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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de out. de 2008

Buñuel e as Formigas

Os Insetos e o Desejo

Para o cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983), não existia metáfora mais irônica para nossos conceitos de vontade e liberdade do que o comportamento programado, repetitivo e previsível dos insetos. Eles estão ativos o tempo todo, mas não há desejo por trás dessa ação. Já o ser humano, oscila entre uma ação sem desejo e um desejo sem ação. A educação, a imposição pelas armas, leis e os condicionamentos culturais, impõem proibições e obrigatoriedades cuja única função parece ser a neutralização do livre arbítrio, a neutralização da vontade do indivíduo. Este é o ideal de todas as sociedades e grupos repressivos: a certeza absoluta sobre o que as pessoas vão ou não vão fazer (1).

Portanto é uma ironia que nós, os seres que possuem o livre arbítrio, tenhamos tido e continuemos a fabricar por toda nossa história uma sucessão interminável de regimes políticos autoritários. Neste tipo de sociedade, todos os comportamentos têm de ser previstos pelo poder central. Quanto mais controle, mais capacidade de organizar, manipular. Mesmo aparentemente inocentes festas anuais, feriados ou datas comemorativas escondem uma possibilidade de controle das massas – já que aquele grupo que estiver no controle saberá exatamente onde você está e o que estará fazendo, ou mesmo pensando.

Na programação da televisão, clichês são repetidos milhares de vezes. A indústria cultural, a publicidade, todos desejam nos condicionar (controlar) para que acreditemos que desejamos consumir este ou aquele produto ou idéia. Buñuel detestava a publicidade: “(...) a informação-espetáculo é uma vergonha. (...) Detesto a publicidade e faço todo o possível para evitá-la. A sociedade em que vivemos é totalmente publicitária” (2).

O Anjo Entomologista

Em O Anjo Exterminador (Él Ángel Exterminador, 1962), Buñuel mostra um grupo de burgueses que vai a um jantar e não consegue deixar a sala. Durante semanas ninguém consegue sair e ninguém de fora consegue entrar. Uma curiosidade é que os empregados que serviam os burgueses saíram ou sumiram. O único serviçal que fica é o mordomo, que equivocadamente se coloca como pertencendo a um status mais elevado, agora ele se torna aquele que se encontra no mais baixo ponto da escala – portanto ainda há uma visão de contradição de classe (3). Parece que o problema é só com a classe odiada por Buñuel. (ao lado e abaixo, imagem de O Anjo Exterminador. Como ovelhas, os burgueses do filme não conseguem agir por conta própria para sair de um impasse em suas vidas. Precisam da voz de comando de um líder, seja ele quem for)


Por outro lado, Charles Tesson mostra que Buñuel não deixa de incluir em “seus burgueses” limitações que dizem respeito a ele mesmo. Em certo momento do filme, Letícia percebe que tanto os convidados quanto os móveis se encontram naquele instante exatamente onde estavam na noite do jantar. Como peças em um tabuleiro de xadrez, eles estiveram girando. Ela pede para que todos tentem se lembrar em que posição estavam e do que estavam falando. Blanca, que tocava ao piano, recomeça. Quando termina, pedem outra música, mas Letícia se adianta, diz que está muito tarde e que devem todos ir embora. “Sigam-me todos”, comanda Letícia. O grupo finalmente deixa a sala. Os burgueses são recebidos fora da casa e temos um corte para uma missa onde todos, agora limpos e arrumados, comparecem. A câmera vai recuando. Corta para os sinos. Temos então a polícia atirando em manifestantes. Em seguida, um bando de carneiros entra na igreja.

Como Deixar de Ser Uma Formiga?

Tesson chama atenção para o fato de que esse bando de burgueses que regrediram ao último estágio só consegue sair dessa regressão coletiva sob o comando de um chefe. Um líder à imagem de Moisés guiando o povo para fora do Egito. É suficiente que alguém fala em nome deles, dos comandados. O grupo só encontrará a liberdade na medida em que for completamente submisso ao chefe. Desta forma, o próprio Buñuel coloca sob uma visão pessimista seu papel de diretor de cinema, de alguém que dá as ordens. (alimento para os prisioneiros na [da?] igreja ou metáfora daqueles que irão alimentar, as ovelhas seguem seu caminho na direção do templo-prisão. Nada prendia os burgueses na mansão, assim como nada prende à igreja. Porque não são capazes ordenar a si mesmas que vão viver?)

Se aquelas pessoas não saíram antes da sala, não seria por falta de poder ou de saber, mas porque não haviam encontrado ninguém a quem confiar sua vontade. Uma vez que essa pessoa se manifeste, eles a obedecerão, à imagem das ovelhas que invade a igreja no final do filme. Tudo recomeça, quando as pessoas começam a não conseguir deixar a igreja. Para a liberdade de movimentos no plano coletivo, a margem de manobra se mantém bastante limitada: sem chefe, sem saúde. Sem diretor de cinema, sem filme. Num desabafo do próprio Buñuel:

“Os espaços abertos me dão medo. Eu não sei o que fazer com isso. Imediatamente eu encontro uma forma de encarcerar meus personagens. Os grandes horizontes, o mar, o deserto, me deixam louco. Eu não sei o que fazer. É preciso que eu me arranje para encarcerar meus personagens em um quarto, uma villa, dentro de um local onde eu possa vigiá-los, tê-los nas mãos”. (4)

Esta burguesia é a mesma que produz os mecanismos de controle social que procuram neutralizar o livre arbítrio: a imprensa, a publicidade, as leis, as Constituições, a concessão de verbas, os códigos de moral e conduta. Aos poucos, o grupo vai abandonando as convenções sociais que sua própria classe criou e impôs à sociedade. Buñuel detestava a burguesia, mas também não era de esquerda. Ele era um surrealista-anarquista. Segundo Ado Kyrou, Buñuel é um realista, porque ele não faz outra coisa que registrar seu mundo real, o que faz dele um perfeito surrealista. Em O Anjo Exterminador, nos encontramos na presença de um filme muito rigoroso que narra um acontecimento real através de uma lógica de sonho (5).

Braulio Tavares explica que O Anjo Exterminador fala de um condicionamento mental. A burguesia, uma classe social que vive das aparências, seria a melhor cobaia. “Buñuel isola um grupo desses indivíduos, observa enquanto eles se destroem, e o faz como se se debruçasse sobre um formigueiro, interferindo nele com torrões de açúcar, pequenos jatos de água, fósforos acesos” (6). Sua arma contra a hipocrisia, ganância e hedonismo predatório da burguesia e tudo que ela representa é o surrealismo: a imaginação, o acaso, o absurdo, o fantástico, o humor, o escândalo, o sacrilégio, os atos gratuitos, o mistério, o erotismo. Mas afinal, como deixar de ser um inseto?

“(...) Cultivando o fantástico, o absurdo, o paradoxal, o gratuito, o homem surrealista deixaria de ser um inseto, deixaria de se arrastar sobre a terra cumprindo rituais sem sentido, trabalhando quando mandavam que trabalhasse, casando quando mandavam que casasse, procriando, consumindo e divertindo-se em ocasiões predeterminadas, e dando aos manipuladores dos controles a certeza de sua previsibilidade”. (7)

Notas:

1. TAVARES, Braulio. O Anjo Exterminador. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. Pp. 83-5.
2. BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro In TAVARES, Braulio Op. Cit., p. 86.
3. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995. P. 130.
4. Idem, p. 201.
5. KYROU, Ado. Le Surrealisme au Cinema. Paris: Éditions Ramsay, 2005. P. 277.
6. TAVARES, Braulio Op. Cit, p. 83.
7. Idem, pp. 95-6.

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