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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

15 de dez. de 2008

Berlin Alexanderplatz (final)





“Minh
a vida acabou.
Acabou! Para mim, chega.
Que cidade é essa? Que cidade
enorme é essa? E que tipo
de vida eu levei nela?”


Palavras de Franz no início
epílogo de Berlin Alexanderplatz





A Prostituta da Babilônia

O epílogo começa logo depois que Franz é preso como suspeito pela morte de Mieze. Ele entra num estupor e é internado. Sofrendo de alucinações, acredita que está sendo atormentado pela Prostituta da Babilônia do Livro das Revelações. Embora ao longo dos capítulos sejamos informados que no passado Franz havia sido cafetão, em sua tentativa de tornar-se um homem honesto ele se recusa a voltar a fazer isso. Quando estavam sem dinheiro e Lina se predispõe a buscar clientes na rua, ele se recusa. Quando Eva, prostituta de clientes ricos, que ama Franz e que reaparece vez por outra em sua vida, quer lhe dar dinheiro ele não aceita. Mas o filme não informa sobre um dado histórico pertinente. Em 1900, Berlim tinha tantas prostitutas que foi apelidada de Prostituta da Babilônia. Portanto, essa prostituta que atormenta Franz pode ser também a própria metrópole moderna: Berlim (1). (imagem abaixo, à direita, Alexanderplatz em 1906; acima, Eva assiste a crucificação de Franz, o homem que ela sempre amou. Ela sempre quis ajudá-lo, mas ele impedia)

Antes da Primeira Guerra Mundial, Berlim contava com uma Polícia da Moral vigiando as ruas tentando distinguir quem estava se prostituindo. O resultado foi um intrincado jogo de sinais faciais como sorrisos, balanço da cabeça e piscadelas entre as prostitutas e seus clientes que pudesse garantir a comunicação. Podemos ver um exemplo disso no filme, quando Franz, empoleirado na janela de um apartamento e entregue a bebida depois de abandonar Lina, dá umas piscadelas para uma vizinha casada que é conhecida por trair o marido. Quase imediatamente, ela surge na porta de Franz, que hesita, fazendo com que ela se irrite e vá embora reclamando (parte 4 do filme).

O pintor e gravador expressionista Ernst Kirchner, amigo de Döblin, não compartilhava o otimismo deste pela metrópole moderna. De qualquer forma, essa amizade era resultado do interesse cada vez maior dos artistas em colocar-se a serviço de uma mensagem política e social. Kirchner chegou a ilustrar um dos romances de Döblin em 1913 e pouco depois uma peça dele sobre uma “história de bordel” (2). Muito conhecido por seus quadros que retratam a vida noturna de Berlim, mostra as prostitutas como um elemento humano que mostra claramente o impacto da cidade grande nas vidas das pessoas. Mas ele não elogia, nem deprecia a prostituta, apenas direciona um foco de luz sobre esse elemento que havia se tornado vital na vida da rua da metrópole que se tornava Berlim. (imagem ao lado, Cinco Mulheres na Rua. Óleo sobre tela de Ernst Ludwig Kirchner, 1913. Ao contrário do amigo Alfred Döblin, que a considerava o lugar do Homem, Kirchner questionava o papel positivo da metrópole moderna)

O norueguês Eduard Munch, considerado o primeiro pintor psicológico do século 20, criador de O Grito (1893) (ao lado), abre a trilha para Kirchner. Na série de pinturas Cenas das Ruas de Berlim, Kirchner mostra poderosas expressões psicológicas dessa estranha mistura de alegria e alienação na vida urbana moderna nos primeiros anos do século 20. Não estava nem com medo da metrópole, nem morrendo de amores por ela. Kirchner olhava para ela e suas prostitutas como um estranho olha para o que parece ser o pulsar erótico do coração desse mostro urbano. Como outros artistas, Kirchner entendia a natureza dos relacionamentos sexuais no interior da metrópole como um dos elementos básicos da experiência urbana moderna. Antes, pintava mulheres nuas em cenários naturais exóticos. Agora, na metrópole, elas estão vestidas, mas isso não implica uma perda de liberdade. Não se trata de apontar a desarmonia da cidade grande, mas dizer que a harmonia dos valores primitivos naturais foi inventada na metrópole moderna.

A experimentação sexual – hetero ou homossexual – era moda na Berlim daqueles tempos. Essa metrópole germânica também era conhecida como centro mundial da prostituição homossexual (3). Após 1918, com o término da Primeira Guerra Mundial e a condenação da Alemanha a pagar reparações de guerra aos vencedores, além da crise econômica mundial, não é difícil imaginar o motivo pelo qual todo tipo de comércio sexual proliferou em Berlim até 1933 (ano em que o Nazismo subiu ao poder). Não fica difícil imaginar também as inclinações de Franz Biberkopf durante o filme em relação a Reinhold, a quem parece beijar durante um delírio em que está lutando contra o amigo/inimigo num ringue de boxe. (ao lado, o grito de Franz)

Antes disso, quando examinava o material pornográfico que um jornaleiro lhe havia oferecido para vender para ele, Franz diz que sente pena desses homens, mas Lina chega a duvidar das tendências dele. Em 1933, Hitler faz da prostituta uma fora da lei, sendo mandada para os campos de concentração ostentando uma cruz preta no peito. Elas estão entre as primeiras habitantes de Auschwitz. Hitler reprimiu o homossexualismo com a mesma receita (4), sendo mandadas/os para os campos de concentração ostentando um triângulo rosa (5). Não vamos nos esquecer que o próprio Franz aderiu ao discurso da “lei e da ordem” ao colocar (com alguma relutância) a braçadeira com a suástica nazista no braço enquanto vendia um jornal Nazista.

Foi Lina, a mulher que Franz tirou da prostituição, quem desconfiou dessa suástica e forçou Franz a abandonar esse trabalho. Ela chega a comentar como é difícil a situação da Alemanha naquele momento, além da falta de emprego, temos que prestar muita atenção a quem está nos oferecendo emprego e no que exatamente estamos trabalhando. Num dos delírios de Franz, ele atira em Ida (aquela namorada que ele matou na parte 1, motivo de prisão) pensando que atirava em Reinhold. Na hora do tiro, uma figura atrás dele fala da Prostituta da Babilônia, comenta que “ela bebeu o sangue dos santos que ela dilacerou”. Seja como for, no caso de Franz Biberkopf, a Prostituta da Babilônia perde a batalha. Mas perde para a Morte (representada pela morte dele na cruz e de todas as pessoas de sua vida na explosão atômica no epílogo).

Fascismo Enquanto Desejo Frustrado



"Franz: Sabe de uma coisa Baumann?
Agora sei o que é
a coisa mais
estranhadesse mundo. Você também?
Baumann: As pessoas.
Franz: Isso mesmo"


4º episódio



Quando questionado a respeito da função de filmes como O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978, primeira parte da Trilogia Alemã) Lola (1981) e O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsuch der Veronika Voss, 1981), Fassbinder acaba resumindo muito objetivamente a questão que está por trás de Berlin Alexanderplatz. Inclusive a primeira parte da primeira frase se parece mais com o que nós brasileiros normalmente achamos que só diz respeito a nossa relação com nossa história e que nunca seria o caso de um país como a Alemanha:

“Nós não aprendemos muito sobre a história da Alemanha na Alemanha, então temos que capturar alguma informação básica, e como cineasta eu simplesmente utilizei essa informação para contar uma história. Isso não significa nada mais do que tornar a realidade tangível. Eu vejo muitas coisas hoje novamente que acordam meu medo novamente. A convocação por lei e ordem. Eu quero usar este filme para dar a sociedade de hoje algo suplementar a sua história. Nossa democracia foi decretada para a zona de ocupação Ocidental, nós não lutamos por ela nós mesmos. Velhas maneiras de pensar têm muitas oportunidades vazarem pelas rachaduras, sem uma suástica, é claro, mas com velhos métodos de educação. Eu estou surpreso como o rearmamento veio rapidamente neste país. As tentativas da geração mais jovem de se revoltar foram totalmente patéticas. Eu também quero mostrar como a década de 50 formou as pessoas da década de 60. Como as instituições confrontaram a juventude engajada, que foi empurrada para a anormalidade do terrorismo”. (6)

Como Fassbinder havia feito com seus “filmes sobre mulheres”, O Casamento de Maria Braun, Lili Marlene (Lili Marleen, 1980), entre outros, Berlin Alexanderplatz parte do melodrama privado para ilustrar temas políticos (7). O cineasta queria mostrar especificamente como a frustração nacional do período entre-guerras levou ao Nazismo. Como se dá a conexão entre desejo frustrado e violência no contexto sócio-histórico do final da República de Weimar. (imagem acima, à esquerda, no fundo, os dois anjos que acompanham Franz. Na frente deles, numa luz roxa, o próprio Fassbinder acompanha o sofrimento de Franz sem esboçar nenhuma emoção; imagem ao lado, em seu delírio, Franz reencontra Mieze viva. Ao fundo os anjos)

Entretanto, a maior parte das imagens de Alexanderplatz durante a República de Weimar que Döblin havia descrito aparece no filme apenas durante as aberturas das 14 partes e sob os créditos iniciais. Imagens que evocam o desespero daqueles tempos: desempregados, manifestantes, crianças pedindo dinheiro. Podemos perceber essa situação nos esforços inúteis de Franz para conseguir dinheiro e também em seus apartamentos baratos. (imagem abaixo, Mieze conhece Meck)

Apesar de ser filme o mais caro financiado pela televisão da Alemanha Ocidental na época, Fassbinder não tinha dinheiro para gravações externas e cenários caros. Filmou a maior parte em estúdio fechado, contribuindo para um clima claustrofóbico: “mesmo fora da prisão, as pessoas são prisioneiras” (8). Foram feitas apenas algumas externas. O filme dá mais ênfase do que o livro quando um velho bêbado recruta Franz para vender o jornal nazista Völkische Beobachter (Observador do Popular), mas só depois de testar nosso protagonista para saber se ele é um “alemão verdadeiro”. Franz é obrigado a usar uma braçadeira com a suástica nazista. Na seqüência da cena, surge uma tela com a inscrição: “Deve haver ordem no paraíso”.

“Considerando a antecipação explícita de Fassbinder [em relação à] chegada do regime Nazi em suas adaptações de outros dois romances do final da era de Weimar, Bolwieser [1976] e Despair – Uma Viagem Para a Luz [Despair - Eine Reise ins Licht, 1977], não surpreende que as referências políticas mais diretas no filme sejam suas representações do fascismo do período, [porém] percebido por um olhar do pós-guerra. Esse tratamento transforma as vagas premonições do romance em antecipações explícitas do desastre próximo [que é a chegada do] Terceiro Reich”. (9)

Döblin escreveu o romance entre 1928 e 1929, portanto não podia antecipar o futuro dos nazistas. Fassbinder não reproduz esse distanciamento, mostra o Nazismo do ponto de vista de quem sabe o que aconteceu depois de 1933 – quando os nazistas subiram ao poder. Portanto, o filme transforma as vagas premonições do livro em antecipações explícitas do Terceiro Reich (na parte 2 do filme). Como quando Franz tenta vender o jornal nazista. Um salsicheiro pergunta a ele se o jornal calunia os judeus. Franz responde que não tem nada contra os judeus, mas que é a favor da ordem. O salsicheiro lê algumas calunias e sai desejando boa sorte a Franz, que fica sem graça quando o homem diz que é judeu mas que não tem importância.

Em seguida, no mesmo “buraco” do metrô, se dá o encontro de Franz com um antigo amigo das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Dreske é comunista e está com alguns amigos questionando o fato de Franz estar usando uma braçadeira com a suástica nazista. No livro, esse episódio não passa de algumas piadas sobre o fato. Mas no filme a cena se transforma num amargo confronto entre Franz e Dreske. Franz reencontra Dreske e os amigos no bar naquela noite. Cantam a Internacional, o hino comunista, convidando Franz para cantar também. Franz responde com um poema e uma música sobre camaradas mortos na guerra, então muda para uma sincera interpretação de “A Vigília no Reno”, uma favorita dos nazistas. Um dos amigos de Dreske vira a mesa de Franz, que reage violentamente e diz que eles são sangradores ingênuos que não compreendem o trabalho e a necessidade de ordem na sociedade. Então um relógio contra o qual ele bateu começa a tocar o hino alemão - Alemanha Acima de Tudo (Deutschland Über Alles). (imagem acima, Franz acha que Mieze o abandonou. Eva tenta fazê-lo entender que ela está morta)

“Neste episódio, Fassbinder dramatiza a conexão entre desejo frustrado e violência no contexto sócio-histórico do período final da República de Weimar, sugerindo como o desespero e a frustração da pequena-burguesia alimentaram o fogo do Terceiro Reich. Na maior parte do tempo (seu tratamento violento em relação às mulheres sendo uma exceção), Franz Biberkopf atravessa o filme como humilde, agradável e clemente, apesar de suas frustrações econômicas e emocionais. Vê-se aqui o quanto rapidamente ele pode se transformar num agressor quando encurralado. O tratamento de Fassbinder simpático a Franz nessa cena implica sua compreensão de quanto um homem assim, nessas circunstâncias, poderia ter sido seduzido pelas promessas de Hitler. Da mesma forma que [Fassbinder] apresentou o pai pré-nazi de Hanni em A Encruzilhada das Bestas Humanas [Wildwechsel, 1973]. A cena também sugere os perigos potenciais no desejo da classe média por paz e ordem que, como parecia claro a Fassbinder e muitos outros Alemães Ocidentais na década de 70, poderiam facilmente se transformar em repressão neofascista quando ameaçada” (10).

O Epílogo Surrealista




“Mieze simboliza todos
esses desejos utópicos que
o mundo não permitirá
que al
guém realize"




Todas as metáforas da violência que surgem a partir do desejo frustrado deságuam nas perturbadoras imagens do epílogo de Berlin Alexanderplatz. Baseado no Livro 9 do romance de Döblin, segundo Watson, Fassbinder o chamou de “meu sonho do sonho de Franz Biberkopf” e “da morte de uma criança e o nascimento de um homem útil” (o segundo título surge aos 00h23min: 26s). Desde A Viagem de Niklashauser (Die Niklashauser Fart, 1970), o cineasta não fazia algo tão mergulhado em simbolismo (11). Da seqüência de delírios, vamos selecionar apenas alguns. (imagem acima, Reinhold mata Mieze)

O narrador anuncia a morte de Franz (seria a morte da criança). É uma morte metafórica, ele agora é considerado apto para o interrogatório. Nesse meio tempo, Reinhold é descoberto e acusado pelo assassinato de Mieze. Reinhold confessou sua culpa para seu companheiro de cela, por quem estava apaixonado. Para receber a recompensa, Konrad o entrega a polícia. Este episódio consta do livro de Döblin também. Entretanto, Fassbinder vai além ao tornar explícita a natureza homo-erótica do relacionamento entre Reinhold e Konrad. Esta relação esta apenas implícita no livro. O cineasta faz com que eles se acariciem e se beijem. (imagem ao lado, Franz acocorado como um animal, pede ajuda aos ratos para chegar ao fim do mundo)

Esta situação marca um tema típico em Fassbinder: a exploração nas relações íntimas. Mais especificamente, ao mostrar Konrad entregando Reinhold em função do dinheiro da recompensa de 1000 marcos pelo verdadeiro assassino de Mieze. No livro, Reinhold conta que matou Mieze para um amigo, que vai à polícia com a informação. Durante o julgamento de Reinhold, Franz fala pouco, mas é o suficiente para o amigo/inimigo pegar 10 anos de cadeia. Franz arruma um emprego de assistente de porteiro. Neste ponto, o livro compara a vida de Franz a uma corrida cega por uma rua escura (12). (imagem ao lado, os ratos cavam um buraco e Franz se alegra por ver o que parece ser uma saída direto para o fim do mundo)

O texto de Döblin é a fonte de quase o diálogo e narração do epílogo. Algumas cenas surrealistas são também sugeridas no livro, mas Fassbinder vai muito além de Döblin nos efeitos visuais, musicais e sonoros. As imagens trazem o passado de Franz, os seus amigos, inimigos e amantes, que o atormentam ou o confortam. Com uma câmera girando em torno de Franz, dois anjos fazem comentários irônicos sobre suas imperfeições e masoquismo. Em seguida, Franz reencontra Mieze. Levanta a cabeça ao ouvir o Exército da Salvação, quando olha novamente para Mieze, ela não está mais lá. à procura de Mieze, cava o chão de terra furiosamente como um cachorro. (ao lado, Franz encontra Mieze transando com Reinhold. O fim do mundo?)

Depois de delirar que está sendo torturado por Reinhold, Franz aparece de quatro bebendo leite. Rodeado de ratos, pede que façam um buraco para que possa fugir para a fim do mundo. Franz começa a falar: “O ser humano é um animal feio. O inimigo dos inimigos. A criatura mais abominável que existe na Terra. Não é bom viver no corpo de um homem. Prefiro me encolher sob a terra, correr sobre os campos e comer o que encontrar. O vento sopra e a chuva cai. E o frio vem e vai. Isso é melhor do que viver no corpo de um homem”. Atravessa o buraco e encontra Mieze transando com Reinhold... Ela diz que foi forçada. Junto deles, a figura que falava sobre a Prostituta da Babilônia quando Franz atirou em Reinhold e matou Ida.

Na floresta de Freienwalde, Franz mata Reinhold, seu cadáver se transforma no de Ida e desaparece. Novamente Franz cava a terra para procurá-la. Mas é Cilly, outra de suas amantes, que ele encontra (imagem acima, à esquerda). Ela está num abatedouro cantando uma música sobre a morte, no fim enfia uma faca na barriga. Ainda no abatedouro, Reinhold agita um machado sobre uma pilha de corpos nus (ao lado). Franz e Mieze são manuseados como carcaças de animais. Um grito de mulher ressoa por toda a cena (abaixo). Os dois anjos olham da porta. Além deles, de óculos escuros e chapéu, está o próprio Fassbinder em pessoa, observando o pesadelo de Franz (e tomando parte nele) sem esboçar a mínima emoção.

Reinhold aparece também como Cristo e, perto do final, ele e Franz se preparam para uma luta de boxe. A platéia gira velozmente no fundo com um efeito de turbilhão. Reinhold provoca, até que Franz o puxa e beija. Na seqüência seguinte, a morte do velho Franz acontece entre uma estátua clássica, um casal nu e ovelhas. Sob o olhar de Eva e outros conhecidos, Franz é crucificado. No fundo desta imagem, vemos uma tela gigante de O Jardim das Delícias, do holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). De repente, a pintura se torna cinza como um céu de tempestade, depois surge a imagem de uma explosão atômica. Em seguida, os anjos vão empilhando os corpos como se fazia nos campos de concentração.

Soldados de Hitler aparecem em alguns pontos dos delírios de Franz. O judeu vendedor de salsichas retorna, ele está usando “como orgulho” a braçadeira com a suástica. Também com uma braçadeira Nazista, Franz canta “A Vigília sobre o Reno”. Na seqüência final de Berlin Alexanderplatz, tudo volta ao estilo naturalista, mostrando o testemunho de Franz no julgamento de Reinhold e um encontro com Eva no bar. O filme termina com algumas imagens de Franz como assistente de porteiro numa garagem, bem diferente do final esperançoso de Franz Biberkopf no livro de Döblin. (imagem ao lado, depois de ser insultado por Reinhold, Franz parece beijá-lo. Em seguida cai com um olho sangrando, enquanto Reinhold pergunta quem venceu)

“(...) Em suas páginas finais o romance enfatiza que após a perda de Mieze e seu terrificante encontro com suas lembranças e seu subconsciente no hospital, Franz Biberkopf experimenta um virtual renascimento. Desistindo de sua arrogante luta solitária contra o destino, ele aceita seu lugar como membro da sociedade, finalmente compreendendo a importância de juntar-se às pessoas a sua volta. Mas ele nunca irá correr com a multidão na direção de nenhum tipo de ação de massa. Ele ‘assiste friamente’ as paradas militares que passam por sua porta e promete nunca se juntar a elas. ‘Eu primeiro penso em tudo, e apenas se tudo está ok e me satisfaz, eu tomarei alguma atitude’. O romance então chega a um final confuso. O narrador faz um sumário enigmático: ‘Biberkopf é um trabalhador humilde. Nós sabemos o que sabemos, o preço que pagamos não é baixo’”. (13)

Mas o próprio Döblin admitiu que não ficou satisfeito com o final. Gostaria de ter encontrado uma forma de fazer Franz sair de sua passividade e se tornar um “homem ativo”. Talvez Franz tenha aprendido e abandonado sua guerra individual contra o destino (incluindo suas esperanças frustradas de uma utópica amizade masculina com Reinhold e um amor utópico com Mieze) e procurado solidariedade com seus companheiros. O que não significa que esteja pronto para abraçar uma falsa solidariedade, criada pela força e legitimada pela idéia de destino representada pela Prostituta da Babilônia - que foi afastada em seus pesadelos pela Morte. (imagem ao lado, crucificação de Franz. Ao fundo, O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch)

Por outro lado, vemos que nosso herói é reticente em relação ao coletivo que está surgindo no final da República de Weimar. Um “falso coletivo da guerra” que ameaça o mundo do novo Franz. No epílogo, logo no principio da seqüência em que os anjos juntam os corpos após a crucificação de Franz e a explosão atômica, um deles comenta que a Prostituta da Babilônia perdeu e a Morte triunfou - como no pesadelo de Franz. (imagem ao lado, o fogo que se segue à crucificação purifica Franz. O Jardim das Delícias se foi. Mieze se foi, em breve todos seguiram para outro lugar. No detalhe, sumiu a ovelha que podemos ver atrás dos corpos nus na imagem anterior acima. Mera falha de continuidade ou a ovelha era Franz?)


O final do filme de Fassbinder é mais pessimista que o de Döblin. O cineasta deixa Franz sem dúvidas ou reservas em relação à sociedade de massas. Sem tais reservas, o filme sugere que Franz logo irá se juntar aos nazistas. Talvez Franz Biberkopf tenha sido destruído no processo de se tornar um bom cidadão alemão. O próprio Fassbinder sugeriu que Franz votaria nos nazistas. O final mais pessimista de Fassbinder talvez seja indicação daquilo que foi definido como sua melancolia pós-revolucionária. (imagem ao lado, O Jadim das Delícias deu lugar ao fogo, que deu lugar à explosão atômica. Todos os conhecidos de Franz são varridos. Em seguida os anjos entram e fazem uma pilha com seus corpos, enquanto falam sobre a morte e a guerra)

“(...) Mais especificamente, o final de seu filme pode ser lido como um lamento pela perda do espírito anarquista utópico de Franz e talvez pelo seu próprio. Como Fassbinder colocou, Franz Biberkopf é uma pessoa com uma extraordinária fé na bondade humana, alguém que acredita que as pessoas são naturalmente anarquistas; ele é destruído pelo fato de que ele é ‘uma figura anarquista entre criaturas puramente sociais’. Essa caracterização é em larga medida verdadeira em muitas personificações de Franz Biberkopf em filmes anteriores de Fassbinder, tenham seu nome ou não. Fassbinder certa vez disse que tinha feito Berlin Alexanderplatz para todas as pessoas ‘que são forçadas a fazer muitas coisas que realmente não querem fazer’. Como ‘o verdadeiro amor’ de Hans Epp em O Mercador das Quatro Estações [Händler der vier Jahreszeiten, 1971], nesse filme Mieze simboliza todos esses desejos utópicos que o mundo não permitirá que alguém realize. Portanto, é apropriado que o melancólico final de Berlin Alexanderplatz seja seguido por uma repetição do assassinato de Mieze por Reinhold durante a passagem dos créditos finais do filme”. (14) (*)

Notas:

(*) Leia também Berlin Alexanderplatz (I) e (II)

1. BROWN, Robert. Die Strassenbilder: Ernst Kirchner’s Berlin Street Scenes. Disponível em: http://christies.com/LotFinder/lot_details.aspx?from=salesummary&intObjectID=4807488&sid=0b171258-682b-4537-a5d0-18ba87680735 Acessado em: 28/11/2008.
2. WOLF, Norbert. Ernst Ludwig Kirchner, 1880-1938. À Beira do Abismo do Tempo. Tradução João B. P. Boléo. Köln: Taschen, 2003. P. 43.
3. ROBERTS, Nickie. As Prostitutas na História. Tradução Magda Lopes. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Ventos, 1998. Pp. 319-20. Chamadas de “instrumentos do demônio” por vários tipos de “associações de moralização” alemãs, as prostitutas eram consideradas culpadas pela degenerescência da sociedade. Enquanto isso, muito dos homens que faziam parte dessas associações, operavam uma moral dupla, socialmente eram contra, mas, particularmente, eram fregueses assíduos das prostitutas. Além disso, os próprios governos permitiam que seus soldados tivessem livre acesso às prostitutas como forma de aliviar a pressão entre os soldados e reprimir o homossexualismo. Alguns filmes italianos mostram essa conduta como algo absolutamente corriqueiro na vida dos soldados. As milhares de mulheres jovens pelo Brasil afora, quando decidem se prostituir, e como parecem conhecer instintivamente a moral dupla da maioria dos homens, sabem que o machismo da maioria deles os faz olhar para elas como simples objetos de uso. O que elas fazem é cobrar por esse uso.
4. STEIGMANN-GALL, Richard. O Santo Reich. Concepções Nazistas do Cristianismo, 1919-1933. Tradução Claudia Gerpe Duarte. Rio de Janeiro: Imago, 2004. P. 250. O autor mostra como grupos de mulheres protestantes que apoiavam Hitler aprovavam suas leis de proibição do aborto, contra a pornografia, a prostituição e a homossexualidade. Independentemente de qualquer posicionamento machista, misógino ou homofóbico, pelo que se conhece da problemática social aguda dos tempos imediatamente anteriores à subida ao poder do Partido Nazista, pode-se compreender até certo ponto o clamor público de algumas camadas da população pela necessidade de “lei e ordem”. Brevemente, os judeus seriam incluídos entre os males a serem extirpados da sociedade alemã. É essa tendência da sociedade alemã misturar elementos que nada tem em comum e aderir a propostas genocidas em nome da “lei e da ordem” que levou Fassbinder a sugerir que os alemães gostam de uma ditadura.
5. GUIMARÃES, Luciano. As Cores na Mídia. A Organização da Cor-Informação no Jornalismo. São Paulo: Annablume, 2003. P. 40.
6. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. London/Massachusetts: Cambridge University Press, 1989. P. 81. Com relação à frase final, Fassbinder se refere ao grupo terrorista Baader-Meinhof e o tipo de reação fascista da sociedade alemã em relação a ele. O grupo, segundo seus porta-vozes, se insurgia contra o que considerava uma retomada do Nazismo na Alemanha. Desejava se contrapor ao que muitos jovens da geração do pós-guerra consideravam um papel passivo de seus pais no passado, o que havia permitido a ascensão do Nazismo naquele país.
7. KAPLAN, E. Ann. A Mulher e o Cinema. Os Dois Lados da Câmera. Tradução Helen Márcia Potter Pessoa. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
Pp. 150-3. A autora faz um comentário muito pertinente em relação à situação de americanização da Alemanha (Coca-Cola, hambúrguer, cinema, música e roupas) após a Segunda Guerra, aparentemente em função da perda do sentido positivo quanto à “ser alemão” naqueles dias. A própria tendência ao melodrama hollywoodiano claramente perceptível em Fassbinder levantou suspeitas entre os críticos quanto à criatividade do cineasta. Mas o Cinema Novo Alemão nada mais teria feito do que traduzir em termos europeus algo que também se podia encontrar nos personagens de certos cineastas norte-americanos da década de 60: ansiedade, alienação e preocupação com o outsider. Entretanto, as razões políticas dos cineastas alemães do Cinema Novo são diferentes, devido às particularidades da história alemã do pós-guerra. O Nazismo e o terrorismo durante a década de 70 eram assuntos recorrentes: Despair, Uma Viagem Para a Luz (nazismo), A Terceira Geração (Die Dritte Generation, 1979) (terrorismo), e uma parte da criação coletiva Alemanha no Outono (Deutschland in Herbst, 1978) (terrorismo e Nazismo), estão entre as contribuições de Fassbinder. O confronto com o Nazismo se fazia necessário, o terrorismo extremista como resposta a uma re-nazificação em bases novas da Alemanha criou um problema para cineastas alemães de esquerda, ou descontentes com as instituições, ou que apoiavam algumas idéias dos terroristas se não suas estratégias políticas.
8. WATSON, Wallace, Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. Pp. 231 e 253n31.
9. Idem, p. 241.
10. Idem, pp. 241-2. No final da citação o autor se refere à opinião de Fassbinder quanto a reação da população em relação às ações do grupo terrorista Baader-Meinhof. Na repressão, a população aprovava o endurecimento do Estado: perda de liberdades civis e assassinato. Neste último caso, especificamente ao desinteresse público pelo fato de que os terroristas, quando já presos, foram mortos na prisão. Fasssbinder afirmou que desejava mostrar como o povo alemão é predisposto ao fascismo, e cita como exemplo a demanda por “paz, ordem e disciplina” no país durante o episódio do grupo Baader-Meinhof.
11. WATSON, Wallace, Steadman. OP. Cit., pp. 242 e 253n35.
12. Idem, p. 243. A ênfase é minha.
13. Ibidem, p. 246.
14. Ibidem, p. 247.
 

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