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Roberto Acioli de Oliveira

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24 de jan. de 2009

Hiroshima Meu Amor (final)




“Até   cortar   os
pr
óprios defeitos pode
ser   perigoso.  Nunca se
sabe   qual   é  o  defeito
que    sust
enta    nosso
edifício
inteiro

Clarice Lispector
 

Despertar 
 
Em vários momentos podem-se notar algumas seqüências de imagens se fundindo umas nas outras. O detalhe é que são as imagens das lembranças do passado da francesa que se insinuam nas imagens do presente. Lagier chama atenção para tais momentos, onde a imbricação entre passado e presente encontra sua representação cinematográfica. No caso da primeira lembrança de Nevers, entretanto, a irrupção do passado é abrupta: a mulher olha para o amante japonês enquanto ele dorme, da imagem de sua mão a francesa parte para a mão do antigo namorado alemão em Nevers. Mas as imagens se sucedem em cortes tradicionais. (imagem acima, segundos após levar a bofetada)

Por outro lado, mais tarde no apartamento do japonês as lembranças dela (o soldado alemão andando pela rua, os dois na floresta, se beijando na construção em ruínas) também se encadeiam por cortes, mas desaparecem fundindo-se com as imagens do tempo presente (imagem abaixo). Se as lembranças surgem violentamente, desaparecem lentamente. De acordo com Lagier, “elas querem ficar”. “Todo o dilema temporal de Hiroshima Meu Amor está nesse combate de imagens. As imagens do passado se prendem mais tempo do que o previsto, mas, ao mesmo tempo, elas são inexoravelmente recobertas pelas novas imagens. O presente é devorado pelo passado e vice-versa” (1).

Ainda de acordo com Lagier, a cena do bar é o ponto alto do trabalho da memória. A mulher vai contando sua vida em Nevers, suas revelações são acompanhadas pela bebida que o japonês a faz beber. De repente, ele dá uma bofetada nela (imagem no início do artigo) que funciona como um despertar brutal para a realidade e o presente. Afogada em suas lembranças, a francesa esteve por muito tempo no fundo do rio Loire em Nevers. Ela pode agora voltar à superfície e agarrar-se a um porto. Ela fez voltar seu amor antigo perdido em sua memória. Entretanto, tal como Eurídice, ele deve desaparecer uma segunda vez, numa segunda morte. Começa para ela o trabalho do esquecimento (2).

Tomando Consciência do Esquecimento

“É preciso evitar pensar nas dificuldades
que  o  mundo  nos   apresenta   algumas
vezes.   Senão,    ele    seria   irrespirável

A mulher para seu amante em Hiroshima Meu Amor

 


Lagier tem outra metáfora para Hiroshima Meu Amor, o filme opera como as marés. O passado aflora no presente e depois desaparece. Existe um transbordamento de lembranças de um personagem para outro. As ruas, tanto de Hiroshima quanto de Nevers (embora essas apareçam menos), vão se esvaziando até se tornarem desencarnadas, sem a presença de figuras humanas. Se durante o filme acompanhamos a francesa num porão em Nevers, em seguida na mesa no fundo de um bar em Hiroshima, na parte final a encontramos andando na superfície do tempo (pela cidade japonesa). Condenada à errância, o tempo não é mais de descida às profundezas, mas de volta à superfície (3).

Contudo, como Hiroshima, o porto seguro de pedra na margem do rio pode também virar pó. A matéria, como a memória, pode se desfazer. É assim que as fusões de imagens do passado e do presente progressivamente desaparecem e a montagem volta a ser tradicional. “Como os personagens, as imagens não tem mais onde se ‘agarrar’” (4). De volta ao hotel, a francesa parece grogue, cambaleia pelos corredores, encosta-se nas paredes em busca de um lugar para se agarrar, mas seu corpo desliza por elas (acima e ao lado). Incapaz de ficar na margem ou de mergulhar novamente nas profundezas do rio do tempo e da memória, a mulher flutua na superfície ao sabor da correnteza.

Voltar a Enxergar 

A mulher deverá fazer ressurgirem suas lembranças para então afastar-se delas. Quer dizer, nas palavras de Lagier, tomar consciência do esquecimento. Hiroshima Meu Amor descreve o afastamento progressivo entre dois corpos. E o que querem dizer todos aqueles closes das mãos da mulher? Segundo Lagier, não se trata de ler o corpo de seu amante com suas mãos, o que poderia parecer com todos aqueles toques e unhadas da mulher em seu amante, mas de passar a vê-lo à distância. Reaprender a ver o mundo com seus olhos, foi o que a jovem amante francesa conseguiu realizar uma vez em Nevers aos 20 anos de idade durante a guerra, quando amou um soldado inimigo.

“A última imagem de Hiroshima Meu Amor no quarto de hotel é reveladora dessa metamorfose (imagem acima). Unhas voltadas para dentro, [a mulher] parece ter encontrado a visão. Os olhos rasos d’água, ela olha seu amante como se fosse a última vez. Tal como Orfeu se voltando para olhar seu amor no limiar do mundo dos vivos, [a mulher] fita seus dois amantes, alemão e japonês, lhes atravessa com o olhar, antes de vê-los desaparecer nos meandros do tempo” (5)

Notas:

1. LAGIER, Luc. Hiroshima Mon Amour. Paris: Cahiers du Cinéma, 2007. P. 46.
2. Idem, p. 47.
3. Ibidem, p. 50.
4. Ibidem, p. 51.
5. Ibidem, p. 55. 


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