Todos nos bastidores
sabiam que Séverine era apenas
uma personagem de A Bela da Tarde.
Entretanto, quando o roteiro pediu que
fosse jogado excremento nela, ninguém
quis fazê-lo, e Buñuel teve que assumir
a tarefa.Todos sabiam que se tratava
de iogurte de chocolate, mas a atriz
vestida com aquela personagem
era Catherine Deneuve (1)
Catherine Deneuve
Em O Último Metrô, Marion é uma bela e corajosa diretora de teatro. Certo dia é abordada pelo galanteador Bernand Granger, que flerta com ela utilizando sua cantada padrão. Quando ele diz, “existem duas mulheres em você”, Granger acaba traduzindo não só Marion, mas a atriz que deu vida a ela. Catherine Deneuve sempre carregou essa aura da dualidade que a tornou virtualmente irreconhecível. Vilã/vítima, pura/impura, são alguns dos personagens que coexistem na carreira da atriz (2). François Truffaut, o diretor do filme, teve um relacionamento com Deneuve. Talvez seja uma coincidência, mas quando tudo terminou, o desgaste emocional dele foi tão grande que teve de ser internado (3).
Nascida Catherine Fabienne Dorléac, irmã da também atriz Françoise Dorléac, ela é a única atriz francesa a ter uma projeção internacional tão grande quanto Brigitte Bardot. Entretanto, Deneuve é mais polivalente, ela tem mais rostos para oferecer ao público. No início, ela encarnou a virgem inocente e reservada, como em Vício e Virtude (Le Vice et la Virtu, Roger Vadim, 1963), O Guarda-Chuvas de Cherbourg (Les Parapluies de Cherbourg, direção Jacques Demy, 1964), Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, novamente direção de Jacques Demy, 1966), Pele de Asno (Peau d’Âne, direção Demy, 1970) e La Vie de Chateau (direção Jean-Paul Rappenau, 1965) (4).
Em Fome de Viver (The Hunger, direção Tony Scott, 1983) ela é uma vampira num filme de terror inglês. Deneuve atuou ainda em Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000), do diretor dinamarquês Lars von Trier, e com o francês François Ozon em 8 Mulheres (8 Femmes, 2002). No primeiro, sua personagem é uma simples funcionária de linha de montagem no chão de uma fábrica. No segundo, ela é Gaby, numa casa com oito mulheres e um homem – que morre. Os dois filmes são musicais, mas não no estilo dos musicais de Hollywood.
Mas Deneuve rapidamente mostra outras faces em produções de cineastas como o espanhol Luis Buñuel e Roman Polanski. Com Buñuel ela foi Séverine em A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967) e Tristana em Tristana, Uma Paixão Mórbida (Tristana, 1970). Com Polanski, ela encarnou Carol em Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965). Sob a direção de François Truffaut, e contracenando com Jean-Paul Belmondo, em A Sereia do Mississipi (La Sirène du Mississippi, 1969), Deneuve é uma manipuladora de homens – deixando o personagem de Belmondo numa situação talvez parecida com a do próprio Truffaut na vida real.
No filme de Polanski, Carol desenvolve uma repulsa em relação aos homens que vai se radicalizando até a agonia extrema. Novamente com François Truffaut em O Último Metrô (Le Dernier Metro, 1980), Deneuve é Marion, a dedicada esposa de um dono de teatro judeu durante a Segunda Guerra Mundial que tem que se esconder para escapar da perseguição dos nazistas de Hitler e do anti-semitismo francês.
Séverine é a esposa entediada e fria por fora e sexualmente quente por dentro que resolve dar vazão a seus instintos trabalhando num bordel durante as tardes. Charles Tesson chama atenção para o fato de que a maior parte das heroínas de Buñuel é enfraquecida por uma suspeita de febre hitchcockiana: o sentimento do pecado e a angústia da punição. Séverine é a mais evidente representante dessa longa linha neurótica, traço do personagem reforçado pelo caráter hitchcockiano da escolha de Catherine Deneuve para o papel (5).
Tristana é uma jovem órfã que vive com seu velho tio. Ele seduz a moça. Tristana vai do amor ao ódio quando percebe que, apesar dos discursos dele sobre liberdade, ela agora vive como sua prisioneira. Foge com um namorado. Tempos depois, retorna com um tumor na perna. O velho a aceita e permite que ela veja o namorado, o qual ela manda embora quando amputa a perna. Seguindo o conselho de um sacerdote, Tristana se casa com o tio, que a mantém prisioneira como antes. Certo dia ele pede ajuda, ela finge telefonar para o médico, abre a janela para que o vento frio entre e deixa que ele morra. Deneuve serve de emissária para mensagem de Buñuel: a Espanha produziu uma sociedade falsa, sexualmente disfuncional e escrava de imagens arcaicas (6).
Em Indochina (Indochine, direção Régis Wargnier, 1992), ela é Eliane, rica e poderosa dona de uma fazenda produtora de borracha na Indochina francesa antes da Segunda Guerra Mundial. Um papel bem próprio para alguém como Deneuve, que na vida real assumiu ser feminista e assinou um manifesto em 1971 afirmando ter abortado, numa época em que isso ainda era um assunto polêmico na França. Recusou-se também a casar com Roger Vadim e Marcello Mastroianni, os pais de seus dois filhos, assumindo uma vida de mãe solteira, o que também era escandaloso para a época. Além disso, sempre defendeu ferozmente sua privacidade contra uma imprensa curiosa demais (7).
Em 8 Mulheres, o diretor François Ozon faz a personagem de Catherine Deneuve repetir a mesma frase que François Truffaut havia posto na boca de outros dois personagens dela, em A Serei do Mississipi e O Último Metrô: “é uma alegria, é um sofrimento”.
Leia também:
Contestadores Integrados Franceses (Alain Delon), (Jean-Paul Belmondo)
Notas:
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Notas:
1. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.) Luis Buñuel. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2005. P. 152.
2. SAN FILIPPO, Maria. Two Women: The Dialectical Sexual Persona of Catherine Deneuve. Senses of Cinema, 2002. Disponível em: Acessado em: 10/08/2010.
3. MELVILLE, David. Duet for Three: Les Deux Anglaises et le Continent. Senses of Cinema, s/d. Disponível em: Acessado em: 10/08/2010.
4. DEHÉE, Yannick. Mythologies Politiques du Cinéma Français. Des Anées 1960 Aux Anées 2000. Paris: Puf, 2000. P.134.
5. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinéma, 1995. P. 186. Em A Bela da Tarde, para explicar a suposta frigidez de Séverine, Buñuel procede como Hitchcock com a cleptomaníaca em Marnie (1964): uma cena primitiva traumatizante (p. 234).
6. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.) Luis Buñuel… Op. Cit., p. 161 e 167.
7. DEHÉE, Yannick. Op. Cit., p. 135.