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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

25 de mar. de 2009

Tarkovski e a Polêmica do Cinema Poético (I)




(...) Preciso  dos  velhos  mestres  por um motivo. 
Cinema é uma arte muito jovem. Preciso para criar
no subconsciente dos espectadores uma perspectiva histórica da profundidade dos séculos  (...),   [para] que
eles pensem no cinema como uma velha arte.  Quer
dizer, com 300 ou 400 anos, e não [apenas] 90” (1)

Kubrick, Fellini, Pasolini e a Arte

Tarkovski sonhava com um filme sem trilha musical, que utilizasse apenas elementos da arte do cinema. Entretanto, admitia que não houvesse recursos na época. Nas palavras de Tarkovski repetidas por Eduard Artemiev, ele utilizava as músicas como muletas. Para aqueles que instantaneamente lembraram que na mesma época o cineasta italiano Michelangelo Antonioni também não gostava de trilhas musicais e as evitava em seus filmes, chamamos atenção para o fato de que Tarkovski era escravo do sistema soviético. Por mais que ele tentasse evitar a interferência dos burocratas que financiavam seus filmes, algumas coisas ele talvez não pudesse fazer.


A propósito disso, é interessante lembrar-se do famoso filme de Stanley Kubrick, que além de trabalhar o tema da ficção científica, utilizou músicas clássicas. Dois exemplos que valeriam a citação são Assim Falou Zaratustra, usada na cena do macaco com um osso que se transforma em nave espacial (criada pelo compositor alemão Richard Strauss em 1891), a outra é um vozerio de clima tenebroso na cena em que os astronautas se aproximam do monólito (Lux Aeterna, criada pelo compositor de origem romena György Ligeti em 1966). (imagem no início do artigo, detalhe de Caçadores na Neve, de Pieter Brueghel, Solaris, 1972; acima, O Sacrifício [Offret, 1985])

Mikhail Romadin foi enfático em relação a 2001, Uma Odisséia no Espaço, afirmou que Tarkovski teve uma forte reação negativa em relação ao filme de Kubrick. De acordo com a lembrança de Romadin, Tarkovski disse que não era assim que se deveria filmar ficção científica. Deveria ser uma visão só para a Terra, o fantástico deve ser evitado em nome da credibilidade: “façamos nossa plataforma espacial igual a um ônibus velho quebrado e não como uma utopia espacial futurística”. (imagem abaixo, Solaris)


“Exatamente aonde o avanço científico conduz a humanidade?
 Este filme  consegue  capturar  perfeitamente  o  medo  absoluto. 
Sem isso,  a  ficção  científica  torna-se  uma  simples  fantasia”

Comentário de Akira Kurosawa a respeito de Solaris (2)

De acordo com Tarkovski, o exotismo tecnológico de Kubrick afasta o público dos fundamentos emocionais do filme. Tarkovski era a favor de colocar os personagens em cenários reais, isto é, não exóticos. Uma nave espacial aterrissando como um ônibus numa parada produziria maior identificação do publico com suas próprias vidas. Para Tarkovski, o filme de Kubrick pareceu artificial, uma espécie de apresentação de museu demonstrando as últimas descobertas tecnológicas. Isso teria intoxicado Kubrick, fazendo com que ele se esquecesse do mais importante, o homem e seus problemas morais. Sem isso, afirmou Tarkovski, a arte verdadeira não pode existir (3). 

Stanislaw Lem foi contra o roteiro, onde somente um terço do filme se passava no espaço. Ironizando a negativa de Lem, Bonadin sugeriu que abandonassem a estação espacial-ônibus e a pensassem num apartamento de três quartos, com janelas quadradas! Depois de algumas risadas, Tarkovski preferiu não fazer, pois não ficaria como seu estilo. Bonadin chama atenção para o fato de que Tarkovski via seus filmes como parte de uma missão. Sua estética era oposta a de cineastas italianos como Fellini ou um Pasolini. (imagem abaixo, A Infância de Ivan [Ivanovo Detstvo, 1962])


Tarkovski estava em busca da linguagem que só poderia existir no cinema. Fellini, afirmou Tarkovski, tentava imitar a pintura, enquanto Pasolini fazia literatura. Tarkovski, afirmou Romadin, cria pinturas no cinema, mas filmando a arte. Seu modelo para Solaris foi Brueghel. Ele nunca hesitou, escolheu a pintura que representaria a Terra, invocando associações da infância, neve, cachorros. Tomou emprestado de Brueghel a conexão entre o espaço e a Terra. Sempre se estabelece uma conexão entre uma pintura ou uma poesia, ou ambas. Nas palavras de Romadin:

“[Fellini] tentou criar uma ‘pintura’ dentro de uma imagem imóvel, o que na tela não resultou em uma pintura, mas em ‘quadros vivos’. [Tarkovski] tinha uma discordância fundamental com Pasolini, porque ele sentia que Pasolini identificava cinema com literatura. Que Pasolini empregou sintaxe, pontuação, montagem, etc. (...) Para Andrei [Tarkovski], a única montagem que existiu foi a montagem de tempo. (...) [Solaris] é interpretado como nostalgia, mas não é nostalgia por nenhum país. Talvez seja o motivo de Solaris continuar a ser no Ocidente o mais popular de seus filmes. Porque ele não está diretamente conectado à Rússia. É uma nostalgia por toda a Terra, pela civilização terrestre. Cada filme de Tarkovski possui uma idéia visual requintada. Ele criava ‘pinturas...’ mas não como os ‘quadros vivos’ de Fellini. Ele simplesmente filma a arte em sua forma natural. A Infância de Ivan é baseada num entalhe de Dürer. Em Andrei Rublev são os ícones. Nostalgia é Piero della Francesca e Solaris é Brueghel. ” (4)

Notas:

1. Artemiev reproduzindo a justificativa de Tarkovski para usar pinturas e músicas clássicas em seus filmes. Dos comentários de Artemiev em Dossiê Tarkovski, volume II. Continental Home Vídeo, 2004.
2. Dos comentários de Kurosawa em Dossiê Tarkovski, volume III. Continental Home Vídeo, 2004.
3. Dos comentários de Mikhail Romadin em Dossiê Tarkovski, volume II. Continental Home Vídeo, 2004.
4. Idem. 


18 de mar. de 2009

A Zona de Tarkovski





“A intenção (...)
era fazer com que o

espectador sentisse que tudo
estava acontecendo aqui e
agora, que a Zona está
aqui, junto a nós”


Andrei Tarkovski (1)



Baseado no livro Piquenique à Beira da Estrada, de Arkadi e Boris Strugatski, o filme se passa numa espécie de terra de ninguém, um lugar fora do tempo. Stanislaw Lem, que criticou muito a adaptação que Tarkovski fez de seu livro para criar Solaris (Solyaris, 1972), sugeriu que os Strugatski foram igualmente vítimas dele (2). Sabemos, entretanto, que simplesmente o cineasta não se interessaria pelo lado fantástico do enredo de Stalker (1974) tanto quanto não se interessou pelo argumento de ficção científica de Solaris (3). Era uma questão de ponto de vista em relação aquilo que Tarkovski considerava prioritário: o ser humano.

Michel Chion acredita que Stalker é o mais linear dos filmes de Tarkovski, chegando a rivalizar com os filmes de ação norte-americanos na seqüência onde os três clandestinos entram na zona proibida de jipe. Entretanto, a diferença será sentida no ritmo e na encenação. As aventuras de Stalker são lentas! Ao contrário de Solaris e O Espelho (Zerkalo, 1974), que são dois filmes onde a mulher tem posições significativas, este filme se resume a três homens. As duas mulheres que surgem são descartadas: a acompanhante do escritor e a esposa do Stalker (4). A filha do Stalker, entretanto, apesar de aparecer ainda menos que a mãe, goza de uma posição de destaque – especialmente na cena final.

Sinopse

“O que foi isso? A queda
de um meteorito? Uma visita
de seres do abismo cósmico?
Fosse como fosse, no nosso
pequeno país, surgiu o milagre
dos milagres, a Zona. Enviamos
tropas para lá. Não voltaram.
Cercam
os a Zona com cordões
policiais. E fizemos
bem...
Aliás, não sei”
(5)



Um escritor e um cientista desejam entrar numa região proibida chamada Zona. Para isso, precisam de um guia. O Stalker, esse guia, é uma pessoa atormentada e não parece saber muito bem porque faz isso. Esse não é um trabalho normal, é proibido ir à Zona. Ele já foi preso por isso. No início do filme, sua mulher reclama, mas o Stalker se limita a dizer que tudo para ele já é uma prisão. O tema de Stalker é a dignidade humana, onde ela pode ser encontrada e como o homem sofre se não tiver amor-próprio (6).

O Stalker deixa sua mulher aos prantos no chão e vai ao bar onde encontrará seus clientes. Escutamos uma voz dizendo coisas negativas, mas não é ele ou seu pensamento. É do escritor falando com uma mulher enquanto espera o Stalker. Sua conversa, muito descrente dos mistérios da vida, nos dá uma idéia do que vamos encontrar: “Meu amor, o mundo é enfadonho até demais. Não há nada, nem telepatia, nem fantasmas, nem discos voadores, nada disso existe. O mundo é regido pelas leis do ferro fundido. É triste. Infelizmente, essas leis são invioláveis. Elas não podem ser alteradas. E não espere ver discos voadores, isso seria interessante demais”.

Quando a mulher pergunta sobre o triângulo das Bermudas, ele responde que não existe. Só existe o triângulo a-b-c, que é idêntico ao triângulo a’-b’-c’. “Não sente a tristeza fatal dessa afirmação?”, diz o escritor virando-se para a mulher. De acordo com ele, viver na Idade Média é que foi interessante. Havia muitos duendes, Deus estava nas Igrejas. Ela fala da Zona e da possibilidade de uma supercivilização, e ele responde que tudo isso é igualmente enfadonho, como o mundo de hoje. O escritor queria levá-la a Zona, mas o Stalker a manda embora. (imagem ao lado, próximo à sala dos desejos, podemos ver sob a água um detalhe do Altar de Ghent, Hubert & Jan van Eyck, 1427-29)

Em seguida, junto com o cientista, eles entram na Zona. Coisas estranhas acontecem, mas só o Stalker parece perceber. O escritor continua destilando sua amargura, enquanto o cientista que armar uma bomba nuclear na Zona, aparentemente em função de uma traição de sua mulher há muitos anos atrás. Chegam a uma sala, o grande objetivo da incursão. Quem chega neste local, diz a lenda, tem seus desejos realizados. No final, eles estão de volta ao mesmo bar do início da jornada. A esposa do Stalker vem apanhá-lo com sua filha que, sendo a mãe, nasceu aleijada por causa dessas viagens do pai à Zona. Aparentemente, o cientista e o escritor não conseguiram o que vieram buscar.

Uma Tentativa Poética


“Minha função é
fazer com que todos
que vêem meus filmes
tenham consciência da sua
necessidade de amar e de
oferecer seu amor, e que
tenham consciência de
que a beleza os está
convocando”
(7)



Tarkovski lamentou que o elemento estético de ficção científica fosse tão forte em Solaris, isso fez com que muitos não prestassem a devida atenção na temática do filme propriamente dito. Em Stalker, o cineasta acreditou que a estética empregada delinearia com mais nitidez o conflito moral dos personagens. Ao contrário de O Espelho, ele não pretendia inserir cenas de documentários, sonhos, conjecturas e recordações. De acordo com Tarkovski, a atmosfera resultante em Stalker foi a mais ativa e emocionalmente instigante entre todos os filmes que havia feito até então. Tarkovski desejava que Stalker desse a impressão de ter sido filmado numa única tomada:


“Eu queria demonstrar como o cinema (...) é capaz de observar a vida sem interferir nela de forma grosseira e evidente. Pois é nisso que vejo a verdadeira essência poética do cinema. Ocorreu-me que uma simplificação formal excessiva poderia correr o risco de parecer afetada (...). Para evitar isso tentei eliminar quaisquer indícios de imprecisão ou alusão nas tomadas - aqueles elementos que são considerados como as marcas da atmosfera poética. Essa espécie de atmosfera é sempre cuidadosamente elaborada; eu estava convencido da validade da abordagem oposta - não devo preocupar-me (...) com a atmosfera, pois ela é algo que emerge da idéia central, da realização daquilo que o autor concebeu” (8)

Os planos longos de Stalker foram o máximo que Tarkovski realizou - o que já constitui uma façanha. O que está em jogo é a eterna questão da montagem cinematográfica. Alexander Sokúrov, outro cineasta russo e conhecido de Tarkovski, realizou a façanha em A Arca Russa (Russkiy Kovcheg, 2002). Eduard Artemiev, criador das trilhas sonoras de Solaris, O Espelho e Stalker, comentou sobre essa proposta de Sokúrov:

“(...) A propósito, Sokúrov, que se considerava um aluno de Tarkovski, procurou completar o projeto no qual Tarkovski sonhou: fazer um filme inteiro como uma peça contínua. [Tarkovski] queria filmar uma estória de guerra dessa forma. Ele imaginou filmar em sua casa na aldeia. Uma cena de batalha utilizando somente uma câmera. Ele nunca conseguiu fazer isso, mas costumava dizer: ‘Isso seria cinema’. Acreditava também que editar era uma decisão forçada e deveria ser utilizada raramente. Fazer um filme em uma única peça... Ele acreditava que isso era arte real” (9) (ao lado, na única imagem fantasiosa, momentos antes um pássado sobrevoa, some e reaparece)

Felicidade, Verdade, Esperança


(...) É melhor ter
uma
felicidade
amarga do que
uma vida cinza
,
maçante (...)

A esposa do
Stalker desabafa


Durante o primeiro encontro no bar, o Stalker ouve enquanto o cientista e o escritor conversam. Como se continuasse o discurso de momentos antes com a mulher, o escritor sugere que a busca da verdade também é uma coisa enfadonha. Ele diz que até encontra a verdade, mas ela acaba se transformando num monte de... Perguntado por que deseja ir à Zona, o cientista responde apenas que é porque ele é um cientista. Já o escritor fala que perdeu a inspiração. Já na Zona, o Stalker diz que as pessoas vinham a ela atrás de felicidade. O escritor diz que nunca teve a sorte de encontrar uma pessoa feliz. O Stalker afirma que também não. (ao lado, o final de mais uma jornada)

O escritor pergunta ao Stalker se ele nunca quis se aproveitar da sala. Ele responde que se sente bem sem fazer isso. O escritor continua falando e falando sem parar, até que o cientista pede que se cale. Isso só estimula o escritor a criticar os interesses científicos. Em sua opinião, a humanidade existe para criar obras de arte. De todas as atividades humanas, o escritor acredita que essa é a única altruísta. Lá pelas tantas, desejando agir por conta própria, o escritor decide seguir sem os cuidados do Stalker. De repente, ele ouve uma voz que não era de nenhum dos outros dois. Ela diz: “Pare! Não se mexa!” O Stalker explica aos novatos que a Zona é um sistema complexo de armadilhas mortais.

Diz também que não sabe o que se passa nela quando não há ninguém ali, mas quando as pessoas aparecem tudo começa a se mexer. As antigas armadilhas são substituídas por novas. Os lugares seguros já não são mais. O mesmo caminho pode ser fácil num momento, difícil no seguinte. Ela parece independente, mas no fundo se faz a partir de nossos espíritos. O que acontece na Zona não depende dela, mas dos humanos que lá estão. A Zona, segundo o Stalker, deixa entrar aqueles que já não tem esperanças, os infelizes. "Você teve sorte", lembra o Stalker ao escritor, pois ela o avisou. (imagem ao lado, o escritor resolve seguir caminho sem o Stalker, mas uma voz ordena que pare)

Já próximo à sala, o cientista arma uma bomba nuclear. Aparentemente, ele quer acabar com tudo por que acha tudo muito perigoso caso caia em mãos erradas – ou ainda, porque sua mulher o traiu. Mas um diálogo entre os três o convence de que seu desejo pode vir a não se realizar. É que a Zona só realiza os desejos mais profundos e inconscientes, e não aqueles que carregamos conscientemente. Além disso, ele conclui também que ninguém saiu feliz da Zona. No final, o cientista desarma o artefato. Nas palavras sarcásticas do escritor: “sonha-se com uma coisa, recebe-se outra”. (imagem ao lado, a Zona de Tarkovski é um terreno abandonado, nada de efeitos especiais)

O Stalker afirma que seus desejos se realizarão de fato quando eles entrarem na sala. Criticado pelo escritor, que questiona o fato de nenhum Stalker entrar na sala, ele responde que tudo que tem está na Zona: a felicidade, a liberdade, a dignidade. O Stalker explica que a única coisa que o escritor e o cientista devem fazer ao entrar na sala é acreditar. Os dois hesitam, mas não entram, já que não conhecem (ou não admitem) seus desejos mais profundos. Já em casa com a esposa, o Stalker critica o cientista e o escritor:

“E se dizem intelectuais, escritores, cientistas! Não acreditam em nada! Tem o órgão da fé atrofiado. Não precisam dele! Deus, que pessoas. Você não viu? Eles têm os olhos vazios! Só pensam em não perder, em vender-se por mais dinheiro! Querem que todo o trabalho do espírito lhes seja pago! Pensam que não nasceram em vão, que são predestinados! Acham que só se vive uma vez! Podem pessoas iguais e estas acreditar em algo? Ninguém acredita. Não só esses dois. Ninguém! Quem vou conduzir [para a Zona]? Jesus! O pior é que ninguém precisa disso! Ninguém precisa desta Sala. Todos os meus esforços são inúteis. Não levarei mais ninguém” (10) (imagem ao lado)


Em seguida, antes da seqüência final, temos o monólogo da esposa do Stalker. Ela está sentada, olhando direto para nós, os espectadores. Tarkovski via essa personagem como o exato oposto do cientista e do escritor. Enquanto eles, principalmente o escritor, resmungava contra o mundo, ela era capaz de se dedicar ao marido apesar de tudo que sofria. Tiveram uma filha aleijada, supostamente pelo fato dele ser um Stalker. Na seqüência final, essa menina demonstra seus dotes movendo copos em cima de mesa através da força do pensamento. Antes disso, a mãe como que se abre para nós, olhos nos olhos:

“Sabe, a minha mãe não aprovou. Viram logo que ele não era deste mundo. Nossos vizinhos riam dele. Era tão simplório que dava pena. E a minha mãe costumava dizer: é Stalker, está amaldiçoado, é um eterno prisioneiro! Você não sabe o tipo de filhos que os Stalkers têm? E eu... não lhe respondia. Eu sabia que ele estava amaldiçoado, de que ele era um eterno prisioneiro, e sobre as crianças. O que eu podia fazer? Eu tinha certeza que poderia ser feliz com ele. É claro, eu sabia que teria muita tristeza também. Mas é melhor ter uma felicidade amarga do que uma vida cinza, maçante. Talvez, eu pensei nisso tudo depois. Mas então ele se aproximou de mim e disse: ‘Venha comigo’. Eu fui e nunca me arrependi. Nunca. Nós tivemos muitas tristezas, muito medo e muita vergonha. Mas eu nunca me arrependi, e eu nunca invejei alguém. É apenas nosso destino, é assim que somos. E se não tivéssemos tido nossas desgraças, não estaríamos melhor. Teria sido pior. Porque nesse caso, não teria havido nenhuma felicidade. Não teria havido qualquer esperança” (11)

O Que é a Zona para Você?

“A Zona não simboliza nada,
nada mais do que qualquer outra
coisa em meus filmes: a zona é
uma zona, é a vida, e, ao longo
dela, um homem pode se destruir
ou pode se salvar. Se ele se salva
ou não é algo que depende do seu
próprio auto-respeito e da sua
capacidade de disting
uir entre o
que realmente importa e o que
é puramente efêmero”
(12)


O destino dos personagens é uma determinada sala dentro da Zona, onde os mais íntimos desejos se realizam. Durante o caminho, o guia conta a história de outro Stalker, apelidado de porco-espinho. Ele foi à sala pedir pela ressurreição de seu irmão, assassinado por sua causa. Quando voltou para casa, descobriu que estava rico. O porco-espinho se enforcou. É que a Zona atendeu ao que de fato era seu mais íntimo desejo, e não o desejo que ele conscientemente pensava que era o mais importante. Agora, tanto o cientista quanto o escritor não tem coragem de entrar na sala. Como em Solaris, a possibilidade de materialização dos desejos torna-se uma faca de dois gumes.

Eles refletiram sobre si mesmos, dando-se conta de que são imperfeitos no mais profundo e trágico nível de consciência. Nas palavras de Tarkovski, eles conseguiram olhar para dentro de si mesmos e ficaram horrorizados. Conseguiram olhar para dentro de si mesmos, mas não conseguiram encontrar força espiritual para acreditar em si mesmos. Os dois olham a esposa do Stalker vindo buscá-lo no bar e não compreendem como ela continua nesse casamento sofrido. Em seu amor e devoção esta mulher, esclarece Tarkovski, representa o milagre que se contrapõe à descrença, ao cinismo e ao vazio moral que sufocam o mundo moderno, representados pela presença do escritor e do cientista.

A Zona de Stalker funciona como o planeta de Solaris: um lugar de encontro possível com o desconhecido, mas onde o homem se arrisca a ser agarrado por seu passado. Quando o escritor tentou caminhar sozinho, seu próprio medo de fazê-lo fez com que a Zona tornasse sua voz audível pelos três (“pare, não se mexa!”). Foi por essa razão que ele recusou o convite para entrar na sala dos desejos. Chion chama atenção de que geralmente os três homens estão no centro da tela, cada um virado para uma direção. Chion também nota uma simetria entre o copo que vibra e anda com a passagem do trem no início do filme e a cena final, onde a criança move copos com a força de sua mente (13).

Em Solaris, algumas pessoas perdidas no cosmo eram atormentadas por desilusões e a saída era muito ilusória. Em O Espelho, os sentimentos eram fonte de confusão para o protagonista, que não compreendia por que sofrer para sempre devido ao próprio amor e afeição. Em Stalker, Tarkovski afirma que basta o amor pela humanidade para provar que existe esperança para o mundo. Para Tarkovski, todo o problema é que já quase não sabemos mais amar (14). “O herói atravessa momentos de desespero quando sua fé é abalada; mas a cada vez, ele retorna com um renovado sentido da sua vocação de servir às pessoas que perderam suas esperanças e ilusões” (15).


"(...) E muito embora, a partir
de um ponto de vista exterior
,
a viagem pareça terminar em fracasso
, na verdade cada um
dos protagonistas adquiriu algo
de inestimável valor
: a fé (...)" (16)

Notas:

1. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Pp. 240-1.
2. Comentário disponível em:
http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/TheTopics/On_Solaris.html Acessado em: 15/03/2009.
3. TARKOVSKI, Andrei. Op. Cit., p. 240.
4. CHION, Michel. Andreï Tarkovski. Paris: Cahiers du Cinema/Le Monde, 2007. P. 60.
5. Texto no início do filme.
6. TARKOVSKI, Andrei. Op. Cit., p. 238.
7. Idem, p. 241.
8. Ibidem, p. 235.
9. Dos comentários de Artemiev em Dossiê Tarkovski, volume II. Continental Home Vídeo, 2004.
10. Das legendas em português do dvd de Stalker, Continental Home Vídeo, 2004.
11. Das legendas em inglês do dvd de Stalker, Continental Home Vídeo, 2004.
12. TARKOVSKI, Andrei. Op. Cit., p. 240.
13. CHION, Michel. Op. Cit., pp. 66-9.
14. TARKOVSKI, Andrei. Op. Cit., pp. 238-9.
15. Idem, p. 234.
16. Ibidem, p. 240.

11 de mar. de 2009

Tarkovski e o Planeta Água


“Eu não gosto de sua
ficção  
científica   típica,
eu   não  a 
compreendo,  eu
não acredito nela.  
O fato é que,
quando   eu   estava
   trabalhando
em  
Solaris,   preocupava-me  com
o   mesmo  
  assunto   de    [Andrei]
Rublev: o ser humano. Estes dois
filmes estão
separados apenas
pelo  tempo  onde  a  ação
está acontecendo”
(1)
 


Poderíamos dizer que o cineasta russo Andrei Tarkovski dirigiu dois filmes de ficção científica, Solaris (Solyaris, 1972) e Stalker (1979). Uma adaptação livre do livro homônimo escrito pelo polonês Stanisław Lem, veremos que Solaris não tem nenhuma relação com a versão criada em 2002 nos Estados Unidos. Alguns disseram que o Solaris de Tarkovski foi uma resposta a 2001, Uma Odisséia no Espaço (2001, A Space Odyssey, direção do norte-americano Stanley Kubrick, 1968). Isso é um equívoco. De fato, o universo tecnológico da ficção científica é totalmente secundário em Solaris e Stalker.

Sinopse: Você se Conhece?

 

"Chris, ela só existe aqui,
na     estação    
[orbital].
Não   leve   para  a  cama
 um problema científico" 
 

Dr. Snout procura convencer
Chris a abandonar Hary





Chris Kelvin é psicólogo, ele foi chamado para desvendar estranhas visões que os tripulantes de uma estação orbital andam tendo - e que pelo menos um deles insiste que não é demência. O grupo está na órbita de um planeta chamado Solaris, totalmente coberto por um oceano. Antes de viajar, Chris é informado da hipótese do Dr. Messenger, ele acredita que o oceano é um cérebro, mas ainda não sabe do que ele é capaz. Ao chegar à estação, Chris logo percebe que as coisas não estão bem. Pouco tempo depois, é sua própria esposa Hary, morta há dez anos, que se materializa diante de seus olhos.



Chris resolve colocá-la num foguete, mandando-a para o espaço. Mas ele a reencontra quando volta para seu quarto. O Dr. Snout, um dos tripulantes, procura tranqüilizar Chris dizendo que ela é apenas alguém do passado dele. Pior seria, argumenta Snout, se o oceano de Solaris materializasse algo que só existe na imaginação – fazendo referência a nossos pesadelos. Snout explica que tudo leva a crer que o oceano captou de seus cérebros algo como pequenas ilhas de memória. (imagem abaixo, antes do suicídio, Gubarian deixa mensagem para Chris, a seu lado alguém que o oceano trouxe de sua memória)


Chris conclui que outra Hary surgirá a cada tentativa de destruir a anterior. Os seres criados pelo oceano são imortais, podem ser mortos, mas sempre haverá uma ressurreição. Por outro lado, eles podem ser bastante complexos. Na verdade, o filme gira em torno também de uma crise de identidade de Hary. Ela não sabe quem é, mas percebe que é idêntica a falecida esposa de Chris. Até que pergunta a Chris: e você, se conhece? Ele responde que todos os humanos se conhecem, indicando que Hary não é humana. Nesta resposta ele mostra também uma concepção ingênua da humanidade.


Durante essa estranha crise de identidade de um clone, Hary até tenta o suicídio inalando oxigênio líquido, acreditando que assim pode morrer congelada. Snout comenta com Chris que as coisas devem piorar, pois quanto mais ela fica com ele, mais ela se torna humana. Em seguida, assistimos com Chris, essa impressionante cena da ressurreição de Hary. Snout aconselha Chris a esquecê-la, o doutor insiste com o psicólogo que Hary só existe ali na estação orbital, sugerindo que ele “não leve para a cama um problema científico”. (imagem abaixo, dr. Snout explica para Chris o que é Hary)


Por alguns instantes, durante a seqüência da sala de espelhos, Chris confunde Hary com sua mãe. Durante esse delírio de Chris, acompanhamos uma longa conversa entre mãe e filho. Ao acordar, Snout o comunica que na sua ausência Hary conseguiu se aniquilar de uma vez por todas. Relata também que começaram a se formar estranhas ilhas no oceano de Solaris. Na próxima seqüência, vemos Chris na Terra, caminhando no campo ao redor da casa de seu pai, a mesma que conhecemos no início do filme. Descobrimos logo depois que ele não está na Terra, mas numa das ilhas no oceano de Solaris.

Tarkovski e o Karma

 



“Não  há  horror  do  qual
o homem não seja capaz”

Dostoyevski






As lembranças dos tripulantes, boas e ruins, tornam-se reais. É a ação do mar que cobre Solaris. Chris Kelvin, o investigador, torna-se parte do enigma. Sua esposa, que se suicidou há dez anos, se materializa. Algo de que Chris é culpado, porém é tarde demais para corrigir, porque Hary já morreu. O coração sabe que ele não a amou o suficiente, que a magoou mortalmente, então ela partiu para a não-existência. Mas ela não partiu! No fundo, está cada vez mais próxima dele. Cedo ou tarde, Chris irá confrontar essa realidade (2).


Ao se debruçar sobre os conflitos morais produzidos em conseqüência das descobertas científicas, o filme de Tarkovski se remete a uma nova moralidade, resultante das experiências dolorosas enraizadas no âmago daquilo que nos acostumamos a chamar de “o preço do progresso”. Para Chris Kelvin, esse preço significa ter de encarar sua própria dor na consciência, que por fim se materializou na sua frente: Hary (imagem abaixo, à esquerda, a primeira aparição dela). Kelvin não modifica seu comportamento, mantendo-se como sempre foi. Essa atitude é a fonte de um dilema trágico para ele (3).


Tarkovski era profundo conhecedor da bíblia, mas também se interessou pela problemática do Karma. Que vida viveríamos se tivéssemos a chance de voltar em circunstâncias diferentes? Kelvin teve outra chance, mas subconscientemente reencontrou no espaço sideral aquilo que o torturava, a mulher que negligenciou a ponto de deixar ela própria se perder. Tarkovski sempre se interessou pela alma humana, por aquilo que o homem é capaz. Ele costumava citar Dostoyevski: “Não há horror do qual o homem não seja capaz” (4).

Mulher Sonhada



“Vo
cê ama o que pode perder.
A si mesmo, uma mulher, sua pátria.
 Até hoje,  a  humanidade,  o  mundo, 
ficou fora do alcance do amor”

Chris  Kelvin no ápice de sua
confusão/iluminação mental
 



Natalia Bondarchuk fala da caracterização de Hary, sua personagem (5). Natalia lembra que Tarkovski chamou sua atenção por ela estar atuando exageradamente, como uma espécie de heroína soviética. Hary não era nada disso, ela não era ninguém, só uma matriz, um molde. Hary compreende que não é humana, que não passa de uma imagem. Natalia fez o que o cineasta sugeriu, mas tempos depois contou a ele porque inicialmente ela havia tentado criar uma personagem teatral demais para Tarkovski. Ela explicou que havia pensado em construir Hary como o "peixe fora d'água" de A Pequena Sereia.



Ela também não tinha direito de amar um ser humano. Ela era uma sereia, com um rabo de peixe, trezentos anos e sem uma alma humana. Todavia, a sereia amava tão profundamente um homem que se tornou humana. Para Natalia, assim era a estranha, medrosa e confusa Hary. Ela não tinha direito de amar, mas amou. Começou compreendendo outra pessoa, até que aos poucos ela própria se tornou alguém. Natalia chama atenção de que Tarkovski não estava interessado em como ela atuaria ou diria suas falas. O que importava para ele é que um espírito humano deveria tornar-se visível em Hary.


No início Hary não tem vida, era Solaris, ou o Cosmos, ou Deus, olhando através dos olhos dela. Não era a verdadeira Hary. Na cena em que ela tentou morrer congelada (ao lado), Tarkovski disse para Natalia: “ela está renascendo através da dor. Ela esta desenvolvendo os órgãos internos. O cadáver está retornando à vida através da morte”. O cineasta sugeriu que focasse a atenção nas mãos. Naquele momento Natalia passou a acreditar que a morte não existe e que o espírito não desaparece. Para ela, Solaris é a vida após a vida. Cada um de nós terá esse encontro com a própria consciência.

Uma Imagem do Outro Mundo

(...)     Ele  nunca  me  deu  tarefas
conc
retas. Era muito importante 
para ele não aconselhar  ninguém.
Ele    queria   extrair o melhor   de
você  deste  jeito,   algo que nem
você podia esperar de si
(...)”

Eduard  Artemiev,  compositor,
autor da trilha sonora de Solaris (6)



Tarkovski queria evitar o que a moda da época chamava de “espetacular”. Para ele, até mesmo o simples uso da cor poderia levar a isso. Entretanto, ele admite que, mesmo sendo contrário ao uso do filme colorido, teria de começar a utilizá-lo. Por outro lado, Mikhail Romadin, o diretor de arte de Solaris, chegou a dizer que na época havia falta de filme colorido, por isso alguns filmes foram feitos em preto e branco (a exceção é Andrei Rublev, planejado para não ser colorido) (7). Seja como for, alguns elementos da montagem nos filmes do francês Jean-Luc Godard tiveram esse mesmo tipo de justificativa.


Vadim Yusov (8), que cuidou da fotografia em Solaris, lembra que o que interessava Tarkovski era o tema da consciência moral humana. O cineasta ficou fascinado pelo tema da força material e mágica da Terra, que chamava de natureza sensual da Terra. Isso tudo ia além de terra, grama e água. Está vivo. Segue as regras da física e da química, mas também é parte da experiência humana. Somos conectados com esse planeta sensual. O outro planeta (Solaris) também é criado de material multiforme vivo, mas desconhecemos sua natureza. Foi criada, então, uma imagem desse universo contrastante.


De acordo com Yusov, Não podemos esquecer que o cinema carrega suas idéias através das imagens. Sabemos disso desde o cinema mudo, mas raramente isso é inteiramente compreendido. Não se deve abandonar a natureza visual, ou deixar-se influenciar por aqueles para quem a imagem tem uma natureza secundária. Citando 2001, Uma Odisséia no Espaço, que foi analisado pela equipe para fins de comparação, embora alguns elementos da imagem fossem interessantes, chegou-se a conclusão de que a concepção do filme quanto ao nascimento da humanidade era bem diferente de Solaris.


Com relação à Solaris, a idéia era criar uma estação que parecesse ser feita à mão, para compensar os viajantes pela perda de contato com as pessoas. Para o oceano cósmico, pensou-se em utilizar vísceras de animais. Teria de ser uma coisa que a mente não compreendesse. Mas desistiram, concentraram-se num líquido viscoso, com certa textura e cor. Misturaram acetona, pó de alumínio e vários corantes. Perceberam que a textura de um objeto denuncia seu tamanho, por isso utilizaram apenas de pó microscópico. Finalmente, combinaram negativos originais ao movimento e ao filme na velocidade correta.

Parceria Difícil

“Eu tenho reservas
fundamentais
à sua adaptação.
Primeiro de tudo,
uma vez que o
filme deve  
[submeter-se  ao  livro],
eu teria
gostado de ver o planeta Solaris, 
o diretor   infelizmente  me  impediu. Em    segundo    lugar,    como    disse    para
 Tarkovski numa de nossas brigas, ele 
não fez Solaris de jeito nenhum,
 fez Crime e Castigo(9)




Durante uma entrevista em 1985, Tarkovski esclarece a polêmica em torno da “paternidade” do filme (10). Para criar Solaris, Tarkovski se baseou no livro homônimo do escritor polonês Stanisław Lem. Foi este pequeno detalhe que gerou toda a polêmica entre os dois homens. Segundo Tarkovski, Lem sabia tudo sobre literatura, mas não sabia nada sobre o que significa o cinema. O polonês via a tarefa do russo como a de um mero ilustrador para seu livro de ficção científica. Tarkovski se ressentiu de que, enquanto ele amava os livros do escritor, este era totalmente indiferente em relação a seus filmes.


Na opinião do cineasta, Lem era como muitas pessoas que não consideram o cinema uma arte. São pessoas, argumentou Tarkovski, que não conseguem distinguir entre o cinema verdadeiro e o cinema comercial. Por esta razão, Lem acreditava que o roteiro do filme poderia simplesmente seguir o livro, ilustrá-lo. (imagem ao lado, ao fundo podemos perceber um quadro de Pieter Brueghel [1525-69], Caçadores na Neve; acima, detalhe do mesmo quadro. Tarkovski gostava de usar pinturas dos grandes mestres do passado em seus filmes. Eram necessários para envelhecer o cinema, uma arte nova)


Se era isso que o polonês desejava, desabafou Tarkovski, ele deveria ter procurado um diretor que se contenta em ser um “ilustrador”. São diretores que seguem o escritor escrupulosamente, ilustrando seu trabalho. Este tipo de coisa, segundo Tarkovski, não tem vida, não tem valor artístico. Trata-se de algo secundário em relação ao trabalho literário que “isso” ilustra. (imagem ao lado e acima, à direita, no espaço sideral as coisas podem flutuar, mas no universo de Andrei Tarkovski isso significa levitação; como nas imagens que, por exemplo, também encontraremos em O Espelho e O Sacrifício)


“Meu  Kelvin  decide ficar
 no   planeta    sem    nenhuma
esperança   de   nada,   enquanto
Tarkovski criou uma imagem onde
algum tipo de ilha surgia, e nessa ilha
 uma  cabana.  E  quando  eu  soube  da
cabana  e  da   ilha   eu   fiquei    irritado.
Esse   é  um  molho  emocional   no   qual
Tarkovski       mergulhou      seus      heróis,
para   não   mencionar   que   ele   amputou 
completamente a paisagem científica e em
seu  lugar  colocou  muitas  esquisitices
que  eu   não   entendo”   (11) 
 

Era isso que Stanisław Lem esperava de Tarkovski. Por essa razão o polonês se desentendeu com ele e desejava proibir a montagem do filme cada vez que Tarkovski e sua equipe apresentavam uma idéia que fugia de seu texto original. Enquanto Lem estava interessado no choque entre o homem e o Cosmos, Tarkovski desejava privilegiar as questões da vida interior dos personagens. O cineasta não queria dizer que o livro não era bom, apenas seu interesse caminhava em outra direção! A penitência, o elemento que Tarkovski via como o centro do livro, era uma questão secundária para seu escritor:


“(…) Essa ficção me atraiu apenas porque, pela primeira vez, eu encontrei um trabalho sobre o qual eu poderia dizer: expiação, essa é uma estória de expiação. O que é expiação? Remorso. Num sentido direto clássico da palavra: quando nossa recordação das injustiças do passado, dos pecados, transforma-se em realidade. Para mim, essa é a razão porque eu fiz um filme como esse” (imagem acima, à esquerda, o clone de Hary vê uma foto da Hary verdadeira, começa sua crise de identidade; ao lado, Chris e seu clone. A vida de Chris se complica, ele vive como se estivesse com a esposa)


Tarkovski não estava interessado no Desconhecido de Lem, mas na situação psicológica do homem, ele desejava mostrar o que acontece na alma. Ele quer saber se é possível continuarmos humanos (ao lado, ilhas começam a surgir no oceano/cérebro de Solaris, nesta vive Chris). O herói do filme (e do livro) é um psicólogo, mas um homem comum, grosseiro, sem cultura, com um alcance espiritual limitado. Este homem iria enfrentar uma batalha espiritual, o medo. O que era importante para Tarkovski é que este homem conseguisse forçar a si mesmo a ser humano, a não se render à brutalidade.


“(...) Ocorre que, apesar dele ser um perfeito cara mediano, assim parecia, permanece num alto grau de espiritualidade. É como se condenasse a si mesmo, ele foi bem dentro do problema e olhou-se no espelho. Ocorre que ele foi um homem espiritualmente rico, apesar de suas limitações intelectuais aparentes (...). Quando fala com o pai, é claramente maçante. Em sua conversa com Berton, fala de trivialidades sobre conhecimento, moralidade, conta algumas estórias banais; assim que começa a formar seus pensamentos, ele se torna banal. Mas se transforma num ser humano quando começa a sentir algo ou sofrer. Isso deixava [Stanisław] Lem completamente insensível. Totalmente insensível. Eu estava profundamente sensível a isso. Quando o filme foi premiado em Cannes e alguém o estava felicitando, ele perguntou: ‘ E o que eu tenho a ver com isso? ’ Ele fez essa pergunta com ressentimento. Mas alguém poderia olhar de outra forma para isso e perguntar: ‘ De fato, o que ele tem a ver com isso? ‘. Se tratasse o cinema enquanto arte, ele compreenderia o filme. Uma adaptação para a tela, aparentemente, sempre surge das ruínas [do trabalho que está sendo adaptado], como um fenômeno completamente novo. Mas ele não via as coisas assim”


Notas:


1. Comentário de Tarkovski, disponível em: http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/TheTopics/On_Solaris.html Acessado em: 10/03/2009.
2. Dos comentários de Natalia Bondarchuk em, Dossiê Tarkovski, volume II. Continental Home Vídeo, 2004.
3. Ver nota 1. Estas observações de Tarkovski sobre Solaris de alguma forma lembram as críticas que o cineasta italiano Michelangelo Antonioni fazia em relação à incapacidade das pessoas em repensar sua moral à luz das mudanças tecnológicas da sociedade industrial do pós-guerra.
4. Dos comentários de Eduard Artemiev, compositor da trilha sonora de Solaris, em Dossiê Tarkovski, volume II. Continental Home Vídeo, 2004.
5. Ver nota 2.
6. Ver nota 4.
7. Ver notas 1 e comentários de Romadin em Dossiê Tarkovski, volume II. Continental Home Vídeo, 2004.
8. Dos comentários de Vadim Yusov em Dossiê Tarkovski, volume II. Continental Home Vídeo, 2004.
9. Comentário de Lem a respeito do filme de Tarkovski baseado em seu livro, ver nota 1.
10. Disponível em: http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/TheTopics/interview.html#On_Solaris Acessado em: 08/03/2009.
11. Ver nota 9.

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