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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

19 de mar. de 2016

Fausto e Mefistófeles Segundo Murnau


“Os chineses tem um provérbio: 
‘Uma imagem vale mais que dez mil palavras’”

Friedrich Wilhelm Plumpe (Murnau)

Realizado por F.W. Murnau, Fausto (Faust – Eine Deutsche Volkssage, 1926) representa uma conquista notável em termos técnicos, deixando claro até onde chegou o cinema mudo alemão da República de Weimar. A dimensão da marca deixada por este filme pode causar espanto quando Thomas Elsaesser afirmou que os efeitos especiais utilizados seriam ultrapassados em complexidade apenas em 1968 com o clássico de Stanley Kubrick, 2001, Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Space Odyssey)! Elsaesser também chamou atenção para a “germanidade” que Fausto exala. (imagem acima, Fausto, o velho, se dirige para a floresta e invoca Mefistófeles)

Não tanto aquela evocada por Goethe, mas aquela presente no estilo gótico: uma reinvenção da Alemanha “tipicamente” medieval ou, antes, da Reforma; casas com estrutura de madeira, ruas íngremes e tortuosas em paisagens urbanas tortas, cadeias de montanhas e vales, florestas fechadas e cachoeiras – Elsaesser deve estar se referindo à retomada do gótico na arquitetura do século XII, mas no contexto do século XVIII, levando em conta influências contemporâneas como o Romantismo. Em outras palavras, concluiu Elsaesser, uma Alemanha para turistas, porém suficientemente saturada com marcadores históricos para tornar plausível toda a Renascença ao norte da Europa através de uma iconografia de autenticação, de Albrecht Dürer a Lukas Cranach, de Mattias Grünewald a Albrecht Altdorfer. Em sua opinião, Fausto é como o diário de uma viagem no tempo e no espaço (1). (imagem abaixo, Mefisto localiza Fausto e insiste com o Arcanjo que o velho não passa de um egoísta, por tentar transformar metal comum em ouro. O Arcanjo desafia Mefisto, se conseguir conquistar o coração de Fausto com o mal, a Terra lhe será entregue)

O Trauma da Voz na Imagem


Em seus últimos anos de vida, Murnau (1888-1931) recitava provérbios chineses para tentar convencer Hollywood que o autêntico cinema não precisava recorrer à palavra. Murnau acreditava que o advento do som no cinema poderia colocar em risco uma série de avanços que finalmente se consolidavam no cinema mudo. Para citar um exemplo, em seus primórdios, o cinema demorou a encontrar uma linguagem cinematográfica própria que contrariasse aqueles que viam naquelas imagens móveis apenas teatro filmado. Será que com o advento do som o cinema iria regredir ao estágio de teatro filmado? Já que agora os atores e atrizes poderiam expressar facilmente os mais complicados sentimentos com palavras audíveis, para que um cineasta e sua equipe iriam quebrar a cabeça em busca de imagens expressivas e uma linguagem visual para comunicar emoções? (2) Estas eram apenas algumas das questões em debate na época, o que para nós parece uma discussão sem sentido (já que a maioria de nós só conhece o cinema mudo como uma “limitação técnica” do passado), mas que realmente implicou a quebra de um paradigma estético. 
Contudo, embora Murnau tenha lutado para eliminar os intertítulos de seus filmes (encontramos pouquíssimos deles em A Última Gargalhada, Der Letzte Mann, 1924), embora reclame dos cineastas pouco “imaginativos” que a partir da agora dominarão Hollywood, ele não era totalmente refratário à novidade. Ainda que tenha dito que o cinema estava ameaçado de transformar-se de uma arte para surdos num espetáculo para cegos, Murnau compreendia as implicações da novidade. Embora Tabu (Tabu, a Story of the South Seas) tenha sido realizado em 1931 (a Paramount o lançou como um “poema em imagens onde a música fala pelos personagens”), já na vigência do cinema falado, Murnau esboça interesse em estudar o assunto (ele não acompanhou o processo porque estava nos mares do sul filmando Tabu):

“Quero estudar o desenvolvimento e os efeitos do filme sonoro na Alemanha, França, Inglaterra e nos Estados Unidos. Pois quando o cinema sonoro foi instituído eu estava longe da civilização. Devo conhecer a situação atual e ver em que direção se encaminha o sonoro. É ridículo dizer que o cinema sonoro vai desaparecer. Não se rejeita uma invenção valiosa. O filme sonoro é um grande progresso para o cinema. Desgraçadamente, chegou cedo demais. Justamente agora que estávamos a ponto de mostrar todas as possibilidades da câmera. Com a chegada do som, esquecem-se da câmera, enquanto se frita os miolos para aprender as possibilidades do microfone” (3) (imagens abaixo, do centro para a esquerda, três imagens de Mefistófeles: peludo enquanto discutia com o Arcanjo, maltrapilho quando se apresenta a Fausto e com uma máscara branca e capa preta depois de rejuvenescer o ancião. À direita, acima, Fausto parte para uma viagem pelos céus; abaixo, os arcos luminosos que surgem quando ele clama pela presença do diabo [Mefisto] serão utilizados no ano seguinte, quando o robô ganha vida em Metropolis (1927), de Fritz Lang)


Luciano Berriatúa ressaltou o esforço de Murnau em transformar o cinema numa pintura em movimento. Tudo isso, temia o cineasta, seria abandonado. A pesquisa sobre a linguagem da imagem seria substituída pelo texto. Como começo dos tempos de profissionalização do cinema através de empreendimentos como a Film d’Art, dramaturgos e novelistas seriam contratados para escrever os diálogos, porém muito poucos deles conhecem a linguagem das imagens. Mas aqui é necessário um esclarecimento, Murnau não era contra o filme sonoro. De resto, o cinema nunca foi silencioso, já que sempre foram acompanhados por música – muitas vezes, com partituras muito trabalhadas. O cinema era mudo porque não falava. O problema, aquilo que rejeitavam cineastas como Murnau, René Clair, Chaplin entre outros, era os filmes falados. Eles se insurgiam contra a possibilidade de se utilizar a palavra como um recurso dramático fácil em detrimento da força da imagem. 
Berriatúa é categórico, para Murnau o cinema é uma arte da imagem e, portanto, muito próxima da pintura. Seus modelos e métodos são buscados na pintura, cada imagem será concebida como um quadro. Naquela mesma época, na Alemanha, outros investigavam questões ligadas à composição da imagem e sua relação com o inconsciente do espectador. As teorias da Gestalt e as lições de Paul Klee na Bauhaus são exemplos importantes dessa busca. Murnau trabalha a partir de seu conhecimento de pintura e pensamento analógico aplicado a metáforas visuais. O problema, Berriatúa desabafou, para aqueles que pretendem estudar as técnicas de realização de Murnau, é que ele mantinha absoluto silêncio a respeito de seus procedimentos e referências pictóricas. (imagens abaixo, três versões de Cavaleiros do Apocalipse, realizadas por Böcklin entre 1896-7. Abaixo, à direita, desenho de Kreling mostrando Fausto e Mefisto)

Cinema e Pintura 


“As emoções no cinema mudo devem ser expressas
 através de imagens. Devem mostrar-se. É necessário, 
portanto, buscar imagens que leiam o pensamento

Luciano Berriatúa (4)

Fausto foi o último filme realizado por Murnau na Alemanha - juntamente com Ernst Lubitsch, talvez ele tenha sido um dos primeiros cineastas alemães a se mudar para Hollywood. De acordo com Berriatúa, praticamente cada plano desse filme é parte de uma cadeia estruturada de quadros em movimento – algo que não voltaria a se repetir na história do cinema. Mas essa tendência de Murnau não é de modo algum exclusiva, Fritz Lang admitiu influências da obra de Arnold Böcklin (1827-1901) em Os Nibelungos. Da mesma forma, O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920) não foi um experimento casual. Berriatúa explica que os filmes da época equivocadamente chamados de expressionistas têm em comum uma tentativa de superar o teatro filmado.
Um detalhe que escapa a nós, que vivemos numa época onde a reprodução de imagens de pinturas atingiu um nível inimaginável no tempo de Murnau, é que o cineasta só utilizava elementos de obras a que ele teve acesso direto em museus e coleções – as reproduções não eram tão abundantes e geralmente eram em preto e branco. Berriatúa acredita que esse fato possa facilitar um pouco a pesquisa das fontes iconográficas do cineasta, pois restringiria a busca em grande parte a obras alemãs e/ou conservadas em museus daquele país. No caso de Fausto, Berriatúa fala de uma edição do livro homônimo de Goethe ilustrado por August von Kreling (1818-1876) que estaria na biblioteca de Murnau, atualmente sob a guarda de suas sobrinhas. De acordo com Berriatúa, várias cenas do filme seriam influenciadas pelas ilustrações de Kreling. Seja pela disposição espacial dos personagens e pelo claro-escuro de algumas tomadas – esta última característica de Murnau é geralmente atribuída pelos críticos à influência da obra de Rembrandt sobre o cineasta. 

Ao mesmo tempo, Berriatúa reprova certas associações que Lotte Eisner fez em seu livro sobre Murnau entre o cineasta e Mantegna para uma cena de Fausto. Também reprovou a Éric Rohmer, que descartou a hipótese de que Murnau se baseou em Böcklin para a imagem de abertura com os Cavaleiros do Apocalipse. Berriatúa não se esqueceu de citar a influência que Murnau trouxe de seus anos de aprendizado no teatro de Max Reinhardt, cujas peças (como Fausto e Sonhos de Uma Noite de Verão) reproduziria em várias cenas de Fausto. (imagem abaixo, Mefisto e o Arcanjo disputam a alma de Fausto)

O Espaço da Luz 


Na opinião do cineasta e teórico do cinema Éric Rohmer, ninguém soube organizar melhor o espaço de seus filmes do que o cineasta alemão da época do cinema mudo F.W. Murnau. Rohmer escreveu um pequeno livro onde procurou demonstrar como Fausto se presta particularmente a um estudo sobre a organização do espaço. Tudo neste filme foi determinado em detalhe (rostos, corpos, objetos, paisagens e elementos naturais). Nas palavras de Rohmer, nunca uma obra cinematográfica especulou tão pouco sobre o acaso (5).

Rohmer enumera três noções distintas que podem ser evocadas no cinema pelo termo “espaço”, que correspondem a três modos de percepção da matéria fílmica pelo espectador (como resultado de três etapas do trabalho do cineasta): espaço pictural, espaço arquitetural e espaço fílmico (6). A unidade que surge da interpenetração dessas três etapas determina a qualidade final da obra. Na opinião de Rohmer, ainda mais do que os outros filmes de Murnau, em Fausto esse unidade é tão eficiente que se torna difícil fazer o caminho inverso e determinar qual ideia surgiu em qual etapa – como é o caso, por exemplo, da sequência que abre o filme. Murnau era muito informado por uma cultura pictórica vasta, que Fausto deixa transparecer. Juntamente como cineastas como Serguei Eisenstein e Carl Theodor Dreyer, a concepção fotográfica de Murnau deve mais à pintura de museu do que as imagens populares. 

Na opinião de Rohmer, o segredo de Murnau seria o domínio do jogo entre luz e sombra – Lotte Eisner o considera o apogeu do claro-escuro (7). Fausto nos lembra do claro-escuro em Rembrandt (1606-1669), mas também em Caravaggio (1571-1610), Georges de la Tour (1593-1652), Johannes Vermeer (1632-1675) e Tintoretto (1518-1594). Do princípio da Renascença, Mantegna, Carpaccio e Piero di Cosimo, interessavam a Murnau, assim como todos aqueles cuja pintura poderia ser chamada “cósmica”. Robert Herlth, o cenógrafo de Fausto juntamente com Ernst Röhrig, se inspirou em Albrecht Altdorfer (1480-1538) para a maquete da viajem aérea de Mefisto e Fausto (8).
Rohmer rema contra a corrente e afirma que, ao contrário do que se imagina, Murnau é um dos cineastas menos expressionistas do período entre guerras. De fato, ele estaria mais próximo do romantismo alemão. Novamente é o prólogo de Fausto que será convocado para mostrar sua identidade com as ilustrações do romantismo. Por outro lado, Rohmer relaciona os excessos entre os personagens, suas caretas, a uma tradição grotesca antiga ou medieval, algo muito distante da pintura expressionista de Ludwig Kirchner, Max Beckman, Oskar Kokoschka e Emil Nolde, contemporâneos de Murnau.

De acordo com Rohmer, o lado pictural de Fausto é muito evidente desde a primeira imagem. As nuvens que passam têm mais força de presença do que os Cavaleiros do Apocalipse que elas atingem. O aspecto de Mefisto não evoca o diabo tradicional, aquela cabeça de cabra (herdada dos faunos da Antiguidade), mas uma espécie de coruja sem bico, com o focinho esmagado. Esse monstro seria análogo a certas esculturas românicas de demônios. Rohmer chama atenção para a linha formada pelas asas, na primeira cena (do ponto de vista do espectador) a da direita estendida, enquanto a esquerda dobrada. Segundo ele, as asas se prestam a uma comparação com cristas de montanhas e constituem um tema muito recorrente em Murnau, como em Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922) e novamente em Tabu – muito presente no primeiro filme, o lado obscuro da natureza é uma característica do Expressionismo (9). A montanha sempre está relacionada ao elemento sinistro ameaçador, nunca a serenidade, o impulso em direção à divindade (como na arte das catedrais). Em Murnau, todo o arsenal de formas herdadas da Idade Média está do lado do diabo, nunca no de Deus (10).

“Nenhum diretor, nem mesmo [Fritz] Lang, soube fazer surgir tão magistralmente o sobrenatural em pleno estúdio: será ainda a capa do demônio que cobre a cidade toda com suas enormes pregas, ou já uma nuvem gigantesca que paira pesadamente sobre ela? As trevas demoníacas irão devorar a claridade divina? Onde estarão os limites desses fenômenos grandiosos?” (11) (imagem abaixo, preparativos para a filmagem da sequência do prólogo quando, tendo a cidade dos homens aos seus pés, Mefistófeles discute com o Arcanjo sobre o destino de Fausto)


Os quatro Cavaleiros do Apocalipse que surgem logo na primeira imagem constituem tema familiar à pintura alemã, ainda que Rohmer considere a montagem de Murnau muito distante de Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1498) de Dürer e de A Guerra, de Böcklin. Haveria uma proximidade em relação a Don Quixote, de Daumier, mas Rohmer não se arrisca a afirmar uma influência, seja direta ou indireta. Contudo, o caso muda de figura quando atentamos para a questão da luz. Logo após os cavaleiros surge o sol, por duas vezes (com a luz estourada, a segunda imagem descarta a possibilidade de que se trate da lua), sendo substituído por raios luminosos sobre as quatro figuras cadavéricas. Nada existe de parecido na pintura ocidental que Rohmer sugere haver influenciado Murnau. O que se encontra são representações do alvorecer e do anoitecer, ou envolto em bruma. De Altdorfer temos o sol, radiante, mas baixo e num céu enevoado, em A Batalha de Alexandre (1529), O Repouso, O Monte das Oliveiras e Suzanne no Banho (1526).

“O início [de Fausto] apresenta o que o claro-escuro alemão criou de mais notável, de mais arrebatador: a densidade caótica das primeiras imagens, aquela luz que nasce das névoas, aqueles raios que cortam o ar opaco, aquela fuga orquestrada visualmente como que por órgãos que ressoam em toda a extensão do céu nos roubam o fôlego” (12)

Rohmer explica que apenas com o cinema produziram-se pontos de luz com essa intensidade, uma representação da luz muito mais exata do que jamais a pintura pode alcançar. O branco se estabelece quando, depois de Mefisto, surge na tela de Murnau um arcanjo brandindo sua espada, suas asas retilíneas contrastam com as do bicho escuro alado. As formas dos objetos surgem dos contrastes de luz e sombra. Dos cinquenta e seis objetos contabilizados por Rohmer em Fausto, trinta são luminosos (e quase sempre circulares). O Arcanjo e Mefisto lutam com a mesma arma: a luz. Abaixo de ambos, a cidade sobre a qual Fausto rejuvenescido sobrevoará juntamente com Mefisto. De acordo com Robert Herlth, a maquete da paisagem foi montada no interior de um hangar de 35 x 20 metros. Do ponto de vista arquitetural, Rohmer acredita que essa passagem pode ser relacionada a uma visão goetheana da viagem aérea como devaneio/sonho, mas também como o jardim-paisagem sonhado por arquitetos e escritores dos séculos XVII e XIX. Do ponto de vista escultural, Murnau não estaria tentando nos enganar com uma sensação de realidade. A maquete se apresenta enquanto tal diante de nossos olhos. 

Do ponto de vista pictural, ao relacionar como supostos modelos de Murnau uma série de obras de Altdorfer e Böcklin, Rohmer insiste que não há nada que se aproxime aqui de uma imitação servil. Para os pinheiros em primeiro plano, são avocadas Paisagem com Abeto e Salgueiro, Paisagem com Dois Pinheiros, Paisagem com um Pinheiro Duplo, O Pequeno Pinheiro, O Grande Pinheiro, Paisagem com uma Rocha Sombria. Elas não teriam fornecido nem a idéia das montanhas, nem dos pinheiros, mas um estilo, uma forma de inseri-los na composição. No caso das imagens do mirante e da cúpula, Rohmer sugere Castelo na Beira do Mar Atacado por Piratas e Vila na Beira do Mar, de Böcklin. No final da sequência do voo, a cidade sobre uma pedra banhada pelo mar evoca Repouso Durante a Fuga do Egito, também de Böcklin. Na opinião de Rohmer, a semelhança mais evidente se estabelece entre o palácio da duquesa de Parma e aquele de Suzanne no Banho. (imagem abaixo, Murnau brinca com Emil Jannings, que atuou como Mefisto. Certas imagens de bastidores são excelentes para comparar com as cenas do filme pronto e para abrir uma discussão a respeito do poder das imagens)

Murnau, o Homem

Elsaesser considera relevantes as observações de Rohmer, especialmente os esquemas que detalham a organização espacial das cenas em Fausto. Por outro lado, Elsaesser sugere que o fato de Rohmer também ser um cineasta pode ter propiciado uma identificação que impediu o francês de enxergar outras possibilidades. Mais especificamente, Elsaesser se pergunta sobre a possibilidade de os filmes de Murnau obedecerem a uma lógica muito mais “pessoal”. A hipótese gira em torno de um impulso erótico/sexual em seus filmes, que teria atingido seu ápice com Tabu. Elsaesser lembra que desde os comentários de Lotte Eisner em A Tela Demoníaca (1952) a respeito da homossexualidade de Murnau, e a pressão que ele sofreu por parte da legislação alemã homófoba – o parágrafo 175 do código penal -, o tema da sexualidade em seus filmes passou a ocupar a agenda, especialmente suas intensas e altamente ambivalentes representações da presença corporal e da beleza física. Eisner viu em Tabu um diário íntimo de Murnau: belos corpos mergulhando nas profundezas em busca de pérolas, canoas velozes, pernas... (13).
Tabu guarda certa semelhança com Nosferatu no que diz respeito a uma atmosfera sinistra e paisagens vazias, sem falar no sacerdote que persegue o casal como um vampiro. Os surrealistas franceses admiravam o erotismo em Nosferatu, contrastando o casal anódino (Nina e Harker) com o apetite necrofílico do morto-vivo - é possível notar, com Berriatúa, o caráter animalesco no vampiro de Murnau, em contraste com o erótico/romântico da relação entre o vampiro e a mulher na refilmagem de Werner Herzog em 1979, Nosferatu, o Vampiro da Noite (Nosferatu: Phantom der Nacht). Como mostra outro filme de Murnau, Tartufo (Her Tartüff, baseado na peça de Molière, 1925), quando o personagem título está finalmente sozinho com Elmira no quarto dela. Uma cena que, na opinião de Elsaesser, torna explícita a lascívia e o atentado violento ao pudor que, na constelação similar de Nosferatu visitando Nina, é simbolicamente minimizada pelo naturalismo sinistro que Murnau consegue extrair dos encontros mais antinaturais (14).

“[Elmira] é Nina uma vez mais, oferecendo-se ao monstro para salvar seu amado. E Tartufo, como o vampiro, é a imagem da luxúria desumana e voraz, o inverso da abstinência de Orgon [o marido de Elmira]. As duas posições [de Nosferatu e Tartufo] destroem o verdadeiro erótico” (15)

Ao comparar Nosferatu e Aurora (Sunrise, 1927), primeiro filme da fase norte-americana de Murnau, realizado na sequência de A Última Gargalhada, Tartufo e Fausto, Robin Wood afirma que a sexualidade é marcada como a fonte do mal para o cineasta alemão. Pelo menos em Fausto, Elsaesser sugere que a misoginia de Murnau seria visível no contraste entre a tragédia de Gretchen e as aventuras da dupla Mefisto e Fausto. Ao sugerir que as narrativas de Weimar na década de 20 do século passado são sintomáticas de um dilema quanto à autoimagem e sexualidade masculinas, Siegfried Kracauer procura definir até que ponto essas ambivalências nos filmes de Murnau são autobiográficas ou elementos necessários para uma história de tristeza e culpa, amor, saudade e auto-humilhação como Fausto

Em seu livro De Caligari a Hitler (1947), Kracauer aborda o tema da masculinidade danificada, articulando uma leitura psicanalítica e uma análise sócio-política da personalidade autoritária, como também o esfacelamento da autoridade paterna - a esse respeito, mas noutro contexto, a situação de neutralização da autoridade do pai comunista no filme de propaganda nazista Mocidade Heróica (Hitlerjunge Quex: Ein Film vom Opfergeist der deutschen Jugend, direção Hans Steinhoff, 1933) e o domínio do filho deste pelo oficial nazista, ilustrariam bem o ponto de Kracauer. Elsaesser afirma que as histórias preferidas do cinema expressionista alemão focam crises masculinas de identidade (evidenciadas pela insistência no motivo dos duplos) e brincam com a bissexualidade (triângulos amorosos onde geralmente dois homens são os “melhores amigos”, mostrando uma óbvia e muitas vezes fatal atração mútua raramente verbalizada). Quanto a isso, explica Elsaesser, os filmes de Murnau não evidenciam nem mais nem menos do que todos os outros: 

“Por conseguinte, se existe um deslocamento da (heteros)sexualidade para um aspecto angustiado em muitos filmes de Weimar, duplos sexualmente mais potentes, e imagens especulares refletindo lados reprimidos e mais escuros do desejo masculino (...), esse complexo seria mais do que o pano de fundo cultural contra o qual as representações de beleza e erotismo em Murnau poderiam ser tomadas. Se seus filmes carregam alguma mensagem secreta (sobre Murnau o homem) nas narrativas, é pouco provável que seja sobre um amor que não ousa dizer seu nome, mas sim de paixões que se realizam na distância e contemplação. As vezes de uma imagem autoimagem idealizada como em Fausto, cujo herói  é seduzido sobretudo por uma imagem – aquela dele como um belo jovem. Este é verdadeiramente o momento de um frisson muito especial, um ponto extremo no cinema de Murnau, muito do qual é sobre desejo mediado, desejo de uma imagem, por uma imagem: o segredo aberto do próprio cinema, erotizando intensamente o próprio ato de olhar. Mas também cada objeto olhado pela câmera” (16)



Fausto e Mefistófeles Segundo Murnau foi publicado originalmente na Revista Universitária do Audiovisual (ISSN 1983-3725), Universidade Federal de São Carlos (RUA/UFSCar) - Edição nº 47 - 15 de abril de 2012.

Leia também:

Notas:

1. ELSAESSER, Thomas. Weimar Cinema and After. Germany’s Historical Imaginary. New York: Routledge, 2000. P. 120, 242.
2. BERRIATÚA, Luciano. Los Provérbios Chinos de F. W. Murnau (Etapa Alemana). Madrid: Filmoteca Española/ICAA/Ministério da Cultura, 1990, 2 vols. Etapa Alemana (vol. 1).
Pp. 15-9, 30, 32, 34, 36, 56.
3. Idem, p. 16.
4. Idem, p. 109.
5. ROHMER, Éric. L'organisation de l'espace dans le Faust de Murnau. Cahiers du Cinéma, 2000. Pp. 5-8.
6. Espaço Pictural: A imagem cinematográfica, projetada sobre o retângulo da tela, é percebida como uma representação mais ou menos fiel, mais ou menos bela de alguma parte do mundo exterior (corresponde à etapa da fotografia de um filme); Espaço Arquitetural: Essas partes do mundo, naturais ou fabricadas, tal como são projetadas na tela, adquirem uma existência objetiva, podendo receber um julgamento estético. É com essa realidade que o cineasta é medido no momento da filmagem, quando ele a trai ou a restaura (corresponde à etapa da cenografia); Espaço Fílmico: Não é do espaço filmado que o espectador tem a ilusão, mas de um espaço virtual reconstituído em seu espírito, com a ajuda dos elementos fragmentários que o filme fornece (correspondem as etapas da encenação e da montagem).
7. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. P. 195.
8. ROHMER, Éric. Op. Cit., pp. 9-14, 19, 26.
9. DEMARRE, Audrey ; VALLON, Sylvie. Le Cinéma Expressioniste Allemand. Splendeurs d’Une Collection. Ombres et Lumières Avant la Fin du Monde. Paris: Éditions de La Martinière, 2006. Catálogo de Exposição. P. 74.
10. ROHMER, Éric. Op. Cit., pp. 33-7, 40-3, 64.
11. EISNER, Lotte H. Op. Cit., p. 298.
12. Idem, p. 197.
13. Ibidem, pp. 73, 232.
14. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., p. 246.
15. Idem, p. 258n64.
16. Ibidem, p. 249.

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