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Roberto Acioli de Oliveira

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29 de jun. de 2008

Herzog, Fassbinder e Seus Heróis Desesperados

 Entre Deuses e Subumanos

Pelo menos em seus filmes mais citados, como Sinais de Vida (Lebenszeichen, 1968), Também os Anões Começaram Pequenos (Auch Zwerge haben klein angefangen, 1970), Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972), O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle, 1974), Coração de Cristal (Herz aus Glas, 1976), Stroszek (1977), Woyzeck (1979) Nosferatu, o Vampiro da Noite (Nosferatu, Phantom der Nacht, 1979) e Fitzcarraldo (1982), os heróis de Werner Herzog podem mais facilmente ser vistos formando um paradigma internamente coerente.

Eles geralmente ficam pelas fronteiras procurando definir o que é humano a partir de uma dialética entre a humanidade destrutiva e o indivíduo destruído internamente. Poderiam ser divididos em dois grupos simetricamente relacionados. Os trapaceiros (mas que sempre acabam por inviabilizar seus próprios objetivos) (Sinais de Vida, Aguirre. A Cólera dos Deuses, Nosferatu, O Vampiro da Noite, Fitzcarraldo) e os perdedores (Também os Anões Começaram Pequenos, O Enigma de Kaspar Hauser, Stroszek, Woyzeck) (1). (imagem acima, à esquerda, Martha)


Vítimas ou super-homens, os protagonistas de Herzog estão sempre numa posição marginal em relação aos seres comuns. Com poucas exceções, a dimensão existencial de seus heróis é mais importante para eles do que os temas sociais contra os quais se batem. Todos eles, por outro lado, são solitários, totalmente individualistas. Não apenas se distanciam do mundo diário comum, onde as pessoas comuns organizam suas vidas, mas vivem num vazio justamente por conta da investigação dos limites do que significa ser humano (2). (ao lado, O Enigma de Kaspar Hauser; acima, à direita, Aguirre, A Cólera dos Deuses; abaixo, à direita, Coração de Cristal, à esquerda, Nosferatu, o Vampiro da Noite)


Entre o homem como Deus ou como Besta, os filmes de Herzog oscilam na perpetua busca por uma verdade existencial e metafísica. Entretanto, se consideramos os filmes citados como um todo, esta divisão entre super-homem e subumano é apenas aparente. Stroszek é o nome de um super-homem em Sinais de Vida e o personagem de outro filme com seu nome como título. Klaus Kinski, o ator que melhor encarnou os super-homens de Herzog (Aguirre, Fitzcarraldo), também atua como um subumano em Woyzeck. Nosferatu é ao mesmo tempo superior e subumano, os anões também. O que une os dois tipos de protagonistas é que eles são fracassados.


A unidade entre eles está no fato de que são rebeldes solitários, incapazes de alguma solidariedade, mas também incompetentes para alcançar o sucesso. É sua insistência no fracasso que redime grande ambição e excesso de confiança. O próprio Herzog admite ressonâncias mitológicas em seu trabalho: esforço heróico e empenho mesmo numa situação fútil e risível. Entre Hércules (que faz o trabalho sujo para outras pessoas) e Prometeu (rouba o fogo dos deuses, sendo punido por entregá-lo à humanidade), os heróis de Herzog podem ser facilmente relacionados aos mitos básicos ocidentais.


Os heróis dos filmes de Herzog podem também ter sido criados como um reflexo da vida na Alemanha das décadas de 60 e 70 do século passado. Nestes vinte anos houve intenso debate no país sobre a possibilidade de mudança e revolução na Alemanha Ocidental (como se chamava o país antes da queda do muro de Berlin) e nas sociedades industrializadas. Uma interpretação sugerindo que tais filmes pertencem à arena da política só seria possível quando sabemos como era típica no cinema alemão a alternativa entre revolta E auto-exposição, ou revolta COMO auto-exposição. Isso não é único nem ao trabalho de Herzog e muito menos a sua personalidade (3).

Herzog e Fassbinder 

Em Stroszek, sadismo e masoquismo colocam Herzog bem próximo de Fassbinder. Entretanto, os heróis em Rainer Werner Fassbinder não são fáceis de se tipificar como em Herzog. Não apenas porque os elementos autobiográficos são mais literais, mas também por conta de sua vasta obra (mais de 40 filmes em 15 anos). Teríamos que distinguir entre diferentes tipos de heróis, sem esquecer que muitos deles são heroínas (que não existem em Herzog). (ao lado, Stroszek; acima, Também os Anões Começaram Pequenos; abaixo, O Mercador das Quatro Estações)



Os primeiros filmes de Fassbinder são menos sobre legitimidade cultural e mais preocupados com a identidade sexual e de classe. O cineasta conclui que é ingênuo relacionar a opressão dentro da família e a opressão social: as crises identidade sexual e social não convergem. A solução de Fassbinder se divide em dois pontos. Primeiro, suas personagens femininas tem papéis fortes. Sua incapacidade em estabelecer uma identidade estável através da revolta não é apenas motivada pela programação de suas necessidades e desejos pela sociedade patriarcal, mas apontariam para uma falha na identidade edipiana. Em segundo lugar na estratégia de Fassbinder vem a necessidade de substituir o modelo opressor/oprimido pela Duplo Vínculo (double-bind) sadomasoquista (4). (abaixo, à esquerda, As Lágrimas Amargas de Petra von Kant; à direita, O Casamento de Maria Braun)


Nos filmes do período central de Fassbinder, de O Mercador das Quatro Estações (Der Händler der vier Jahreszeiten, 1971) até Martha (1973), o sadomasoquismo é claramente a estrutura básica de interação entre os personagens. Exploração ainda é o motivo central, não importando se a relação é hetero ou homossexual. É a partir do interior da exploração que muitos heróis procuram salvação. A submissão, mais do que a rebelião, é o motivo principal do desejo de seus personagens – mesmo naqueles filmes onde exista uma dimensão mais diretamente social, econômica ou racial. Ainda que o mecanismo sadomasoquista possa se originar na família e ser reforçado pelas relações de poder na sociedade, ele só poderia ser vivido a partir do interior do ciclo de crueldades (5).


Quase todos os filmes do período central, e muitos dos períodos posteriores, terminam em suicídio. Um desejo persistente de autodestruição os atravessa. Isso estaria em contraste total com a autocriação prometeica tão evidente nos filmes de Herzog. Em Fassbinder, as famílias sempre são incompletas e tortas. Muitas mães e esposas, mas nunca um pai ou figura paterna. O que se vê abundantemente são constelações dominadas por filhas, filhos e amantes, como em Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972) , Alemanha no Outono (Deutschland im Herbst, 1978), O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978) e O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1981). A identidade é, em Fassbinder, normalmente o fim da linha de uma trajetória negativa no sentido de aceitar a ausência, mais do que apropriar-se, de objetos-fetiche de poder (6).

aviso: texto revisado em abril de 2019

Leia também:

Berlin Alexanderplatz (I), (II) e (final)

Notas:

1. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. P. 218.
2. Idem, p. 220.
3. Ibidem, p. 222.
4. Ibidem, pp. 227-8.
5. Ibidem, p. 228.
6. Ibidem. 


27 de jun. de 2008

As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (IV)




Auto-Biografia, Melodrama e Autoritarismo

Você consegue pensar num cinema mais autobiográfico que o do sueco Ingmar Bergman ou do italiano Federico Fellini? Pois os filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder são um capítulo à parte no assunto.

Em sua busca para criar filmes que chamem platéia, Fassbinder se afasta da lógica do filme de ação (estória forte e cena de suspense). Ele se concentra nos protagonistas da trama, como se eles fossem espectadores de suas próprias vidas. Desenvolve-se a partir daí uma singularização dos atores e atrizes enquanto personificação de uma função no enredo (1).

Fassbinder parte de sua descoberta dos melodramas do diretor americano Douglas Sirk, na década de 50 do século 20. Nos melodramas de Fassbinder, os heróis são vítimas sem o saber. São personagens representando gente comum e até banal, do tipo que não tem a mínima capacidade de autocrítica para perceber uma eventual identificação masoquista com os próprios opressores. Ainda assim, Fassbinder não direciona esse masoquismo para uma perspectiva na qual o espectador possa se projetar – que seria o caso daquele tipo de filme onde, por exemplo, o homem masoquista não se liberta da dançarina de cabaré dominadora (O Anjo Azul, de 1929, que levou Marlene Dietrich ao estrelato). (ao lado, Lola, 1981)


Em seus filmes, Fassbinder também sugere que os horrores do Terceiro Reich não constituem aberração casual, expressam a xenofobia e o autoritarismo presentes no caráter do povo Alemão (ao lado, cena de Lili Marlene, 1980). O qual também poderia ser captado no materialismo, intolerância e tendências reacionárias presentes no pós-guerra do propalado “milagre econômico” (2). Entretanto, Fassbinder questiona a hipótese de que podemos identificar a opressão social e a opressão na família. Não se trata de processos paralelos. Tornar a figura paterna um mero representante do capitalismo no interior do lar equivaleria a tornar-se um rebelde à imagem do opressor. Fassbinder opera duas inversões no problema da autoridade e identidade, assim como na questão do papel do herói.

Em primeiro lugar, os papéis de personagens femininos são frequentemente rebeldes e fortes. A incapacidade dessas personagens em alcançar uma identidade estável através da revolta não é apenas motivada pela programação das necessidades e desejos que a mulher recebe na sociedade patriarcal, mas apontariam para uma falha na identificação edipiana. Em segundo lugar, Fassbinder substitui o modelo opressor/oprimido pela dupla sujeição (double-bind) sadomasoquista (3).

Sadomasoquismo, Família e Liberdade

As influências do melodrama de Douglas Sirk obscurecem uma estrutura sadomasoquista evidente entre os personagens de filmes do como Martha (1973) (ao lado) e O Mercador das Quatro Estações (Händler der vier Jahreszeiten, 1971) (4). Seja qual for o tipo de relacionamento, heterossexual ou homossexual, a exploração é o motivo central. É dentro dessa exploração que o herói busca salvação. A submissão, mais do que a rebelião, torna-se o elemento central do desejo de seus personagens. Tais mecanismos, ainda que tenham origem na família e sejam reforçados pelas relações de poder na sociedade, apenas podem ser vividos do interior dos ciclos viciosos. Masoquismo, ao ponto do auto-abandono, torna-se o gesto de liberdade que sozinho restaura a identidade.

Em quase todos os filmes do período central da produção de Fassbinder, assim como em muitos dos posteriores, persiste uma tendência de autodestruição: tudo acaba em suicídio. As famílias também são sempre incompletas ou tortas. Existem mães e esposas castradoras e severas (muitos desses papeis são interpretados pela própria mãe de Fassbinder), e raramente temos pais ou figuras paternas.

O que se vê são constelações dominadas por irmãs, irmãos e amantes em filmes como As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (Die Bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972; originalmente uma peça teatral, que teve seu texto traduzido para o português e fez sucesso no Brasil), seu Alemanha no Outono (Deutschland im Herbst, script e direção compartilhados, 1978), O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978) e O Desespero de Veronika Voss (Veronika Voss, 1981).

Questionando a apropriação dos fetiches-objetos de poder, a identidade nos filmes de Fassbinder é geralmente o ponto final de uma trajetória no sentido de aceitar a sua falta deles. Ao contrário, quando um personagem deles se apropria, como em Lola (1981) ou O Casamento de Maria Braun (imagem abaixo), os filmes são estruturados em torno de momentos onde o poder fálico é mostrado como um fetiche, um espetáculo que em Fassbinder é sempre tragicômico, irônico ou grotesco - e, nos últimos filmes, sempre ligado à história da antiga Alemanha Ocidental (5).

Notas:

Leia também:

Berlin Alexanderplatz (I), (II), (final)

As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (I), (II) e (III)

Este artigo foi publicado no catálogo da Mostra Filmes Libertam a Cabeça

1. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema. London: Macmillan, 1989. Pp. 137.
2. WATSON, Wallace, Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. P. 2.
3. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., pp. 227-8.
4. Idem, p. 228.
5. Ibidem.

26 de jun. de 2008

As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (III)





Oportunismo e Heroísmo

No período final de sua carreira, Fassbinder criou cinco obras que, a partir de cinco mulheres, permitem que se tenha um quadro da história da Alemanha no pré-guerra (República de Weimar), durante a Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra. Bolwieser (1976-7) cobre o período final da República de Weimar. Lili Marlene (Lili Marleen, 1980) é ambientado durante a guerra. O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978), começando em 1943, durante a guerra, e pulando para o imediato pós-guerra, terminando em 4 de julho de 1954. O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsuch der Veronika Voss, 1981), cobrindo algumas semanas em 1955, terminando no Domingo de Páscoa. E Lola (1981), ambientado entre 1957-8 (1). Os três últimos filmes constituem a Trilogia da República Federal da Alemanha.

Nestes filmes, mesmo a mulher mais dogmática ou positiva se dobra aos poderes da sociedade patriarcal. Alguns sugeriram que seria um gesto de desesperança por parte de Fassbinder. Um gesto nascido de uma “melancolia da esquerda” em relação à direção que tomava a política na Alemanha Ocidental do final da década de 70 e início dos anos 80 do século passado. Mais especificamente, em relação tanto a problemática da desesperança dos revolucionários idealistas que viraram terroristas (o grupo Baader Meinhof), quanto à reação autoritária do governo em relação à questão (2).

Entre Casamentos e Amantes

Bolwieser é ambientado numa pequena cidade da Bavária em 1920, onde um chefe de estação ferroviária vive com uma mulher que o domina e trai com dois homens (imagem ao lado). Para além do melodrama, o filme constitui um retrato realista da vida alemã pouco antes do começo do nazismo. Xaver Bolwieser, o marido, é a variação de um tipo freqüente em Fassbinder: traído, maltratado, e finalmente abatido. Em seu uniforme de chefe, ele impõe respeito aos subordinados. Porém, em relação a sua esposa, ele é um dependente masoquista que não pode satisfazê-la sexualmente. Hanni, a esposa, acaba fazendo com que Xaver testemunhe num tribunal a favor de um de seus amantes.


Depois de ser abandonado em favor de outro, o primeiro amante acusa Xaver de perjúrio. O resultado é que Xaver vai preso e acaba concordando com o pedido de divórcio de Hanni. Seja como for, Hanni, constitui uma das personagens femininas mais independentes dos filmes de Fassbinder. Por sua atitude senhorial em relação a seus subordinados na estação ferroviária, Xaver representaria o oficial subalterno autoritário que logo encontraria um lugar na burocracia das forças armadas nazistas.

Amores Proibidos

Em Lili Marlene temos uma cantora (Willie) de cabaré que vê sua carreira decolar rapidamente durante a vigência do Estado Nazista na Alemanha. Baseado na autobiografia da cantora alemã Lale Anderson, que ficou famosa durante a Segunda Guerra com sua música (chamada Lili Marlene) sobre um soldado que deseja reencontrar sua namorada, o filme mostra como Willie parece não perceber os desdobramentos de suas escolhas naquele momento histórico conturbado (ao lado). O filme também mostra seu dilema profissional. O problema é que sua música virou uma espécie de hino nos campos de batalha durante a Segunda Guerra Mundial. Embora sua canção fosse admirada por vários exércitos inimigos entre si, os nazistas fizeram dela uma espécie de namorada do soldado alemão.

Sua vida se complica quando ela se apaixona por um maestro suíço, que, além de judeu, era um espião trabalhando para tirar outros judeus da Alemanha. O pai do maestro esforça-se em vão para separá-los, julgando que essa ligação pode colocar a vida do filho em perigo. Os alemães começam a desconfiar dela também. No final, desmascarada, ela se vê forçada a continuar apoiando publicamente o regime nazista para não ser morta. Como chegou a dizer, ela era apenas uma cantora com uma música. O que você faria se sua única chance profissional depende-se de fazer amizade com alguns crápulas, ou os crápulas de um governo corrupto ou de um burocrata durante uma ditadura?

Entre a Falta de Opção e o Oportunismo

O Casamento de Maria Braun nos apresenta a situação de uma das milhões de viúvas de soldados alemães depois da guerra (ao lado). Sem opção de sobrevivência numa Alemanha destruída, a mulher se prostitui num bar que serve os soldados dos exércitos vitoriosos. Um soldado americano negro se interessa por ela, que, ou não pode recusar, ou vê nele uma chance de resolver seus problemas de sobrevivência. Casam-se. De repente, ela descobre da pior forma possível que seu marido ainda está vivo: ele mata o americano ao encontrá-lo com sua esposa. Vai preso. Enquanto isso, a mulher faz progressos profissionais e encontra outro homem que se apaixona por ela. Além de maltratá-lo muito, ela deixa claro que é casada. Enquanto isso, seu marido sai da prisão e desaparece.


Na cena final, depois de ouvir que o homem que ela maltratava havia morrido e deixado tudo para ela, seu marido explica porque havia sumido. Enquanto ele estava na prisão, foi procurado pelo masoquista que amava sua mulher. Fizeram um acordo: ele pagaria para que o marido de Maria desaparecesse, só podendo voltar após a morte do masoquista. Maria Braun, que durante todo o tempo acreditava ter o controle de sua vida no mundo dos homens, subitamente percebe que foi negociada como uma mercadoria. Ela acende um cigarro no fogão, mas não fecha o botão do gás. Em poucos minutos o gás explode, enquanto ouvimos no rádio a partida da copa do mundo que daria a vitória a Alemanha em 1954. Fassbinder não nos dá uma pista para sabermos se foi acidente ou suicídio.

Um Mundo sem Futuro ou Um Futuro sem Mundo

O Desespero de Veronika Voss mostra, numa surreal atmosfera em preto e branco, a decadência de uma famosa atriz (ao lado). O filme é baseado na vida de Sybille Schmitz, uma estrela de cinema durante o nazismo, que vê sua carreira desmoronar depois da guerra. Schmitz é colocada sob os cuidados de uma neurologista que deliberadamente a viciou em morfina, além de controlar sua vida através de soníferos depois que a atriz passou seus bens para a médica. Certamente, este é um comentário de Fassbinder sobre a corrupção oficial na República Federal da Alemanha (3) (o nome do país antes da queda do muro de Berlin em 1989), levando-se em consideração a relação entre a neurologista e um funcionário da saúde pública que coopera com ela.

A dependência de Veronika em relação à morfina funciona como uma metáfora em relação ao que Teodor Adorno chamou de “a sociedade administrada”: os representantes da sociedade (a doutora, a enfermeira e o funcionário da saúde publica) vitimam exatamente as pessoas que eles deveriam proteger (4).

Robert, um repórter de futebol que é convocado para entrevistá-la, acaba tomando suas dores. Tenta livrá-la das garras dos traficantes, mas acaba morto. Em Veronika Voss Fassbinder, além de mostrar uma mulher tentando deixar sua marca num mundo de homens, reapresenta o tema da exploração emocional nas relações íntimas. Não apenas Veronika é vitima da neurologista e do funcionário da saúde pública, mas Robert é explorado por Veronika e a namorada de Robert é explorada por ele (5).

A própria Veronika não tem outro fim senão também morrer no final. O mundo de Veronika virou de cabeça para baixo. Não pertence mais a ela, assim como a própria Alemanha não pertence mais a si mesma (dividida entre os vitoriosos da guerra recém terminada, a Alemanha também está incerta em relação a seu futuro).

Manipule a Vida dos Outros e Seja Feliz

Lola é um filme tão pessimista quando os anteriores (ao lado). Entretanto, nele fica mais claro, mais rapidamente, quem é quem. Lola é uma dançarina de cabaré e prostituta. Vive e trabalha numa boate cujo proprietário (que é seu amante) é também um grande empresário da cidade. Seus clientes no prostíbulo, muitos dos funcionários públicos da cidade, acabam trabalhando para ele ao manipular as decisões da prefeitura. Portanto, o cenário de Lola é a corrupção entre empresários e funcionários públicos na Alemanha. O filme se passa no momento do pós-guerra em que a Alemanha está se reconstruindo, quando as oportunidades de lucro são imensas. Eis que na cidade surge de repente um novo funcionário público encarregado das licenças para as obras.

Incorruptível, ele se torna um problema! Lola entra em ação e consegue fazer desse “funcionário problemático” um animalzinho de estimação. Mas ele ainda não sabe que ela é uma meretriz local. Lola conquistou aquele homem fazendo-se passar por uma mulher pura e de bons sentimentos. Passa-se um tempo até que o funcionário público descubra a verdadeira identidade da mulher. Então, quando imaginamos que a estória tomaria outro rumo e que os bons venceriam os maus, temos uma surpresa. O homem aceita casar-se com ela, assim como aceita render-se aos interesses do empresário (que em segredo continua amante de Lola).

De fato, Lola colocou um homem de joelhos, por outro lado, ela é “funcionária” de outro. Portanto, o mundo patriarcal masculino ainda dá a palavra final. Além do tema da exploração emocional nas relações íntimas, Fassbinder retrata aqui a realidade econômico-financeira-industrial da Alemanha durante as duas décadas seguintes à Segunda Guerra. Qualquer semelhança com a situação do serviço público de certo país da América do Sul talvez seja mera coincidência...

Notas:

Leia também:

Berlin Alexanderplatz (I), (II), (final)

As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (I), (II) e (IV)

Este artigo foi públicado no catálogo da mostra Filmes Libertam a Cabeça

1. WATSON, Wallace Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. P. 206.
2. Idem.
3. Ibidem, p. 221.
4. Ibidem, p. 225.
5. Ibidem, p. 224.

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Herzog, Fassbinder e Seus Heróis Desesperados

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