“O meu mais fervoroso desejo
sempre foi o de conseguir
me expressar nos meus filmes,
de dizer tudo com absoluta
sinceridade, sem impor aos outros
os meus pontos de vista (...) ”
Andrei Tarkovski,
Esculpir o Tempo
Imagem e Texto
A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo, 1962) é a estória de uma sentinela de 12 anos de idade na ex-União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, o filme vai muito além do que poderia ser um tema clássico dos filmes do realismo socialista (um jovem que sacrifica sua vida a serviço da Mãe Pátria). Através de alguns sonhos de Ivan que invadem a narrativa, um complexo sistema de símbolos e imagens representa as lembranças nostálgicas em relação a sua mãe e ao passado de criança que ele não tem mais. (Todas as imagens são de A Infância de Ivan)
Em seu primeiro longa-metragem, o cineasta soviético Andrei Tarkovski (1932-1986) adaptou para as telas Ivan, conto do compatriota Vladimir Bogomolov, que participou na montagem do roteiro dessa transferência para as telas de mais uma obra nascida como texto escrito. O filme foi premiado no Festival de Cinema de Veneza, mas o próprio Tarkovski deixa claras suas reservas em relação a esse tipo de empreitada: “devo dizer que nem toda a prosa pode ser transferida para a tela” (1). Filmar certos livros, afirma Tarkovski, é algo que só poderia ocorrer a alguém que sinta um grande desprezo tanto pelo cinema quanto pela prosa de boa qualidade.
Tarkovski defende sua adaptação do conto de Bogomolov dizendo que Ivan é parte de um grupo de obras em prosa que se distinguem por suas idéias, clareza, solidez de estrutura e pela originalidade do tema. “Esse gênero de literatura”, conclui o cineasta, “não parece preocupar-se com a elaboração estética das idéias que contém”. Três coisas chamaram atenção de Tarkovski no conto de Bogomolov. Em primeiro lugar, tornamo-nos conscientes da monstruosidade da guerra; em segundo lugar, não há descrições de atos de bravura ou grandes cenas de batalha, tudo se passa no intervalo entre duas missões; em terceiro lugar, a personalidade do protagonista, o jovem Ivan.
Tarkovski defende sua adaptação do conto de Bogomolov dizendo que Ivan é parte de um grupo de obras em prosa que se distinguem por suas idéias, clareza, solidez de estrutura e pela originalidade do tema. “Esse gênero de literatura”, conclui o cineasta, “não parece preocupar-se com a elaboração estética das idéias que contém”. Três coisas chamaram atenção de Tarkovski no conto de Bogomolov. Em primeiro lugar, tornamo-nos conscientes da monstruosidade da guerra; em segundo lugar, não há descrições de atos de bravura ou grandes cenas de batalha, tudo se passa no intervalo entre duas missões; em terceiro lugar, a personalidade do protagonista, o jovem Ivan.
De acordo com Tarkovski, o conto tinha um potencial cinematográfico oculto. O texto recria a atmosfera da guerra, o nervosismo e a tensão que não aparecem na superfície, mas que estão lá, nos subterrâneos. Ivan perde sua infância nos campos de batalha, sua personalidade foi deslocada de seu eixo pela guerra. Esse estado de tensão em Ivan irrompe em paixões que se manifestam de forma mais intensa do que num processo gradual de evolução da personalidade. É por esta razão, lembra Tarkovski, que ele gosta tanto de Dostoyevski: “para mim, os personagens mais interessantes são aqueles exteriormente estáticos, mas interiormente cheios da energia de uma paixão avassaladora” (2).
Poesia e Cinema
Poesia e Cinema
“Quando falo de poesia, não penso
nela como gênero. A poesia é uma
consciência do mundo, uma forma
específica de relacionamento
com a realidade.”
Andrei Tarkovski,
Esculpir o Tempo, p. 18.
nela como gênero. A poesia é uma
consciência do mundo, uma forma
específica de relacionamento
com a realidade.”
Andrei Tarkovski,
Esculpir o Tempo, p. 18.
Mas o texto de Bogomolov era escrito como um relatório, uma exatidão de registro da vida militar típico de uma testemunha ocular. Tarkovski não poderia, porque não era seu próprio estilo, transpor esse estilo para o cinema. O cineasta viu o conto apenas como um ponto de partida, cuja essência seria reinterpretada à luz de sua própria visão pessoal. O que interessa Tarkovski no cinema são as articulações poéticas, a lógica da poesia. Em sua opinião, o cinema é a mais verdadeira e poética das artes. Essa lógica poética está em oposição à dramaturgia tradicional, que prevê um desenvolvimento linear e lógico do enredo. Esse exagero de correção na conexão entre os acontecimentos acaba forçando-os a obedecer a uma determinada noção abstrata de ordem, até que tudo acabe numa interpretação simplista da existência.
“O material cinematográfico, porém, pode ser combinado de outra forma, cuja característica principal é permitir que se exponha a lógica do pensamento de uma pessoa. Este é o fundamento lógico que irá determinar a seqüência dos acontecimentos e a montagem, que os transforma num todo. A origem e o desenvolvimento do pensamento estão sujeitos a leis próprias e às vezes exigem formas de expressão muito diferentes dos padrões de especulação lógica. Na minha opinião, o raciocínio poético está mais próximo das leis através das quais se desenvolve o pensamento e, portanto, mais próximo da vida, do que a lógica da dramaturgia tradicional. E, no entanto, os métodos do drama tradicional são vistos como os únicos modelos possíveis, e são eles que, há muitos anos, determinam a forma de expressão do conflito dramático” (3)
De acordo com Tarkovski, as associações poéticas intensificam a emoção e tornam o espectador mais ativo. As conclusões e antecipações fornecidas pelo enredo, assim como indicações do autor, são abandonadas em favor de um processo de descoberta da vida. Nas palavras de Tarkovski, “a lógica comum da seqüência linear assemelha-se de modo desconfortável à demonstração de um teorema”. Devem-se privilegiar as ligações associativas. Ao invés de apresentar ao espectador uma conclusão que não exija nenhum esforço, um filme deve permitir que a platéia fique com a possibilidade de imaginar aquilo que faltou sair da boca dos personagens. Colocar os espectadores no mesmo patamar do artista significa dar a eles a possibilidade de reconstruir o todo através de suas partes e a refletir, indo além daquilo que foi explicitamente dito pelos personagens.
A Autonomia do Cinema
A Autonomia do Cinema
Segundo Tarkovski, o cinema irá se distanciar das outras formas de arte. Mas o processo é lento, o que explicaria a tendência dos cineastas a se basearem nos princípios próprios a outras formas de arte. Pouco a pouco, sugere Tarkovski, tais princípios passaram a representar um obstáculo para o cinema, impedindo-o de atingir sua especificidade própria: “(...) o cinema perde sua capacidade de encarnar a realidade diretamente e por seus próprios meios, sem ter que recorrer à literatura, à pintura ou ao teatro para transformar a vida” (4). O que se pode perceber, afirma Tarkovski, quando se tenta transpor essa ou aquela pintura para o cinema.
Trata-se de uma questão de ser fiel à verdade dos personagens e das circunstâncias, e não de apegar-se ao apelo superficial de uma interpretação por “imagens”. Segundo Tarkovski, a imagem artística fundamenta-se numa ligação entre idéia e forma. Qualquer desequilíbrio aqui impedirá uma imagem artística de se formar, e a obra permanecerá alheia ao universo da arte. Também segundo Tarkovski, a percepção do artista é como um prisma que decompõe a realidade (5). No caso de A Infância de Ivan, Tarkovski ultrapassou as descrições de lugares e paisagens feitas por Bogomolov. Exaltando um cinema de autor, o cineasta partiu das próprias paisagens íntimas, evocando recordações precisas e associações poéticas.
Mais especificamente, a floresta de bétulas, a camuflagem de ramos de bétula na enfermaria, a paisagem no segundo plano do último sonho e a floresta morta e inundada. As quatro seqüências de sonhos de Ivan também são fruto de associações específicas. Tarkovski chama atenção para o primeiro sonho, que é todo dele, até a fala: ”mamãe, veja ali um cuco!” O cineasta contou que esta é uma de suas primeiras recordações da infância, aos quatro anos de idade. Mas antes de tornar-se o fundamento de uma reelaboração artística do passado, a memória deve ser trabalhada. Nossa lembrança da casa onde nascemos está muito distante da visão concreta da casa real, se a visitamos depois de muitos anos.
“Em geral, a poesia da memória é destruída pela confrontação com aquilo que lhe deu origem” (6). Foi então que Tarkovski decidiu que A Infância de Ivan seria um filme sobre a história dos pensamentos, lembranças e sonhos de Ivan. Um retrato da personalidade de Ivan, a revelação do seu mundo interior. Essa proposta tornou-se, em seguida, o ponto de partida para outro filme do cineasta, O Espelho (Zerkalo, 1974). Em A Infância de Ivan, Tarkovski teve que decidir qual seria a melhor forma de exprimir a poesia especifica do sonho. Por exemplo, no terceiro sonho foram utilizadas imagens em negativo (imagens acima, à esquerda, e ao lado). Mas Tarkovski ainda não está satisfeito, pois isso só conseguia criar uma atmosfera irreal.
Para o conteúdo do sonho, sua lógica, Tarkovski recorreu à suas lembranças: a relva úmida, o caminhão carregado de maças, os cavalos molhados pela chuva, a água de seus corpos evaporando-se ao sol. “Todo esse material veio da vida para o filme diretamente, e não pela mediação de artes visuais contíguas”.
“Há alguns aspectos da vida humana que só podem ser reproduzidos fielmente pela poesia. Mas é exatamente aí que muitos diretores costumam recorrer a truques convencionais, em vez de fazerem uso da lógica poética. Estou pensando no ilusionismo e nos efeitos extraordinários usados em sonhos, lembranças e fantasias. É por demais comum no cinema que os sonhos deixem de ser um fenômeno concreto da existência e se transformem numa coleção de antiquados truques cinematográficos” (7)
Artigo publicado na revista eletrônica dEsEnrEdoS, nº4, 2010
Leia também:
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Notas:
1. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 11.
2. Idem, p. 14.
3. Ibidem, p. 17.
4. Ibidem, p. 20.
5. Ibidem, p. 26.
6. Ibidem, p. 30. A ênfase é minha.
7. Ibidem, p. 31.