reno”, uma favorita dos nazistas. Um dos amigos de Dreske vira a mesa de Franz, que reage violentamente e diz que eles são sangradores ingênuos que não compreendem o trabalho e a necessidade de ordem na sociedade. Então um relógio contra o qual ele bateu começa a tocar o hino alemão - Alemanha Acima de Tudo (Deutschland Über Alles). (imagem acima, Franz acha que Mieze o abandonou. Eva tenta fazê-lo entender que ela está morta)

“Neste episódio, Fassbinder dramatiza a conexão entre desejo frustrado e violência no contexto sócio-histórico do período final da República de Weimar, sugerindo como o desespero e a frustração da pequena-burguesia alimentaram o fogo do Terceiro Reich. Na maior parte do tempo (seu tratamento violento em relação às mulheres sendo uma exceção), Franz Biberkopf atravessa o filme como humilde, agradável e clemente, apesar de suas frustrações econômicas e emocionais. Vê-se aqui o quanto rapidamente ele pode se transformar num agressor quando encurralado. O tratamento de Fassbinder simpático a Franz nessa cena implica sua compreensão de quanto um homem assim, nessas circunstâncias, poderia ter sido seduzido pelas promessas de Hitler. Da mesma forma que [Fassbinder] apresentou o pai pré-nazi de Hanni em A Encruzilhada das Bestas Humanas [Wildwechsel, 1973]. A cena também sugere os perigos potenciais no desejo da classe média por paz e ordem que, como parecia claro a Fassbinder e muitos outros Alemães Ocidentais na década de 70, poderiam facilmente se transformar em repressão neofascista quando ameaçada” (10).

O Epílogo Surrealista




“Mieze simboliza todos
esses desejos utópicos que
o mundo não permitirá
que al
guém realize"




Todas as metáforas da violência que surgem a partir do desejo frustrado deságuam nas perturbadoras imagens do epílogo de Berlin Alexanderplatz. Baseado no Livro 9 do romance de Döblin, segundo Watson, Fassbinder o chamou de “meu sonho do sonho de Franz Biberkopf” e “da morte de uma criança e o nascimento de um homem útil” (o segundo título surge aos 00h23min: 26s). Desde A Viagem de Niklashauser (Die Niklashauser Fart, 1970), o cineasta não fazia algo tão mergulhado em simbolismo (11). Da seqüência de delírios, vamos selecionar apenas alguns. (imagem acima, Reinhold mata Mieze)

O narrador anuncia a morte de Franz (seria a morte da criança). É uma morte metafórica, ele agora é considerado apto para o interrogatório. Nesse meio tempo, Reinhold é descoberto e acusado pelo assassinato de Mieze. Reinhold confessou sua culpa para seu companheiro de cela, por quem estava apaixonado. Para receber a recompensa, Konrad o entrega a polícia. Este episódio consta do livro de Döblin também. Entretanto, Fassbinder vai além ao tornar explícita a natureza homo-erótica do relacionamento entre Reinhold e Konrad. Esta relação esta apenas implícita no livro. O cineasta faz com que eles se acariciem e se beijem. (imagem ao lado, Franz acocorado como um animal, pede ajuda aos ratos para chegar ao fim do mundo)

Esta situação marca um tema típico em Fassbinder: a exploração nas relações íntimas. Mais especificamente, ao mostrar Konrad entregando Reinhold em função do dinheiro da recompensa de 1000 marcos pelo verdadeiro assassino de Mieze. No livro, Reinhold conta que matou Mieze para um amigo, que vai à polícia com a informação. Durante o julgamento de Reinhold, Franz fala pouco, mas é o suficiente para o amigo/inimigo pegar 10 anos de cadeia. Franz arruma um emprego de assistente de porteiro. Neste ponto, o livro compara a vida de Franz a uma corrida cega por uma rua escura (12). (imagem ao lado, os ratos cavam um buraco e Franz se alegra por ver o que parece ser uma saída direto para o fim do mundo)

O texto de Döblin é a fonte de quase o diálogo e narração do epílogo. Algumas cenas surrealistas são também sugeridas no livro, mas Fassbinder vai muito além de Döblin nos efeitos visuais, musicais e sonoros. As imagens trazem o passado de Franz, os seus amigos, inimigos e amantes, que o atormentam ou o confortam. Com uma câmera girando em torno de Franz, dois anjos fazem comentários irônicos sobre suas imperfeições e masoquismo. Em seguida, Franz reencontra Mieze. Levanta a cabeça ao ouvir o Exército da Salvação, quando olha novamente para Mieze, ela não está mais lá. à procura de Mieze, cava o chão de terra furiosamente como um cachorro. (ao lado, Franz encontra Mieze transando com Reinhold. O fim do mundo?)

Depois de delirar que está sendo torturado por Reinhold, Franz aparece de quatro bebendo leite. Rodeado de ratos, pede que façam um buraco para que possa fugir para a fim do mundo. Franz começa a falar: “O ser humano é um animal feio. O inimigo dos inimigos. A criatura mais abominável que existe na Terra. Não é bom viver no corpo de um homem. Prefiro me encolher sob a terra, correr sobre os campos e comer o que encontrar. O vento sopra e a chuva cai. E o frio vem e vai. Isso é melhor do que viver no corpo de um homem”. Atravessa o buraco e encontra Mieze transando com Reinhold... Ela diz que foi forçada. Junto deles, a figura que falava sobre a Prostituta da Babilônia quando Franz atirou em Reinhold e matou Ida.

Na floresta de Freienwalde, Franz mata Reinhold, seu cadáver se transforma no de Ida e desaparece. Novamente Franz cava a terra para procurá-la. Mas é Cilly, outra de suas amantes, que ele encontra (imagem acima, à esquerda). Ela está num abatedouro cantando uma música sobre a morte, no fim enfia uma faca na barriga. Ainda no abatedouro, Reinhold agita um machado sobre uma pilha de corpos nus (ao lado). Franz e Mieze são manuseados como carcaças de animais. Um grito de mulher ressoa por toda a cena (abaixo). Os dois anjos olham da porta. Além deles, de óculos escuros e chapéu, está o próprio Fassbinder em pessoa, observando o pesadelo de Franz (e tomando parte nele) sem esboçar a mínima emoção.

Reinhold aparece também como Cristo e, perto do final, ele e Franz se preparam para uma luta de boxe. A platéia gira velozmente no fundo com um efeito de turbilhão. Reinhold provoca, até que Franz o puxa e beija. Na seqüência seguinte, a morte do velho Franz acontece entre uma estátua clássica, um casal nu e ovelhas. Sob o olhar de Eva e outros conhecidos, Franz é crucificado. No fundo desta imagem, vemos uma tela gigante de O Jardim das Delícias, do holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). De repente, a pintura se torna cinza como um céu de tempestade, depois surge a imagem de uma explosão atômica. Em seguida, os anjos vão empilhando os corpos como se fazia nos campos de concentração.

Soldados de Hitler aparecem em alguns pontos dos delírios de Franz. O judeu vendedor de salsichas retorna, ele está usando “como orgulho” a braçadeira com a suástica. Também com uma braçadeira Nazista, Franz canta “A Vigília sobre o Reno”. Na seqüência final de Berlin Alexanderplatz, tudo volta ao estilo naturalista, mostrando o testemunho de Franz no julgamento de Reinhold e um encontro com Eva no bar. O filme termina com algumas imagens de Franz como assistente de porteiro numa garagem, bem diferente do final esperançoso de Franz Biberkopf no livro de Döblin. (imagem ao lado, depois de ser insultado por Reinhold, Franz parece beijá-lo. Em seguida cai com um olho sangrando, enquanto Reinhold pergunta quem venceu)

“(...) Em suas páginas finais o romance enfatiza que após a perda de Mieze e seu terrificante encontro com suas lembranças e seu subconsciente no hospital, Franz Biberkopf experimenta um virtual renascimento. Desistindo de sua arrogante luta solitária contra o destino, ele aceita seu lugar como membro da sociedade, finalmente compreendendo a importância de juntar-se às pessoas a sua volta. Mas ele nunca irá correr com a multidão na direção de nenhum tipo de ação de massa. Ele ‘assiste friamente’ as paradas militares que passam por sua porta e promete nunca se juntar a elas. ‘Eu primeiro penso em tudo, e apenas se tudo está ok e me satisfaz, eu tomarei alguma atitude’. O romance então chega a um final confuso. O narrador faz um sumário enigmático: ‘Biberkopf é um trabalhador humilde. Nós sabemos o que sabemos, o preço que pagamos não é baixo’”. (13)

Mas o próprio Döblin admitiu que não ficou satisfeito com o final. Gostaria de ter encontrado uma forma de fazer Franz sair de sua passividade e se tornar um “homem ativo”. Talvez Franz tenha aprendido e abandonado sua guerra individual contra o destino (incluindo suas esperanças frustradas de uma utópica amizade masculina com Reinhold e um amor utópico com Mieze) e procurado solidariedade com seus companheiros. O que não significa que esteja pronto para abraçar uma falsa solidariedade, criada pela força e legitimada pela idéia de destino representada pela Prostituta da Babilônia - que foi afastada em seus pesadelos pela Morte. (imagem ao lado, crucificação de Franz. Ao fundo, O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch)

Por outro lado, vemos que nosso herói é reticente em relação ao coletivo que está surgindo no final da República de Weimar. Um “falso coletivo da guerra” que ameaça o mundo do novo Franz. No epílogo, logo no principio da seqüência em que os anjos juntam os corpos após a crucificação de Franz e a explosão atômica, um deles comenta que a Prostituta da Babilônia perdeu e a Morte triunfou - como no pesadelo de Franz. (imagem ao lado, o fogo que se segue à crucificação purifica Franz. O Jardim das Delícias se foi. Mieze se foi, em breve todos seguiram para outro lugar. No detalhe, sumiu a ovelha que podemos ver atrás dos corpos nus na imagem anterior acima. Mera falha de continuidade ou a ovelha era Franz?)


O final do filme de Fassbinder é mais pessimista que o de Döblin. O cineasta deixa Franz sem dúvidas ou reservas em relação à sociedade de massas. Sem tais reservas, o filme sugere que Franz logo irá se juntar aos nazistas. Talvez Franz Biberkopf tenha sido destruído no processo de se tornar um bom cidadão alemão. O próprio Fassbinder sugeriu que Franz votaria nos nazistas. O final mais pessimista de Fassbinder talvez seja indicação daquilo que foi definido como sua melancolia pós-revolucionária. (imagem ao lado, O Jadim das Delícias deu lugar ao fogo, que deu lugar à explosão atômica. Todos os conhecidos de Franz são varridos. Em seguida os anjos entram e fazem uma pilha com seus corpos, enquanto falam sobre a morte e a guerra)

“(...) Mais especificamente, o final de seu filme pode ser lido como um lamento pela perda do espírito anarquista utópico de Franz e talvez pelo seu próprio. Como Fassbinder colocou, Franz Biberkopf é uma pessoa com uma extraordinária fé na bondade humana, alguém que acredita que as pessoas são naturalmente anarquistas; ele é destruído pelo fato de que ele é ‘uma figura anarquista entre criaturas puramente sociais’. Essa caracterização é em larga medida verdadeira em muitas personificações de Franz Biberkopf em filmes anteriores de Fassbinder, tenham seu nome ou não. Fassbinder certa vez disse que tinha feito Berlin Alexanderplatz para todas as pessoas ‘que são forçadas a fazer muitas coisas que realmente não querem fazer’. Como ‘o verdadeiro amor’ de Hans Epp em O Mercador das Quatro Estações [Händler der vier Jahreszeiten, 1971], nesse filme Mieze simboliza todos esses desejos utópicos que o mundo não permitirá que alguém realize. Portanto, é apropriado que o melancólico final de Berlin Alexanderplatz seja seguido por uma repetição do assassinato de Mieze por Reinhold durante a passagem dos créditos finais do filme”. (14) (*)

Notas:

(*) Leia também Berlin Alexanderplatz (I) e (II)

1. BROWN, Robert. Die Strassenbilder: Ernst Kirchner’s Berlin Street Scenes. Disponível em: http://christies.com/LotFinder/lot_details.aspx?from=salesummary&intObjectID=4807488&sid=0b171258-682b-4537-a5d0-18ba87680735 Acessado em: 28/11/2008.
2. WOLF, Norbert. Ernst Ludwig Kirchner, 1880-1938. À Beira do Abismo do Tempo. Tradução João B. P. Boléo. Köln: Taschen, 2003. P. 43.
3. ROBERTS, Nickie. As Prostitutas na História. Tradução Magda Lopes. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Ventos, 1998. Pp. 319-20. Chamadas de “instrumentos do demônio” por vários tipos de “associações de moralização” alemãs, as prostitutas eram consideradas culpadas pela degenerescência da sociedade. Enquanto isso, muito dos homens que faziam parte dessas associações, operavam uma moral dupla, socialmente eram contra, mas, particularmente, eram fregueses assíduos das prostitutas. Além disso, os próprios governos permitiam que seus soldados tivessem livre acesso às prostitutas como forma de aliviar a pressão entre os soldados e reprimir o homossexualismo. Alguns filmes italianos mostram essa conduta como algo absolutamente corriqueiro na vida dos soldados. As milhares de mulheres jovens pelo Brasil afora, quando decidem se prostituir, e como parecem conhecer instintivamente a moral dupla da maioria dos homens, sabem que o machismo da maioria deles os faz olhar para elas como simples objetos de uso. O que elas fazem é cobrar por esse uso.
4. STEIGMANN-GALL, Richard. O Santo Reich. Concepções Nazistas do Cristianismo, 1919-1933. Tradução Claudia Gerpe Duarte. Rio de Janeiro: Imago, 2004. P. 250. O autor mostra como grupos de mulheres protestantes que apoiavam Hitler aprovavam suas leis de proibição do aborto, contra a pornografia, a prostituição e a homossexualidade. Independentemente de qualquer posicionamento machista, misógino ou homofóbico, pelo que se conhece da problemática social aguda dos tempos imediatamente anteriores à subida ao poder do Partido Nazista, pode-se compreender até certo ponto o clamor público de algumas camadas da população pela necessidade de “lei e ordem”. Brevemente, os judeus seriam incluídos entre os males a serem extirpados da sociedade alemã. É essa tendência da sociedade alemã misturar elementos que nada tem em comum e aderir a propostas genocidas em nome da “lei e da ordem” que levou Fassbinder a sugerir que os alemães gostam de uma ditadura.
5. GUIMARÃES, Luciano. As Cores na Mídia. A Organização da Cor-Informação no Jornalismo. São Paulo: Annablume, 2003. P. 40.
6. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. London/Massachusetts: Cambridge University Press, 1989. P. 81. Com relação à frase final, Fassbinder se refere ao grupo terrorista Baader-Meinhof e o tipo de reação fascista da sociedade alemã em relação a ele. O grupo, segundo seus porta-vozes, se insurgia contra o que considerava uma retomada do Nazismo na Alemanha. Desejava se contrapor ao que muitos jovens da geração do pós-guerra consideravam um papel passivo de seus pais no passado, o que havia permitido a ascensão do Nazismo naquele país.
7. KAPLAN, E. Ann. A Mulher e o Cinema. Os Dois Lados da Câmera. Tradução Helen Márcia Potter Pessoa. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
Pp. 150-3. A autora faz um comentário muito pertinente em relação à situação de americanização da Alemanha (Coca-Cola, hambúrguer, cinema, música e roupas) após a Segunda Guerra, aparentemente em função da perda do sentido positivo quanto à “ser alemão” naqueles dias. A própria tendência ao melodrama hollywoodiano claramente perceptível em Fassbinder levantou suspeitas entre os críticos quanto à criatividade do cineasta. Mas o Cinema Novo Alemão nada mais teria feito do que traduzir em termos europeus algo que também se podia encontrar nos personagens de certos cineastas norte-americanos da década de 60: ansiedade, alienação e preocupação com o outsider. Entretanto, as razões políticas dos cineastas alemães do Cinema Novo são diferentes, devido às particularidades da história alemã do pós-guerra. O Nazismo e o terrorismo durante a década de 70 eram assuntos recorrentes: Despair, Uma Viagem Para a Luz (nazismo), A Terceira Geração (Die Dritte Generation, 1979) (terrorismo), e uma parte da criação coletiva Alemanha no Outono (Deutschland in Herbst, 1978) (terrorismo e Nazismo), estão entre as contribuições de Fassbinder. O confronto com o Nazismo se fazia necessário, o terrorismo extremista como resposta a uma re-nazificação em bases novas da Alemanha criou um problema para cineastas alemães de esquerda, ou descontentes com as instituições, ou que apoiavam algumas idéias dos terroristas se não suas estratégias políticas.
8. WATSON, Wallace, Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. Pp. 231 e 253n31.
9. Idem, p. 241.
10. Idem, pp. 241-2. No final da citação o autor se refere à opinião de Fassbinder quanto a reação da população em relação às ações do grupo terrorista Baader-Meinhof. Na repressão, a população aprovava o endurecimento do Estado: perda de liberdades civis e assassinato. Neste último caso, especificamente ao desinteresse público pelo fato de que os terroristas, quando já presos, foram mortos na prisão. Fasssbinder afirmou que desejava mostrar como o povo alemão é predisposto ao fascismo, e cita como exemplo a demanda por “paz, ordem e disciplina” no país durante o episódio do grupo Baader-Meinhof.
11. WATSON, Wallace, Steadman. OP. Cit., pp. 242 e 253n35.
12. Idem, p. 243. A ênfase é minha.
13. Ibidem, p. 246.
14. Ibidem, p. 247.
 

14 de dez. de 2008

Berlin Alexanderplatz (II)




“O mais importante no homem
são seus olhos e seus pés.
É preciso saber ver o mundo
e ir de encontro a ele”

Gemendo e com a cara no chão,
com medo do mundo após sair
da prisão, Franz escuta as palavras
do judeu que o acolheu.




Fassbinder e Seu Franz

Rainer Werner Fassbinder havia tentado ler o livro entre os 14 e os 15 anos, mas parou por tédio lá pelas duzentas páginas. Aos 19 conseguiu começar e terminar e acredita que se tivesse lido até o final da primeira vez sua vida teria sido diferente. Esta leitura o liberou dos medos quanto a suas lembranças homossexuais e permitiu que não se tornasse um doente, desesperado e desonesto. Após sua segunda leitura, Fassbinder percebeu que grande parte de sua vida consistia em elementos do livro, que inconscientemente havia transferido as imagens contidas no texto para dentro de sua própria vida (1).

Em 1980, o próprio Fassbinder considerou a adaptação de Phil Jutzi em 1930 um bom filme, mas lamenta que o diretor tenha se afastado completamente dos objetivos de Döblin (2). Fassbinder afirma que Franz Biberkopf está por trás de todos os seus personagens, das figuras que estragam suas vidas por não admitirem suas necessidades e desejos, sempre acreditando que as pessoas podem ser boas (apesar das provas em contrário). Fassbinder caracteriza conteúdo do livro como homo-erótico, mas não sexual. A relação entre Franz e Reinhold não era sexual, apenas um amor puro, no qual a sociedade não pode tocar. Muitos são os Franz nos filmes de Fassbinder. (imagem ao lado, Reinhold; abaixo, à esquerda, Franz Biberkopf)

Temos Franz como Jorgos em O Machão (Katzelmacher, 1969), Franz em Deus da Peste (Götter der Pest, 1969), Michel em Rio das Mortes (1971) e Whity (1970), Franz em O Soldado Americano (Der Amerikanischer Soldat, 1970), Hanz em O Mercador das Quatro Estações (Händler der vier Jahreszeiten, 1971), Franz em A Encruzilhada das Bestas Humanas (Wildwechsel, 1973), Ali em O Medo Devora a Alma (Angst essen Seele auf, 1973), e Peter em Eu Só quero Que Vocês Me Amem (Ich Will Doch Nur, dass Ihr Mich Liebt, 1975). Em O Amor é Mais Frio Que a Morte (Liebe Ist Kälter als der Tod, 1969) e O Direito do Mais Forte (Faustrecht der Freiheit, 1974), cada um com seu Franz, é o próprio Fassbinder que interpreta os personagens. Franz Biberkopf também corresponde à primeira parte do pseudônimo Franz Walsch, que o cineasta utilizava quando aparecia nos créditos finais como produtor de algum filme (3).

O cineasta enxergava na relação entre Franz Biberkopf e Reinhold os lados masoquista e sádico da humanidade, assim como tendências opostas de sua própria personalidade. Juliane Lorenz enfatizou que Fassbinder era igualmente fascinado por Mieze, o objeto perdido do desejo de Franz. Ela lembra que ele frequentemente falava as três personalidades: Franz, Reinhold e Mieze (4). Na adaptação de Berlin Alexanderplatz por Fassbinder, a ênfase está mais na relação entre Franz e Reinhold que, no livro de Döblin, só começa lá pelo meio do texto. De fato, Bruno Fischli realmente afirma que Fassbinder não mostrou a cidade (pelo menos não como Döblin), concentrando-se nos personagens (5).


Ao contrário de Döblin, que inseriu o complemento (...A História de Franz Biberkopf) no título do romance apenas por insistência do editor, é exatamente na história de Biberkopf que Fassbinder se concentra. Por outro lado, o experimentalismo no estilo de Döblin (dadaísmo, cubismo) foi deixado de lado, substituído por uma abordagem naturalista e dentro das convenções do melodrama hollywoodiano. O filme de Fassbinder só foge disso no surrealismo empregado no epílogo. Visualmente, o filme segue um estilo europeu: luzes escuras e expressionismo alemão, além de muitos close ups. A trilha sonora também pode ser incluída aí. A narração, feita pelo próprio Fassbinder, dá um tom simpático ao filme, em contraste com o efeito alienante da voz do narrador no romance de Döblin. (abaixo, à direita, imagem imediatamente anterior à cena que mostra Franz tentando vender gravatas na rua)

Nos melodramas de Fassbinder, os heróis são vítimas sem saber – já que eles estão totalmente de acordo com aquilo que os faz vítimas. O gênero do melodrama deu ao cineasta a oportunidade de construir uma nova perspectiva em relação aos personagens que representam indivíduos aparentemente integrados. Desta forma, os heróis podem ter uma moral que os torna vilões. Fassbinder sofreu influência do cinema de Douglas Sirk, em cujos filmes os personagens que são integrados a sociedade (insiders) de repente descobrem que são excluídos (outsiders). Franz Biberkopf, protagonista de Berlin Alexanderplatz, oscila o tempo todo, resistindo a nossas tentativas de encaixá-lo em categorias como “bom” e “mau”.

Logo na parte 1, quando vemos Franz surrando Ida até a morte formamos uma opinião. Mas antes do flashback que nos mostra a morte dela, havíamos assistido consternados à reação de Franz e seu medo do mundo ao sair da prisão onde pagou pelo assassinato. Toda a vertigem, que Fassbinder traduz de forma perfeita em imagens, com os prédios girando em torno dele, a cena em que ele está gemendo com a cara no chão... São imagens de alta carga simbólica. Thomas Elsaesser lembra de um elemento que poderia estar por trás dessa oscilação de caráter de Franz/Fassbinder: a solidão entre os alemães. (imagem ao lado, um dos médicos de Franz no manicômio escreveu seu nome formando um X, agora ele faz um ponto de interrogação)

Para ilustrar, Elsaesser transcreve a fala de um personagem de Movimento em Falso (Falsche Bewegung, 1974), filme dirigido por Wim Wenders, cineasta alemão contemporâneo de Fassbinder e integrando com ele e mais Werner Herzog o chamado Cinema Novo Alemão. O filme se passa já no contexto da década de 70 do século 20, mas parece que estamos falando de Franz Biberkopf em 1929. Antes de deixar seus convidados e se enforcar, um rico industrial sentencia:

“Gostaria de falar rapidamente sobre a solidão na Alemanha. Ela me parece mais escondida e ao mesmo tempo mais dolorosa do que em qualquer outro lugar. (...) O medo é considerado um sinal de vaidade ou também é sentido como fraqueza. Por isso a solidão na Alemanha é mascarada. Mascarada por todos esses rostos desleais, brilhantes e desalmados que vagueiam por supermercados, centros de lazer, calçadões e turmas noturnas de academias de ginástica. As almas mortas da Alemanha”. (ao lado, Franz e O Grito, do noroeguês Eduard Munch, 1893)

Curiosamente, é o mesmo ator que, em O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978), filme dirigido por Fassbinder, paga ao marido dela para que a abandone. Ele paga para que possa ficar com ela, mas sua relação com Maria é explicitamente baseada na proposta de que compartilhar a solidão é o melhor que duas pessoas podem conseguir. Em 1971, depois de assistir a seis filmes de Douglas Sirk e visitá-lo na Suíça, Fassbinder escreveu:

“As pessoas não podem viver sozinhas, mas também não conseguem viver juntas. Eis porque os filmes de Sirk são tão desesperados... Douglas Sirk olha para esses cadáveres com tal ternura e cordialidade que começamos a pensar que algo possa estar profundamente errado se essas pessoas são tão imbecis e, apesar disso, tão humanas. A culpa é do medo e solidão”. (6)

O Sadomasoquismo de Franz Fassbinder



(...) A imagem final de Mieze
morta na floresta de Freienwalde
resume o tratamento altamente
emocional do tema do potencial

destrutivo da sexualidade (...)




A propósito do destino de Ida nas mãos de Franz, as mulheres são maltratadas tanto no romance de Döblin quanto no filme de Fassbinder, o mínimo que acontece é serem usadas em fantasias masculinas para compensar os homens que não podem expressar diretamente seu amor um pelo outro. Temos, por exemplo, o assassinato de Ida por Biberkopf na primeira parte do filme e o assassinato de Mieze por Reinhold próximo ao final. Entretanto, ao contrário do romance de Döblin e da misoginia em seus primeiros filmes de gangster, Fassbinder humaniza as mulheres e seus relacionamentos com os homens. (imagem acima, Mieze)

No romance, Lina não passa de uma caricatura. No filme ela se torna uma amante espirituosa. A proprietária do apartamento onde Franz mora é quase invisível no romance. No filme ela se transforma na simpática senhora Bast. Ela assistiu quando Franz matou Ida e estava lá quando ele saiu da prisão. A prostituta de alta classe Eva, amiga e antiga amante de Biberkopf, aparece em episódios mais intensos no filme – bem antes do que aparecia no romance. No caso de Mieze, o verdadeiro amor de Biberkopf, o romance nunca vai além de uma referência. No filme de Fassbinder, Mieze é tanto um símbolo de inocência e lealdade com auto-sacrifício quanto um caráter complexo. “Mieze” é uma gíria alemã que significa gata ou garota (7).

Nessa passagem do romance para o filme, os amigos de Biberkopf tornam-se mais simpáticos. Otto Lüders, abordado rapidamente no romance, transforma-se num drama de rivalidade sexual e traição. Meck, o velho amigo de Franz, que ajuda sua integração ao bando de ladrões passa, no filme, a sentir remorsos por ter envolvido Biberkopf novamente numa vida de crimes. No filme, ainda assim, Meck vai arranjar para que Reinhold possa matar Mieze na floresta. (imagem ao lado, Franz no manicômio depois da morte de Mieze. Acusado pela morte dela, o desnorteio dele foi tão profundo que as autoridades não o julgaram. Reinhold, o verdadeiro assassino, já havia sido descoberto quando Franz voltou a si)

O filme cria Baumann, um paciente e simpático proprietário que aluga um apartamento no qual Franz fica durante um período de depressão alcoólica depois que foi traído por Lüders. Fassbinder vê Baumann como o alter ego de Franz. O personagem foi criado a partir de vários diálogos que Biberkopf tem com interlocutores não identificados que ele imagina numa parte do romance chamada “Biberkopf num Estupor” (8). (imagem abaixo, à direita, por insistência de Mieze, Franz a apresenta para seus amigos e inimigos no bar; abaixo, à esquerda, uma das primeiras imagens do delírio de Franz no epílogo)

O filme enfatiza o que para Fassbinder é o tema do livro: uma relação sadomasoquista de natureza homo-erótica entre Biberkopf e Reinhold. Enquanto o romance fala brevemente do primeiro encontro entre Franz e Reinhold (quando Franz se “sente tremendamente atraído para ele”), o filme cria uma cena de tremenda sugestão sexual (parte 5 do filme). Pelo restante dessa parte do filme, o tratamento irônico que Döblin dá ao acordo entre Franz e Reinhold para que o primeiro possa pegar as mulheres que o outro jogou fora se transforma num drama tenso de significado sexual. Por exemplo, se no romance a conversa sobre a troca de mulheres se dá numa mesa de bar, no filme o encontro acontece num banheiro escuro.

Tanto no romance quanto no filme, Reinhold se incomoda com as tentativas ingênuas de Franz para “curar” sua misoginia. Como parte de sua campanha, Franz convida Reinhold para observar escondido como ele se comporta em casa com Mieze. Mas quando ela confessa que já está cansada do sobrinho de seu patrão, Franz bate nela furiosamente. Ela acaba descobrindo que Reinhold estava assistindo tudo. Enquanto bate, Franz tem flashbacks de quando matou Ida. Fassbinder leva mais a sério o que está apenas incluído na abordagem de Döblin: Franz atirando em Mieze as frustrações de sua relação masoquista com Reinhold. Döblin aborda o episódio de forma cômica, enquanto Fassbinder o transforma num melodrama pesado.

No livro, a reconciliação entre Mieze e Franz é concisa e meio cômica. Fassbinder faz dela puro romance (parte 11 do filme). O cineasta faz com que Eva e a senhora Bast ajudem Mieze a tratar dos machucados no rosto e descer as escadas para perdoar Franz. O casal vai passear na estação de férias de Freienwalde onde, tanto no livro quanto no filme, Mieze será morta por Reinhold. Fassbinder apresenta Mieze dividida entre seu amor por Franz e uma mistura de atração e repulsão em relação a Reinhold. No romance, Döblin a caracteriza simplesmente como uma "puta espertalhona". (imagem ao lado, depois de ver em seu delírio Mieze e Reinhold transando, Franz reza para se salvar da Prostituta da Babilônia)

Mas o espectador do filme de Fassbinder, sem acesso aos pensamentos de Mieze (que seriam contados por um narrador), é levado pelas imagens e pela situação a construir uma visão simpática em relação a uma garota frágil fugindo de seu perseguidor pela floresta. Fassbinder desejava que a floresta lembrasse uma cena de Os Nibelungos: A Morte de Siegfried (Die Nibelungen: Siegfrieds Tod, direção Fritz Lang, 1924). Segundo Watson, o cuidado de Fassbinder com a ambientação da floresta é muito superior ao tratamento dado por Döblin. (imagem ao lado, efeito turbilhão da multidão na luta de boxe entre Franz e Reinhold. A platéia, uma horda de anônimos que se diverte com a desgraça dos lutadores. É a ética da metrópole)

“Dessa forma, nas primeiras 13 partes do filme Fassbinder transforma o estilo experimental de Döblin sobre a estória de Franz Biberkopf e o épico sobre a cidade moderna num melodrama naturalista de amor e traição, recapitulando tematicamente muitos de seus filmes anteriores. A imagem final de Mieze morta na floresta de Freienwalde resume o tratamento altamente emocional do tema do potencial destrutivo da sexualidade, que Döblin tratou com ironia. Fassbinder parece ter interpretado o livro de Döblin muito em referência aos seus próprios desejos e fantasias, enxergando em Biberkopf e Reinhold o potencial humano tanto para o amor utópico quanto para o mútuo tormento. Ele disse que Berlin Alexanderplatz representa sua própria ‘leitura particular de Döblin’, e que a tentativa de fazer uma versão ‘objetiva’ de um romance, mesmo que fosse possível, ‘certamente resultaria em algo estéril’”. (9) (*)

Notas:

(*) Leia Berlin Alexanderplatz (I) e (final)

1. WATSON, Wallace, Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. P. 234.
2. Idem, p. 251n1.
3. Ibidem, p. 252n14.
4. Ibidem, p. 252n17.
5. Entrevista incluída nos extras do dvd de Berlin Alexanderplatz lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo, 2008.
6. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. P. 138, 207-9 e 210. Existe uma edição de Movimento em Falso no Brasil, lançada pela Europa Filmes, 2007. Infelizmente, não considero a tradução das legendas do dvd satisfatórias, pelo menos este trecho. Portanto, optei por cruzar as frases das legendas com minha própria tradução do trecho citado e que consta do livro de Elsaesser. Por esse motivo, o leitor que conferir esta citação com as legendas do filme encontrará algumas diferenças que podem confundi-lo inicialmente, mas não houve perda de sentido do trecho citado.
7. WATSON, Wallace, Steadman. OP. Cit., pp. 236 e252n23.
8. Idem, p. 252n24.
9. Idem, p. 239. A ênfase no “potencial”... foi minha.

13 de dez. de 2008

Berlin Alexanderplatz (I)


“Vemos, ao final, o homem
novamente parado em Berlim Alexanderplatz
. Muito mudado, avariado, mas endireitado. Assistir
a isso valerá a pena para muitos
que
, como Franz Biberkopf, habitam uma pele humana. E com os quais acontece o mesmo que a Franz Biberkopf. Isto é, querer mais da
vida do que pão com manteiga”


Alfred Döblin
Berlim Alexanderplatz (1)


O Fundo do Poço e o Que Franz Viu Lá

Essa viagem se estende por um romance e dois filmes produzidos entre 1929 e 1980. Estamos na Alemanha dos anos da hiperinflação, além do problema da depressão econômica que era mundial, o país tinha sido derrotado na Primeira Guerra Mundial e forçado a pagar vultosas somas aos países vencedores a título de reparação. Neste contexto, assistimos à desintegração dos laços sociais que unem uma nação. Esta época seu sistema político conhecido como República de Weimar e, apesar de o cinema mudo alemão desta época ter produzido muitas de suas melhores obras, a crise financeira, política e social não deixava que ninguém visse neste caos uma oportunidade de repensar as bases do país.

Duas das forças que se batiam então eram os comunistas e os nazistas. Sabemos que o segundo venceu, tomou o poder em 1933 e 13 anos depois o país estava literalmente arrasado. Talvez isso explique a recorrência na literatura e no nascente cinema alemão até 1933 (quando os nazistas promovem uma radical mudança também ao nível cultural) do tema do homem comum levado por uma combinação de ingenuidade e idealismo para uma vida de crimes. Filmes que poderiam ser citados são O Estudante de Praga (Der Student von Prag, direção Stellan Rye, 1913), A Rua (Die Strasse, direção Karl Grune, 1923) e Berlin Alexanderplatz (direção Phil Jutzi, 1930) (2).

Veremos aqui uma breve comparação entre as duas adaptações de Berlin Alexanderplatz para o cinema e o livro que as gerou. Uma das adaptações é a de 1930, a outra, de 1980, feita por Rainer Werner Fassbinder. Em 1929, o escritor e psiquiatra alemão Alfred Döblin (1878-1957) lança Berlim Alexanderplatz: A História de Franz Biberkopf. É um romance bem conhecido e, segundo Wallace Steadman Watson, ambientado num bairro de classe operária na parte oriental de Berlim nos últimos anos da República de Weimar (3). Entretanto, citando dados de Walter Benjamin, Jorge de Almeida afirma que não era um bairro industrial, mas comercial, habitado pela pequena burguesia (4). No meio de tudo isso, marginais e desempregados, Franz entre eles. Localizada no centro da cidade, a Praça Berlin Alexander existe de fato, e fica em Berlim, na vizinhança do famoso Portão de Brandenburgo. Döblin tinha um consultório próximo da praça.

Almeida não afirma que Döblin era psiquiatra, mas sim um médico interessado em psiquiatria. Döblin estudava a vida das prostitutas, dos marginais, dos desempregados e o modo como suas vidas na grande metrópole levavam a uma alteração de percepção e a problemas psiquiátricos. Referindo-se a primeira versão cinematográfica do romance, Watson afirma que o filme não parece ter captado a complexidade narrativa do livro. O que Watson se esquece de dizer é que, como lembra Almeida, o roteiro foi escrito pelo próprio Döblin. (as três imagens acima e ao lado mostram a praça em diferentes épocas. Respectivamente: 1920, antes do livro de Döblin; 1945, o que sobrou da praça após a derrota de Hitler; época atual)


Curiosamente, Fassbinder, que fará uma adaptação muito livre do filme em 1980 e que não acredita ser possível reproduzir um romance da literatura no cinema objetivamente, comentou que Jutzi abandonou completamente o livro de Döblin. O livro começa quando Franz Biberkopf sai da prisão, pegou quatro anos por espancar sua namorada até a morte. Antes ele trabalhava como operário de construção e transporte de mobílias. Acreditando na bondade do mundo e na própria sorte, tenta sem sucesso se sustentar com alguns pequenos trabalhos. Vendia gravatas, cadarço de sapato e jornais (o jornal nazista Völkische Beobachter). Envolveu-se com várias mulheres e foi ludibriado por alguns amigos. Um deles, o enigmático Reinhold, é membro de um bando de ladrões de armazéns e levou Franz de volta ao crime. Perde um braço durante a fuga de um roubo com Reinhold, que depois mata Mieze, o verdadeiro amor de Franz.

Mieze era prostituta e Franz seu cafetão, mas havia um sentimento de amor misturado nos negócios. Em função da morte dela, Franz entra num estado catatônico, sendo internado em hospital psiquiátrico. Ao sair, admite que a idéia de que poderia sobreviver sozinho nada mais era que orgulho. Ainda que reconheça que precisa da sociedade, Franz é cético em relação aos movimentos de massa que ameaçam os últimos dias da República de Weimar. (imagem ao lado, em 1912 o pintor expressionista Ernst Ludwig Kirchner conhece Alfred Döblin e pinta seu retrato. Kirchner mostrava em muitos de seus quadros as prostitutas de Berlim. Um insatisfeito com a modernidade, mostrava a prostituta como a representação mais fiel do descontentamento que a vida na grande metrópole produz. Em 1900, com milhares de prostitutas, Berlim ganhou o apelido de Prostituta da Babilônia. Kirchner e Döblin costumavam conversar sobre que tipo de sociedade é essa)

O livro não focaliza apenas a vida de Franz Biberkopf, mas a vida da cidade também. Alem de modificar o ponto de vista em relação a Franz, a heterogeneidade de cortes mostrando a vida em Berlim é análoga às colagens dos cubistas e dos dadaístas, em voga na época que Döblin escreveu o texto. A tendência desses movimentos artísticos era a composição de colagens compostas por fragmentos de objetos retirados da vida cotidiana. Esse afastamento em relação ao protagonista do livro para mostrar o contexto social, tem origem na rejeição de Döblin ao realismo burguês do romance psicológico moderno, como também ao culto da personalidade, que destrói o mundo e suas múltiplas dimensões.

Döblin não via a metrópole, ao contrário do Romantismo, como um ambiente hostil à humanidade. Em sua opinião, a sociedade é o lugar apropriado para os seres humanos em seu atual estágio de desenvolvimento. A propósito deste ponto, Watson afirma que Döblin só colocou a segunda parte do título do romance (A História de Franz Biberkopf) por insistência do editor (5). Em suas palavras, “apenas o ser coletivo Homem como um todo representa a espécie superior Homem”. Além de dadaístas e cubistas, o estilo do livro poderia ser comparado ao filme Berlim, Sinfonia da Metrópole (Berlin, Die Sinfonie der Grosstadt, direção Walter Ruttmann, 1927). O próprio Döblin refere-se a seu “estilo cinematográfico” (“kinostyle”), uma multidão de imagens. No livro, constantemente o narrador quebra a atenção do leitor ao mudar abruptamente o ponto de vista e o tom da narrativa para reduzir a tensão emocional da história e seus momentos mais melodramáticos. (imagem ao lado, Franz Biberkopf)

Na opinião de Almeida, em seu livro, Döblin estava preocupado em conciliar uma narrativa que apresenta a cidade, seus anônimos e a vida de um indivíduo em particular – proposta que é o sentido do Romance enquanto gênero desde o século XVIII. Como dar sentido à vida de um indivíduo para quem ela não tem mais sentido, nem para o observador, nem para o personagem, diante desse mundo caótico da metrópole moderna? Segundo Almeida, esta é a questão que Döblin procura resolver no livro. Döblin procura a resposta nos elementos da montagem, da colagem, da sobreposição de focos narrativos, das referências à tragédia grega e a bíblia (6).

A Indústria Cultural e o João Teimoso




"Nós,
de baixo,
nunca
ch
egaremos
em cima"



Ilma Santana fez algumas interessantes observações sobre o livro de Döblin, mostrando como ele sofreu críticas da esquerda, e também faz comparações com o filme de Phil Jutzi e o comprometimento dele com a indústria cultural (7). Questionava-se a forma não-realista de construção do personagem Franz Biberkopf, mesmo que inserido num texto ultra-realista. Na opinião de Döblin, os comunistas que o atacaram odeiam a realidade e não tem coragem de se aproximar dela. Essa, explica Santana, era a controvérsia que determinava o debate da esquerda sobre a arte nos anos seguintes: Qual seria a estética adequada à época? O que significa “mostrar a realidade”?

Por trás da crítica a Döblin está a dúvida da esquerda sobre o princípio da montagem: ou a montagem que fragmenta as imagens da realidade ou a que é fruto de um realismo naturalista que busca a unidade entre ação e indivíduo. Santana mostra as opiniões de Gregor e Patalas, para quem Jutzi, diante da loucura da crise econômica durante a República de Weimar e do Nazismo ascendente, enfatiza imagens otimistas do trabalho de construção em Berlim que são muito distantes da realidade (ainda que sejam imagens reais). Na crítica de Siegfried Kracauer, Santana nos lembra, o filme demonstra uma crença no desenvolvimento positivo do regime republicano, ainda que Franz aparecesse como uma mistura de honestidade e indiferença política. Na adaptação cinematográfica de Jutzi em 1930, nos conta Santana, o livro é reduzido ao desenvolvimento convencional do marginal Franz. O filme se rende à indústria cultural: tudo é mais suave do que no romance. Vejamos alguns exemplos que Santana selecionou e que mostram a distância entre o livro e a primeira versão cinematográfica. O filme não elimina o amor, mas o caráter anárquico desse amor, a mistura entre amor e negócio (ela prostituta e ele seu cafetão), e a sociedade é bem comportada. Noutro momento do filme, Franz espanca Mieze. Mais tarde, Biberkopf comenta, “nós, de baixo, nunca chegaremos em cima”. (nas imagens ao lado, Franz Biberkopf tenta vender gravatas na rua)

No romance de Döblin, há um duelo de canções num bar. Os comunistas, dogmáticos, cantam seu hino, a Internacional. Franz, anarquista, canta sua marchinha predileta: “Pátria amada, fique tranqüila, o Reno está vigiado”. Biberkopf explode e acaba com um discurso terrorista, que deixa entrever um fascismo latente. No filme, a discussão vira uma brincadeira de bar. No livro, Biberkopf termina como auxiliar de porteiro de fábrica cantando sua marchinha. No filme, a última imagem é de Biberkopf como vendedor de rua na Alexanderplatz. Ele vende um boneco conhecido pelas crianças como João Teimoso. Sempre o socamos, mas ele volta a endireitar-se, pois seu contrapeso de metal (seu coração) está no lugar certo.

Na opinião de Santana, o filme de Jutzi segue um modelo dominante de cinema que, por ironia, corresponde tanto ao gosto “popular” dos camaradas do Partido quanto ao suposto “gosto do público”. Novamente citando Kracauer, Santana sugere que o filme seria um compromisso entre as possibilidades cinematográfica do romance e as exigências da indústria cinematográfica ou o suposto gosto do público. A rede de associações soltas do romance estreita-se na fábula fechada do submundo, como é de costume... Como o público quer ver seus astros preferidos, é Heinrich Georg (que representa o personagem de Franz Biberkopf) que está no centro de Berlin Alexanderplatz de Jutzi, e não o conglomerado humano da praça. (imagem acima, à direita Franz da versão de 1930; à esquerda, da versão de 1980. Ao lado, Após uma panorâmica da praça, começa a versão de 1930: o muro da prisão. Tradução da aridez da Berlim daqueles tempos para quem não tinha dinheiro)

Para Santana, tudo isso evidencia uma solução de compromisso burguês para a possibilidade de produção do filme, ainda que ele seja mais instigante do que algumas produções de esquerda direcionadas ao proletariado. Seja como for, a adaptação de Berlin Alexanderplatz criada por Jutzi mostra como a indústria cultura já deixava pouco espaço em 1930 para autores interessados em superar os limites históricos, aproximar-se das camadas mais profundas da realidade, mudar a consciência do espectador ou romper os limites do olhar. (*)

Notas:

(*) Leia também Berlin Alexanderplatz (II) e (final)

1. Trecho do livro de Döblin citado pelo prof. Dr. Jorge de Almeida (USP), em entrevista incluída nos extras do dvd de Berlin Alexanderplatz lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo, 2008.
2. ELSAESSER, Thomas. Weimar Cinema and After. Germany’s Historical Imaginary. New York: Routledge, 2000. P. 233.
3. WATSON, Wallace, Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. Pp.232-3.
4. Ver nota 1.
5. WATSON, Wallace, Steadman. OP. Cit., p. 251n7.
6. Ver nota 1.
7. SANTANA, Ilma E. de Assis. O Cinema Operário na República de Weimar. São Paulo: Editora Unesp, 1993. Pp. 70-6.

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