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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

27 de abr. de 2010

Nosferatu, o Retrato de Uma Época (final)




“Sabes que somos
todos mais ou menos assombrados por

vampiros?” (1)





Quem é o Pai da Criança?

Albin Grau ficou impressionado com as estórias sobre vampiros que ouviu quando esteve na Sérvia em 1916, na região dos Bálcãs, a meio caminho entre a Hungria e os Cárpatos, o lugar onde fica a Transilvânia. Oficialmente, digamos, Grau disse que teve a idéia em Praga, no ambiente do Imperador alquimista Rodolfo II. Na opinião de Luciano Berriatúa, Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror (Nosferatu, ein Symphonie des Grauens, 1922), surge das influências de duas fontes. Uma delas foi Drácula, o livro de Bram Stoker. A outra foi o efeito que causou em Grau o filme dirigido por Paul Wegener, O Golem (Der Golem, 1920) - assim como o livro que inspirou o filme. (imagem acima, vagando durante o dia no castelo vazio de Orlok, Hutter já sente uma ferida no pescoço, ele foi mordido pelo vampiro mas tenta se convencer que foram os mosquitos que infestam o local; Hutter encontra o caixão e o conde-vampiro lá dentro; Hutter fica descontrolado, todas as estórias que ouviu sobre o vampiro agora se revelam verdadeiras; agora Hutter percebe o que pode acontecer, já que o vampiro acaba de comprar uma casa em frente a sua; ele mesmo, Hutter, convidou o vampiro para estar bem proximo de Ellen, sua esposa; imagem abaixo, à direita, o castelo do Conde Orlok)



Foi Albin Grau,
cenarista e produtor,
que chamou Murnau
 para dirigir um filme
sobre Nosferatu (2)




O Golem é uma criatura de barro que vem a vida pela magia cabalística do rabino Loew, um personagem histórico de Praga, da época de Rodolfo II. Albin Grau chama então o roteirista do filme, Henryk Galeen, para montar o roteiro de Nosferatu. Mesmo os desenhos do personagem de Nosferatu não seriam totalmente inspiração de Grau. Ele teria se baseado nos desenhos de Hugo Steiner-Prag para O Golem, datados de 1915. Portanto, Albin Grau fora em grande parte o responsável pelo desenho do vampiro e o estilo do filme no clima mágico de O Golem. Entretanto, Murnau também trouxe contribuições. Alguns elementos de Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror já estavam presentes em Passeio na Noite (Der Gang in die Nacht, 1921), existem até planos repetidos, além da influência da pintura do Romantismo Alemão.

Atmosferas Repletas de Presságios 
 


Nosferatu personifica o pensamento do Prof.
Bulwer
: a Peste foi
trazida por seres
maléficos




De acordo com Thomas Elsaesser, Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror, não é um filme tão expressionista quanto se apregoa. Elsaesser defende a hipótese de que, devido à influência do trabalho de Lotte Eisner (3) sobre F. W. Murnau é que Nosferatu passa a ser visto como um dos padrões do cinema expressionista. Outras influências também teriam formado o pacote estético de Murnau. Elsaesser define Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror como um filme mais pós-expressionista do que propriamente expressionista, e afirma que além das influências vindas do Romantismo havia também fortes elementos do cinema escandinavo. (imagem acima, já que os donos da carruagem que o transportava recusaram-se a ultrapassar certo ponto da viagem, Hutter não tem escolha senão seguir pela floresta a caminho do castelo de Orlok; na imagem vemos o que parece ser um local de orações, que Hutter nem percebe; este é mais um sinal do que está por vir; momentos depois, uma carruagem sinistra chega para levar Hutter direto ao castelo)


Os ratos
no porto de
embarque são
a justificativa
realista: fonte
da Peste



Cineastas como Mauritz Stiller, Urban Gad, Benjamim Christensen e Viktor Sjöström estariam entre as influências do cinema escandinavo da década de 1910. Christensen é lembrado por Häxan, a Feitiçaria Através dos Tempos (Häxan, 1922), já Sjöström dirigiu o muito citado A Carruagem Fantasma (Körkalen 1921). Destes cineastas, Murnau teria incorporado um realismo ao ar livre, um tratamento poético da paisagem, assim como um retrato muito controlado e suavizado de conflitos psicológicos ou francamente melodramáticos – sem dúvida, afirma Elsaesser, tributário do drama de Strindberg e Ibsen (4), além das novelas de Knut Hamsun e Selma Lagerlöf (5). (imagem acima, muitas são as imagens da natureza local, montanhas enormes com sombras enormes; novamente, o fato de não se tratar de uma montagem, mas de montanhas reais, dá ao filme um caráter ao mesmo tempo realista e fantasmagórico; imagem abaixo, novamente a natureza, agora na figura de uma árvore cheia de galhos tortuosos; meio viva, meio morta)



A primeira aparição da
Morte foi em A Carruagem
Fantasma. Porém, Nosferatu
não está numa charrete,
mas num castelo
(6)



O débito de Murnau com os mestres escandinavos estava em sua habilidade de adotar o naturalismo, elevando-o na direção de ações comuns e gestos simples mergulhados numa atmosfera ao mesmo tempo lírica e estranha, etérea e misteriosa. Cujos precedentes encontram-se na pintura de Kaspar Friedrich David (1774-1840) (para cenas em exteriores) e Georg Friedrich Kersting (1785-1847) (para cenas em interiores). Atmosfera que outro cineasta escandinavo, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer, aceitaria de Murnau em retorno. Em O Vampiro (Vampyr, der Traum des Allan Grey, 1932), no que diz respeito à representação do invisível, Dreyer mostrou o indizível da possessão vampiresca no mordiscar de um lábio, num olhar meio sombrio, em algo de maldade e danação num rosto (7). Quando Allan Grey sonha que está morto, vemos o “ponto de vista do morto” a partir do caixão (8). Um ângulo de visão, aliás, que não temos no filme de Murnau. Em Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror, vemos o ponto de vista do morto(-vivo) quando Murnau mostra a proa (frente) do navio, que mantém o curso mesmo depois que todos os marinheiros morreram (9).

“(...) [Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror] sugere a atmosfera da madrugada de noites não dormidas, graças a uma atenção meticulosa para com os detalhes visuais que aumenta a dramaticidade da aparência do próprio vampiro, sempre enquadrado em passagens angulosas de portas e aberturas em forma de caixão. O filme foi quase todo rodado em locações nos portos Bálticos [alemães] de Rostok, Wismar e Lübeck. Para as partes da Transilvânia, no castelo Oravsky, nos elevados Tatras da Eslováquia. Nesta locação, uma pedra, através de um enquadramento mágico de luz, pode parecer mal intencionada e ameaçadora. Enquanto durante a viagem marítima e a entrada no porto de Wisborg, o simples choque da marola contra o barco enche a imagem de presságio (...)” (10)

Um Cinema de Imagens 
 


Ao contrário
dos vampiros
de Hollywood,
Nosferatu tem
uma sombra!




Luciano Berriatúa vê Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror como o primeiro clássico indiscutível de Murnau e um dos filmes mais importantes de seu tempo. Através de recursos pictóricos, Murnau ultrapassa a encenação teatral ainda aplicada ao cinema. Ao contrário dos cenários pintados de O Gabinete do Dr. Caligari, o trabalho de Murnau em Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror foi autenticamente pictórico, com imagens realistas baseadas nas pinturas do romantismo alemão aplicadas a uma estória absolutamente romântica. O destino deste filme era ser destruído (todos os negativos), depois que a viúva de Bram Stoker conseguiu proibir sua exibição já que não foi pedida licença e nem foram pagos direitos autorais pelo uso da obra de Stoker (11). (imagem abaixo, da casa abandonada que comprou em frente ao ninho de amor de Ellen e Hutter, Nosferatu avista Ellen e nota que ela abriu a janela; Seja porque ela pretende matá-lo ou porque foi o próprio vampiro que a induziu pela força do pensamento a abrir a janela, era disso que ele precisava, outro convite para entrar; na imagem acima, o vampiro está quase chegando na porta de Ellen)



O filme
de Murnau é
apenas um plágio do
livro de Bram
Stoker?




Mas quais são realmente os elementos do livro de Stoker que foram incorporados ao filme de Murnau? A curiosidade em procurar esses elementos está justamente no foto de tratar-se de uma adaptação de obra literária pela arte cinematográfica nascente, mas agora num outro nível – afastando-se dos elementos da encenação teatral. De acordo com Berriatúa, a trama é muito similar a Drácula. Hutter trabalha numa imobiliária de Wisborg. Knock, seu patrão, personagem enlouquecido pelas Ciências Ocultas, envia Hutter à terra dos fantasmas na Transilvânia em busca de um estranho comprador. Ellen, a sensível esposa de Hutter, tem um pressentimento, mas não pode impedir seu marido de fazer a viagem. Ele chega ao castelo solitário e sinistro, para descobrir que o conde Orlok é um nosferatu, um vampiro. Orlok embarca para Wisborg e vai espalhando a peste pelo caminho, enquanto Hutter volta a cavalo. Ellen terá de sacrificar-se, para destruir o vampiro com a luz do sol. (imagem abaixo, Ellen foi deixada aos cuidados de amigos em Wisborg enquanto Hutter seguia para a Transilvânia ao encontro de Orlok; durante sua ausência, Ellen tinha pesadelos, sonambulismo e parecia estar ligada telepaticamente ao marido; embora Hutter não fosse capaz de captar a "presença telepática" de Ellen, ela parecia segui-lo todo o tempo; na imagem, ela acorda chamando pelo marido, que, neste exato momento, está sendo atacado pelo vampiro no castelo; Nosferatu suspende o ataque sem motivos aparentes, mas pressentimos que ele captou a força do amor de Ellen)



Romantismo burguês
levado ao extremo: Ellen,
uma esposa que se mata
para tentar salvar
o marido fiel



Mas a idéia central do filme de Murnau é distinta daquela do texto de Stoker. Drácula se baseia nas transfusões de sangue e na crença cristã de que a alma está contida nele. Sendo assim, quando se transfere o sangue, se transfere à alma – Drácula é um devorador de almas. Na Bíblia encontramos: “Porque a vida de toda carne, sua alma, está em seu sangue. O sangue é vida”. Segundo Berriatúa, Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror está mais distante de superstições religiosas. O vampiro do filme se identifica com a Peste transmitida pelos ratos. Ainda assim, existem muitos pontos em comum entre o filme e o livro. “É um Nosferatu, como o chamam na Europa Central”, o conde veste preto, tem olhos vermelhos. Knock, a essa altura, já preso como louco, caça moscas para comer, enquanto afirma: “sangue é vida”. A imagem do capitão se amarrando no timão do barco antes de ser atacado pelo vampiro também está no livro. Em relação à Ellen, está tudo lá e cá, sonambulismo, telepatia – ela pressente a chegada de Orlok. Estão no filme também as associações Nosferatu=vento=ondas.



Murnau enfatiza
as imagens da natureza,
que já não é mais símbo
lo
de claridade e bem viver,
mas de escuridão




Berriatúa chama atenção para algumas passagens do livro que aparecem em imagens no filme. “Explodiu a tempestade. Todo o aspecto da Natureza experimentou uma convulsão”. “Existe algo nesse vento e nesse rumor que ressoa e cheira e tem gosto de morte. Está no ar; sinto que vem”. Murnau traduzirá essas sensações em imagens de presságios. “Os cavalos relinchavam (…), presos num terror indizível”. “A lua se esconde atrás de enormes nuvens escuras”. “A lua brilhante refletia no mar e no céu, fundidos em imenso e misterioso mistério. Existe algo de sinistro nessa calma”. “As poderosas forças da Natureza permanecem profundamente ocultas”. “As enormes e sinistras ondas, que pareciam negras ao lado da branca espuma” (imagem abaixo, à esquerda, Knock foge da prisão e a cidade toda o persegue; nesta imagem, vemos um momento muito parecido com aquele quando Nosferatu chega em Wisborg de navio e acompanhamos sua cabeça, precedida pelos ratos, surgindo da abertura do porão).

Tornar Visível o Invisível 
 

As cartas
entre Orlok e
Knock estão cheias de
símbolos buscados por
Grau nos escritos de
Paracelso
(12)



Berriatúa corrobora Eisner ao admitir que muito do clima do filme de Murnau deve as pinturas ancoradas na tradição do Romantismo alemão de Kaspar Friedrich David para tornar visíveis as forças invisíveis e obscuras da Natureza, imagens que reproduziriam fielmente o espírito de Drácula, de Bram Stoker. Por outro lado, Murnau teria também se deixado influenciar por Edvard Munch. Em Lübeck (1903) a fachada de um velho armazém pintado por Munch é provavelmente o mesmo filmado por Murnau – esta seria a casa abandonada em frente da janela de Hutter e Ellen que o conde Orlok pretendia comprar (13). Murnau também utilizou uma pintura de Franz Marc, Paisagem com Cavalos (Landschaft mit Pferden,1909), na seqüência dos cavalos. Originalmente, Murnau teria se interessado pela pintura de um lobo por Marc. No final, o cineasta mudou os lobos por uma hiena em função de desenhos de Alfred Kubin como Hiena (Hyäne, 1920), onde o animal é representado como um ser vampírico que devora cadáveres em cemitérios. Berriatúa percebe que não se trata da espécie de hiena a que estamos habituados a ver nos documentários. A Hiena Manchada, além de possuir um focinho mais fino, suas orelhas são mais pontudas (imagem acima, à direita). A propósito, ela se chama lobo-tigre (tigerwolf), em alemão (14).

A Peste de fato
assolou
aquela cidade
alemã em
1838. Personificada
em criaturas como Nosferatu,
era vista como uma força
sinistra e incontrolável
da natureza
(15)


A atmosfera das pinturas de Kaspar David Friedrich sem dúvida, Berriatúa é enfático neste particular, foi a influência mais poderosa buscada por Murnau para visualizar as idéias de Albin Grau e Henryk Galeen sobre as forças ocultas da Natureza. Em 1906, uma exposição trouxe a obra de Friedrich de volta do esquecimento – justamente na época em que Murnau estudava arte. Nas palavras de Berriatúa, graças a estes pintores Murnau conseguiria o inesperado no cinema até então: tornar visível o invisível, impondo ao inconsciente do espectador a presença das forças escuras da Natureza. (imagem acima, à direita, o momento em que Nosferatu, distraído enquanto suga o sangue de Ellen, ouve o canto do galo; percebe então que está em perigo, tenta escapar, mas é tocado pela luz do sol; ele se contorse e põe a mão no coração de mesma forma que Ellen havia colocado a mão no dela quando olhou para o vampiro de frente em seu quarto; tarde demais, o Conde Orlok-Nosferatu fica transparente e vira fumaça)



Segundo Paracelso
, 
a Peste é um ser invisível
ou um
a força da Natureza
levada pelo vento




Na obra de pintores como Friedrich, Kersting e Carl Gustav Carus (1789-1869), uma imagem realista, quase fotográfica, do interior de um recinto ou de uma paisagem cotidiana, se transforma em algo inquietante. Berriatúa chama atenção para a importância do enquadramento. Enquadrar supõe uma decisão sobre aquilo que se deseja mostrar: escolhemos a parte da realidade que acreditamos importante. Curiosamente, Carus nos mostrará parte de um telhado, Friedrich o nariz de um barco ou uma figura de costas, uma paisagem onde só vemos um enorme céu vazio, ou simples marolas ou ondas pequenas. É isso que vale a pena mostrar da vida? O que carregam essas imagens para que o pintor nos obrigue a vê-las? O que ele viu que nós não vimos? Não há “nada” visível, sentimos o vazio e pressentimos que existe algo invisível (16). (imagem acima, à esquerda, Nosferatu está prestes a entrar no lar de Hutter e Ellen; o que ele não sabe é que ela tem planos para tentar destruí-lo; imagem abaixo, à direita, o vampiro chega no quarto dela, que se apavora e põe a mão no coração; mas para que seu plano dê certo, ela deve se oferecer ao vampiro)


Em busca de
imagens para o filme
,
Murnau e Grau parecem
ter procurado por toda
a pintura alemã do
século XIX
(17)



Os quadros de Kersting, por exemplo, retratam um personagem lendo ou costurando perto de uma janela ou ponto de luz, num interior amplo que apequena o personagem – em casos excepcionais, ressalta Berriatúa, encontramos duas figuras! Um de seus quadros retrata a ele e Friedrich de costas! Murnau vai utilizar esses ambientes claustrofóbicos para fazer de Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror um filme de terror onde o vento agitando as árvores, uma praia tranqüila ou um barco navegando produzem mais tensão do que a própria presença do vampiro. Na opinião de Berriatúa, a pintura acabou com o domínio do teatro sobre o cinema. O filme de Murnau pode ser qualquer coisa, menos teatro filmado. (imagens abaixo, Ellen cai na cama e indefesa acompanha com os olhos a sombra da mão de Nosferatu, que parece uma aranha subindo direto para sua presa: o coração de Ellen; quando a mão chega no objetivo, se fecha com força e vemos a mulher se contorcer e desfalecer na cama; o vampiro inicia então sua colheita maldita, até que seja surpreendido pelo canto do galo anunciando o raiar do dia, esse será seu fim)




As cores inundam
o filme de Murnau de forma
mais criativa que a maioria
dos filmes coloridos





É de Adolf Menzel (1815-1905) a pintura que Murnau utilizou como modelo para mostrar Ellen “abatida” ao descobrir que deve sacrificar-se para destruir Nosferatu. Em seus filmes, Murnau copia quadros até o mínimo detalhe. Mas sua intenção, afirma Berriatúa, não é apenas criar uma imagem bela ou reconstruir uma época, ele busca a tela que melhor expressa certa idéia ou sentimento. Murnau sabia que a pintura foi a arte de emocionar pela linguagem. Sabe também que o cinema é imagem, mas em movimento no tempo. Alem disso, o cinema mudo nunca foi mudo, e as filmotecas, diria Berriatúa, deveriam procurar localizar as partituras originais de cada filme. E Murnau dava muita importância à trilha musical de seus filmes. O mesmo se deve dizer das cores, os filmes de Murnau tinham várias cores. Nota-se o contraste na cena em que a vela acessa junto à janela está numa tela com um marrom acastanhado (1:09:00). Quando, de repente, uma rajada de vento apaga a vela, tudo fica azul – uma das cores associadas à presença de Nosferatu. Em outro lugar, Ellen lê o livro sobre vampiros que Hutter havia proibido que ela abrisse, e descobre que a única maneira de destruir o vampiro é que se ofereça a ele uma mulher pura. Deve-se então mantê-lo distraído até o galo cantar e a luz do sol atingi-lo. Será o fim do vampiro... e de Ellen.



A sombra da mão de
Nosferatu é como uma
aranha prestes a sugar a
vida do coração de Ellen




“[Nosferatu] será substituído por sua sombra ao aproximar-se da casa, e veremos Ellen reagindo à visão de Nosferatu, mas sem que nós vejamos o que ela vê [ele fora da tela]. Sentimos que se aproxima de Ellen (...). Por fim, entrará no quadro a sombra da mão de Nosferatu! Essa sombra é que vai atuar, e não a realidade física. A sombra da mão se fechará sobre o coração de Ellen, acabando com sua vida. A sombra é a representação do mal interior, sua imagem nos sugere que a doença atua dentro [de Ellen] e toma seu coração, centro da vida. É um dos momentos mais lúcidos de toda a carreira de Murnau e Grau. [Também] é o mais belo plano de Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror” (’18)

Notas:

Leia também:

Ingmar Bergman e a Trilogia do Silêncio

Pier Paolo Pasolini e a Trilogia da Vida
Fellini e a Trilogia da Salvação
Herzog, Fassbinder e Seus Heróis Desesperados O Melhor Efeito Especial é a Alma Humana Arte do Corpo: Cindy Sherman e Seus Duplos Religião e Cinema na Itália A Face do Mal (I), (II), (final)

1. Pergunta de um dos amigos de Albin Grau, quando de sua estada na sérvia, na noite em que teria ouvido estórias de vampiros da Romênia In BERRIATÚA, Luciano. Los Provérbios Chinos de F. W. Murnau (Etapa Alemana). Madrid: Filmoteca Española/ICAA/Ministério da Cultura, dois volumes. P. 151.
2. BERRIATÚA, Luciano, p.150.
3. Em seu livro A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
4. August Strindberg (1849-1912), dramaturgo sueco, Henrik Ibsen (1828-1906), dramaturgo norueguês. Ambos figuram entre os pais do teatro moderno.
5. ELSAESSER, Thomas. Weimar Cinema and After. Germany’s Historical Imaginary. New York: Routledge, 2000. Pp.227-8.
6. BERRIATÚA, Luciano. Op. Cit., pp. 156-7.
7. AUMONT, Jacques. Ingmar Bergman. “Mes Films sont L’explication de mes Images”. Paris: Cahiers du Cinema, 2003. Pp. 125-6.
8. VERNET, Marc. Figures de l’Absence. De l’Invisible au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1988. P. 49.
9. BERRIATÚA, Luciano. Op. Cit., p. 159.
10. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., p. 228.
11. BERRIATÚA, Luciano. Op. Cit., pp. 140-1.
12. Médico, alquimista, físico e astrólogo suíço. Morto em 1541, sua vida se passa entre hipóteses científicas e não-científicas. Controverso, muitos o consideram o pai da bioquímica, enquanto outros afirmam que muitos de seus escritos beiram a demência.
13. BERRIATÚA, Luciano. Op. Cit., p.142.
14. Idem, p. 144.
15. Ibidem, pp. 154-5.
16. Ibidem, pp. 146-7.
17. Ibidem, p. 168.
18. Ibidem, p. 169.  


22 de abr. de 2010

Nosferatu, o Retrato de Uma Época (II)








“Será a sombra a pátria
de nossa alma?”
(1)

Hölderlin, Hiperyon





Orlok, o Terror das Alemãzinhas

Eric Rentschler traça um paralelo entre a atmosfera de Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror e A Luz Azul (Das Blaue Licht, 1932), dirigido e estrelado por Leni Riefenstahl. De acordo com Bela Balázs, seu filme traria de volta a atmosfera frígida do Dia do Juízo Final que caracterizaria o filme de Murnau. Frieda Grafe apontou a semelhança entre a aproximação do personagem Vigo à aldeia na montanha em A Luz Azul à entrada de Hutter no reino do vampiro. Tanto Riefenstahl como Murnau, e aqui Rentschler reitera as observações de Lotte Eisner quanto à Murnau, reeditam as naturezas-mortas da pintura do romantismo transformadas em imagens móveis. Murnau desejava filmar o pensamento, afirma Rentschler, criar imagens que tivessem mais força do que as palavras (2). Robin Woods salientou que também existe uma “tentação psicanalítica” em relação à interpretação do significado subjacente ao filme de Murnau: “Nosferatu é o símbolo da neurose resultante da sexualidade reprimida (natureza reprimida); a neurose é exorcizada quando revelada à luz do dia. Mas o processo de sua emergência e reconhecimento foi tão terrível que a vida positiva... é destruída com ele” (3)

Do ponto de vista da ideologia nazista que tomou conta da Alemanha na década de 30 do século passado, costuma-se traçar um paralelo entre Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror e Judeu Süss (Jud Süß, direção Veit Harlan, 1940), um filme anti-semita patrocinado por Josef Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler. A estória gira em torno de um judeu que manipula os puros e honestos de uma cidade alemã. O discurso anti-semita da década de 20 regularmente mostrava os judeus como uma praga infectando o corpo germânico. O filme de Murnau pode ser resumido como o relato da visita de uma praga a uma cidade alemã (4). Além disso, num trecho bastante negligenciado nas análises deste filme, acompanhamos uma aula do Dr. Bulwer, que mostra aos seus alunos a natureza vampiresca de plantas carnívoras, aranhas e águas-vivas (imagem abaixo, à direita; acima, Nosferatu chega à cidade)

Para a conveniência da Alemanha Nazista, Orlok ressurge na pele do judeu
Süss. Um inescrupuloso
que não é considerado
humano
. Está montado
o palco do genocídio


Joseph Süss Oppenheimer pode ser visto como um a espécie de Drácula que, sob o pretexto de legitimar seus negócios, infecta a pureza germânica. Como o vampiro Orlok, ele embaralha as aparências, possuidor de misteriosa capacidade de adaptação física: esse ou, na verdade, todos os judeus, dissimulam e se disseminam. Noutro filme anti-semita da época, O Judeu Eterno (Der ewige Jude, Fritz Hippler, 1940), muito menos sutil que Judeu Süss, os judeus aparecem literalmente como parasitas nômades. Como Orlok, eles vem da Europa oriental, invadindo o mundo a maneira de vermes. “Onde quer que apareçam”, explica o narrador, “eles trazem a ruína, destruindo seus bens e alimentos. Eles espalham praga e doença... São ardilosos, covardes e cruéis” (5). O Judeu Eterno tinha muitas imagens nojentas de ratos e outros bichos, a platéia não agüentava e ia embora. Mas Judeu Süss, sem falar de pragas ou mostrar ratos, foi totalmente efetivo em disseminar a praga do anti-semitismo (6). (imagem abaixo, de seus caixões no porão do navio, Nosferatu sai toda noite. Tira o sangue e rouba a alma de cada um dos marinheiros)

A pestilência que
aco
mpanhava o mundo
de Nosferatu passa agora a caracterizar o estilo de vida
dos judeus
. Hoje em dia,
os judeus são os
palestinos


As maquinações de Süss levam a economia local à falência, ele derruba casas e atormenta a comunidade. Tortura um homem para conseguir submeter uma mulher, Dorothea. Como Orlok, o instinto de destruição de Süss seria originado numa transgressão sexual contra uma mulher alemã. Puras de coração, Dorothea e Ellen Hutter submetem-se ao aproveitador, sacrifício que poupará seus amados de um destino cruel. Orlok e Süss, conclui Rentchler, vindos direto do reino das trevas (seja um castelo na Transilvânia no caso do primeiro, ou um gueto judeu em Römerberg no caso do segundo), representam um desafio para a autoconfiança da civilização germânica. A figura de nosferatu é muito similar às representações nazistas das fisionomias dos “judeus degenerados”. Süss, por sua vez, parece a encarnação de um monstro vindo do inconsciente. Rentschler nos faz questionar até que ponto essa associação Orlok-Süss difere da manipulação da massa para amar ou odiar alguém real ou algum personagem fictício nos filmes de Hollywood ou na televisão (seja em novelas ou, principalmente, nos telejornais)? Por que, por exemplo, a mídia só mostra árabes como fanáticos suicidas? (7) Por que, por exemplo, a mídia brasileira tende a mostrar os pobres como bandidos em potencial e/ou pessoas dissimuladas e sempre prontas a destruir a “pureza” das classes altas?

Demonização do Cinema Alemão

De acordo com Siegfried
Kracauer
, mesmo que de
forma metafórica
, o cinema alemão entre 1918 e 1933
deixa explícitas tendências psicológicas que vieram
a produzir Adolf Hitler


Resumindo a tese de Siegfried Kracauer sobre o cinema alemão entre 1918 e 1933, Rentchler afirma que o Nosferatu de Murnau, e o Dr. Mabuse de Fritz Lang, prefiguram Hitler, mas também seriam projeções de estereótipos anti-semitas presentes na cultura alemã (8). Escrevendo em 1947, portanto após o Holocausto da Segunda Guerra Mundial, Kracauer o cinema alemão antecipou o surgimento do nazismo na Alemanha (9). Por outro lado, Thomas Elsaesser salienta que embora a tese de Kracauer tenha lhe valido a fama de teórico da conspiração, em seu livro ele também afirmou que a mídia de massa no sistema capitalista pode ser uma forma de auto-alienação (10).




Alienação por alienação, Hollywood parece ter
aprendido como aplicar
a
lição do Dr. Goebbels




O livro de Kracauer, De Caligari a Hitler. Uma História Psicológica do Cinema Alemão, de qualquer forma constitui, na opinião de Elsaesser, a mais importante tentativa de compreender não os filmes, mas a mentalidade de um período histórico. Kracauer se referia aos filmes mais como uma espécie de “super-texto” (hoje talvez fosse um hipertexto), pela semelhança familiar e repetição de temas (11). Outro livro, A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, escrito por Lotte Eisner, também é citado como uma tentativa de compreender ou mapear o cinema alemão da época da República de Weimar. Enquanto Kracauer tem uma abordagem sociológica, Eisner está mais preocupada com os elementos artísticos. (imagem acima, à direita, Ellen tem episódios de sonambulismo enquanto Hutter está no castelo de Orlok-Nosferatu; abaixo, um relógio no castelo do conde-vampiro)



O filme de
F. W. Murnau
foi importante também
porque lançaria a moda
dos vampiros no cinema
(12)






Notas:

Leia também:

Bernardo Bertolucci e o Parceiro Ideal (I)
Entre o Rosto e o Corpo
Retrato e Auto-Retrato
Fassbinder: Anti-Semita ou Ingênuo?

O Porteiro da Noite e a Cumplicidade da Vítima
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I), (II), (III), (IV), (V)
Yasujiro Ozu e Seus Labirintos

1. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. P. 48.
2. RENTSCHLER, Eric. The Ministry of Illusion. Nazi Cinema and it’s Afterlife. Massachusetts: Harvard University Press, 1996. P. 37.
3. Idem, p. 314n55.
4. Ibidem, pp. 359n39 e 372n80.
5. Ibidem, p. 156.
6. “Goebbels, Mestre da Propaganda” In 4º Poder, série “O Poder e a Mídia”, TVE, canal 2, Rio de Janeiro - Brasil. 05/09/1996. Original BBC.
7. A propósito desse questionamento em relação aos árabes ver SHAHEEN, Jack G. Reel Bad Arabs. How Hollywood Vilifies a People. Massachusetts: Olive Branch Press, 2º ed., 2009.
8. RENTSCHLER, Eric. Op. Cit., p. 361n62.
9. KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler. Uma História Psicológica do Cinema Alemão. Tradução Tereza Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. P. 7.
10. ELSAESSER, Thomas. Weimar Cinema and After. Germany’s Historical Imaginary. New York: Routledge, 2000. P. 34.
11. Idem, p. 30.
12. KRACAUER, Siegfried. Op. Cit., p. 96.

15 de abr. de 2010

Nosferatu, o Retrato de Uma Época (I)




De acordo com
Lotte Eisner
, talvez
nada seja mais
violento
e aterrorizante do que o Nosferatu de Murnau surgindo das trevas




A
Sombra na Luz

Em 1838, Hutter é mandado para longe de sua terra natal, uma cidadezinha alemã na costa do mar Báltico. Deixa sua esposa, já assustada com sonhos premonitórios, para uma longa jornada até a região montanhosa da Europa central. Seu destino é a Transilvânia, cheia de picos nevados, florestas e ciganos temerosos com a “criatura da noite”. Mas Hutter é um homem da cidade e só está preocupado com sua tarefa, levar os papéis de uma propriedade para um potencial comprador. Hutter não consegue quem o leve até o castelo do futuro proprietário de uma casa em frente a sua. Segue a pé, até que uma carruagem vem buscá-lo. (imagem acima, Nosferatu ataca Hutter, mas é barrado pelo amor de Ellen)




Não é muito difícil
encontrar simbolismo da
xenofobia do alemão em
relação ao diferente




Lá chegando, é recebido pelo morador do castelo, o conde Orlok. Excêntrico e notívago, Orlok é na verdade um vampiro, e se mostra muito interessado quando vê o retrato de Ellen, a esposa de Hutter. Logo na primeira noite Hutter é mordido. Já tendo descoberto que o proprietário não é um ser comum, Hutter será abandonado no castelo enquanto Drácula segue para seu destino: a casa em frente à do casal, onde a esposa de Hutter estará só. Enquanto Hutter e Drácula estão a caminho, Ellen tem pesadelos e episódios de sonambulismo.(imagem acima, à esquerda, embora Nosferatu já tenha mordido Hutter na noite da chagada deste, neste momento o vampiro recua de seu segundo ataque. Delirando em seu leito, Ellen segue seu amado e o protege com seu sentimento puro; acima, à direita, Ellen espera seu marido, mas quem vem pelo mar é Nosferatu, Hutter vem por terra)




A sombra que insiste

em resistir na luz é como
uma noite ambulante (1)





Quando o vampiro se estabelece na cidade, a peste se espalha e as mortes se multiplicam. Hutter reencontra sua amada, mas para ele já é tarde demais. Ela sabe o que fazer, deve atrair o vampiro e deixa-lo tão absorto com o sangue dela que se esquecerá de voltar para o caixão antes do raiar do dia. Ellen dá a vida para destruir o vampiro, como esperado ele não percebe o dia se aproximando. Quando escuta o cantar do galo, o vampiro finalmente tira seus dentes do pescoço de Ellen. Tenta fugir, mas é atravessa um raio de sol. A fumaça não deixa dúvidas sobre o que aconteceu. (imagem acima, à direita, o conde Orlok/Nosferatu fica estasiado com a fotografia da esposa de Hutter: "sua esposa tem um belo pescoço..."; imagem abaixo, à esquerda, Hutter já percebeu que os rumores dos ciganos da região sobre lobisomens podem ser verdade, em poucos instantes ele encontrará Nosferatu no caixão. A essa altura podemos ver Hutter, que já havia sido mordido pelo vampiro e selado seu destino, através da silhueta de uma porta que mais parece um caixão)

O Universo da Sombra



O horror é um
componente essencial da
alma germânica


Lotte Eisner (2)





O título original do filme é Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror (Nosferatu, ein Symphonie des Grauens, 1922). Na longa tradição de adulteração dos títulos originais (sem mencionar os cortes por razões “mercadológicas”), Nosferatu, como o filme é conhecido em alguns países, já no título afasta a obra de suas profundas referências na cultura alemã. Em Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror, o cineasta Friedrich Wilhelm Murnau, que L considerava “o maior diretor que os alemães jamais tiveram”, soube captar essa alma como ninguém. (imagem ao lado, como na imagem anterior de Hutter, Nosferatu também é mostrado encaixado nessa moldura em que se transformaram as portas; Hutter e Nosferatu, agora, pertencem ao mesmo reino)

Ao entrar
no castelo de Orlok,
a porta que se fecha por
mãos invisíveis atrás de
Hutter nos avisa que ele
está preso para sempre
na maldição (3)


Exemplos disso encontramos, Eisner sugere, quando a carruagem fantasma leva Hutter ao castelo do vampiro e quando este empilha seus caixões – cenas feitas em velocidade mais rápida; talvez sugerindo a aceleração do tempo num sentido não humano. Ou ainda, quando a carruagem, ainda levando Hutter, é aparece em negativo – as árvores se tornam espectros brancos (acima). Se isoladamente não chamam a atenção, em conjunto, marcam a trilha do espírito sombrio por trás das estórias de horror que povoam (povoavam?) a vida dos alemães desde a infância. Comentando a respeito do clima na Alemanha dos anos que sucederam os horrores e a derrota do país na Primeira Guerra Mundial, Fritz Lang caracteriza uma visão expressionista do mundo:

“Nessa atmosfera, onde o Diabo reconhece os seus, prevaleceu uma inclinação sempre presente pelo fantástico, o misticismo, o macabro, pelo terror agonizante das trevas. O cinema alemão refletiu essa época em filmes sombrios e ameaçadores. Os residentes do estranho hospício e seu sinistro diretor, em [O Gabinete do Doutor Caligari, Das Kabinett des Dr. Caligari, direção Robert Wiener, 1919], o vampiro portador da morte de [Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror], ou O Golem [(Der Golem, direção Paul Wegener, versão de 1920)], só poderiam ter sido inventados nesses anos” (4) (imagem ao lado, os cavalos presentem a presença dos espíritos malignos que nosferatu chamou de "as crianças da noite")

Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror está repleto de imagens de nuvens soturnas, colinas áridas, campos vazios, prados onde cavalos galopam dando a sensação de uma liberdade nunca alcançada pelos humanos. Os ventos e as ondas do mar Báltico anunciam a chegada do vampiro e a desgraça iminente (última imagem do artigo). Murnau filmou ao ar livre, ao contrário do que se fazia durante aquela época na Alemanha, que por força da situação catastrófica pós-Primeira Guerra Mundial, filmava preferencialmente em cenário de estúdio. (imagem ao lado, as horrendas montanhas da Transilvânia parecem feitas especialmente para os vampiros que deram fama mundial ao lugar; o avermelhado embra o sangue, a vida dos mortos-vivos)


“(...) Nunca mais um expressionismo tão
perfeito será atingido, e
s
ua estilização foi obtida
sem que se recorresse
ao menor artifício
(...)” (5)



A arquitetura é tipicamente nórdica, não havendo necessidade de criar uma atmosfera artificialmente, pois ela lá já está. Ruelas e praças da cidade alemã que se encaixam perfeitamente no aspecto sombrio do castelo do vampiro há muitos e muitos quilômetros de distância – especificamente, na região da Romênia chamada Transilvânia. Quando só resta o capitão do navio, nem vemos nosferatu acatá-lo, nos será suficiente olhar para a expressão no rosto do navegante, que olha seu fim se aproximar. A cena em que nosferatu sai do porão do navio, já navegando “sozinho”, e para no canal que atravessa a cidade, é carregada de um horror extremo. (imagem ao lado, no navio a caminho de Wisborg, o capitão é a última vítma do invencível nosferatu)

O Fantasmagórico Burguês


“O rosto sem pelos
, o crânio calvo, horrivelmente nu e
quase indecente
de nosferatu, por muito tempo obsedaram
os cineastas alemães”
(6)



Referindo-se ao cinema mudo alemão, Eisner afirmar que havia um gosto por personagens lúgubres. Sinistros seres, aparentados às criaturas dos autores do romantismo, que se no começo da trama são bons, se revelarão afinal malvados demônios. O desdobramento demoníaco está presente em muitos filmes alemães deste período. Caligari, do O Gabinete do Dr. Caligari, é ao mesmo tempo o eminente médico e o charlatão que controla um sonâmbulo da feira. Em A Morte Cansada (Der Müde Tod, direção Fritz Lang, 1921), a personagem da Morte é, ao mesmo tempo, um simples viajante em busca de um terreno à venda. Encontramos o gosto mórbido pelo desdobramento de personagens em seus opostos nos dois filmes de Lang com o Dr. Mabuse, Dr. Mabuse, o Jogador (Dr. Mabuse, der Spieler, 1922), e O Testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse, 1933), atenuado-se, em M O Vampiro de Dusseldorf (M, direção de Lang, 1931). Nosferatu, o vampiro, morador de um castelo feudal, chama um corretor de imóveis para efetivar a compra de um imóvel (7).


“O diabo,
diz Hoffmann, salpica
de espinhos e ganchos as
paredes, os berços, as sebes de
roseiras, de modo a ‘deixarmos
sempre, ao passar, algumas
lascas de nossa cara
pessoa’”(8)



Entretanto, nem tudo foi obra de Murnau. Albin Grau, desenhista e decorador, trabalhou para o cineasta em Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror. De acordo com Thomas Elsaesser, é a Grau que devemos o aspecto e o espírito do filme. Notadamente no que concerne a decoração, o vestuário, os desenhos e o material promocional. Diz a lenda que a idéia para o filme teve origem numa estória de vampiro que contaram para Grau quando esteve na Sérvia durante a Primeira Guerra Mundial. Discípulo do ocultista Aleister Crowley, que conhecia Bram Stoker, o autor de Drácula – cujo livro foi adaptado por Murnau para seu Nosferatu, o que lhe deu uma grande dor de cabeça, pois houve uma batalha judicial e o cineasta perdeu os direitos sobre seu filme. Grau impregnou o filme com nuances místicas e simbólicas. Como, por exemplo, a escrita estranha nas cartas e contratos trocados entre o conde Orlok e Knock, o patrão de Hutter e discípulo do vampiro – noutras versões de Nosferatu, Knock também é conhecido como Reinfield. Grau também foi em grande parte responsável pela aparência física esquálida e seca de Orlok (9).



Nosferatu
era um vampiro
anoréxico muito
longe da estética
de Ho
llywood



O tema do duplo (Doppelgänger), ou da alma dupla, percorre esses personagens alemães como um traço básico compartilhado por todos. Detalhe curioso, Eisner nota que para o alemão o lado demoníaco de um personagem comporta necessariamente um contraponto burguês. No mundo ambíguo do cinema mudo alemão, conclui Eisner, ninguém está seguro de sua identidade, podendo também perdê-la no caminho (imagem acima, à esquerda, nosferatu recebe Hutter em seu castelo; imagem abaixo, as ondas antecipam a chegada do vampiro na pequena cidade de Wisborg). O próprio figurino, que sempre fora uma espécie de fator dramático para o cinema alemão, também irá dar sua contribuição ao caráter ambíguo das personagens principais. Eisner ressalta que autores românticos como Novalis e Jean Paul anteciparam o delírio visual e o estado de efervescência ininterrupto dos expressionistas:


“Será presunção
declarar que o cinema alemão
não passa de um prolongamento
do romantismo, e que a técnica moderna
quase não faz outra coisa senão
emprestar formas visíveis
às imaginações
românticas?”
(10)


Notas:

Leia também:

Conexão Nibelungos: O Caso Fritz Lang (I), (II), (Epílogo)
Yasujiro Ozu e o Conflito de Gerações
Geografia das Ausências em Yasujiro Ozu
Yasujiro Ozu e Suas Ironias
Hiroshima Meu Amor (I), (II), (final)
Wim Wenders e a Humanidade Perdida (final)
O Corpo Expressionista

1. EISNER, Lotte H.
A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. P. 48.
2. Idem, pp. 71-82.
3. Ibidem, p. 143.
4. Citado por Lotte Eisner em seu livro Fritz Lang. In Le Cinéma Expressioniste Allemand. Splendeurs d’Une Collection. Ombres et Lumières Avant la Fin du Monde. Paris: Éditions de La Martinière, 2006. P. 208. Catálogo de Exposição.
5. EISNER, Lotte H. Op. Cit., p. 76.
6. Idem, p. 80.
7. Ibidem, pp. 78 e 80.
8. Ibidem, p. 80n3. Eisner se refere a Ernest Theodor Amadeus (originalmente Wilhelm) Hoffmann (1776-1822). Músico, pintor e escritor, ele é mais lembrado por seus escritos, que se tornaram exemplos do estilo romântico tardio – com obras voltadas para as questões obscuras da alma.
9. ELSAESSER, Thomas. Albin Grau. In Le Cinéma Expressioniste Allemand. Splendeurs d’Une Collection. Ombres et Lumières Avant la Fin du Monde. Paris: Éditions de La Martinière, 2006. Pp. 216-7. Catálogo de Exposição.
10. EISNER, Lotte. Op. Cit., p. 82.

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