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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

30 de mai. de 2019

O Enigma de Kaspar Hauser


“Cada um por si e Deus contra todos”,  título  original do filme de
 Werner Herzog, foi retirado da versão para cinema de Macunaíma, 
realizada  pelo  cineasta  brasileiro  Joaquim   Pedro  de  Andrade


Perdido Encontrado

Certa manhã de 1828 na cidade alemã de Nuremberg, a comunidade acorda e se depara com um rapaz imóvel e em silêncio na rua. Numa das mãos, um livro de orações, na outra, uma carta endereçada ao capitão da cavalaria. Aparentando estar entre os 16 e 17 anos de idade, ele não explicava de onde vinha porque não sabia falar e nem mesmo caminhar. Só depois de muito tempo revelou que até aquela data viveu amarrado num porão escuro sem contato com ninguém e muito menos com o mundo exterior. Aliás, ele nem sabia da existência de outros seres humanos, já que sua comida lhe era trazida enquanto dormia. O homem que o deixou naquele dia em Nuremberg, a respeito de quem o rapaz nada sabia, pouco antes de libertá-lo o ensinou a rabiscar o nome “Kaspar Hauser” e a pronunciar uma frase (“Quero ser cavaleiro tal como meu pai foi”).
Inicialmente considerado um impostor, foi aprisionado numa torre, até que o professor Daumer o levou para sua casa, dando início a um processo de educação para Kaspar, através de lições de leitura, escrita, lógica, moral. Apesar de conseguir alfabetizá-lo minimamente, o doutor tinha dificuldade em fazer aquele elo perdido ambulante compreender elementos básicos da lógica ocidental, de nossa maneira de enxergar o mundo, talvez especialmente os dogmas religiosos – o mesmo parecia ser verdade para Daumer em relação à sua incompreensão da lógica de Kaspar. A complexa tentativa durou pouco, Kaspar foi misteriosamente assassinado em 1833, cinco anos após ter sido deixado em Nuremberg – como resultado de uma segunda tentativa de agressão por um homem desconhecido. Até houve não se sabe quem o deixou na cidade, quem o matou ou sua origem. Alguns sugerem que Kaspar tenha sido um filho ilegítimo de nobres.

Anselm von Feuerbach e o Elemento Gnóstico


A  crítica  praticamente  ignorou  a  presença  do  texto  de
Feuerbach no filme, preferindo seguir Herzog, que afirmou não se
interessar  pelo  que  havia  sido  escrito  sobre  Kaspar    (1)


Há muito tempo que a saga de Kaspar é contada, em muitas versões. Do ponto de vista do cinema, o filme realizado por Werner Herzog, O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle, 1974), foi precedido em alguns anos pelo trabalho do francês François Truffaut, O Garoto Selvagem (L’Enfant Sauvage, 1970). Além dos poucos escritos do próprio Kaspar (um poema e um esboço de autobiografia) (2), um dos únicos documentos que Herzog admitiu ter consultado a respeito do tema foi a versão escrita por Anselm von Feuerbach em 1832, Kaspar Hauser – Exemplo de um Crime Contra a Vida Espiritual do Homem (Beispiel eines Verbrechens am Seelenleben des Menschen) – título que se encaixa no próprio interesse de Herzog em apontar a violência inerente à civilização ocidental (3). Pai do filósofo Ludwig Feuerbach e jurista interessado no caso de Kaspar, que até hospedou sua casa, foi responsável pela elaboração de leis contra a tortura e o sistema feudal (introduziu o Código de Napoleão na Alemanha), Feuerbach percebeu que a história sintetizava a passagem do obscurantismo medieval às luzes burguesas (4). 

“(...) O que mais parece ter atraído Herzog é essa espécie de ironia do destino. Tanto o homem obscurantista, quanto a nova burguesia esclarecida, que tencionavam salvar Kaspar (e ele aparece aqui, não como ser individual, mas como uma figura exemplar da raça humana), acabaram por levá-lo à morte. A luz que resgata também condena, e mais uma vez o homem não consegue escapar à implacável cadeia do destino que persegue os protagonistas herzoguianos. No final das contas, é isto que está implícito no título original do filme, “Cada um por si e Deus contra todos” (Jeder für sich und Gott gegen alle): a solidão e o abandono do homem diante de um mundo indiferente e invencível. Herzog se apega ao ato falho, ao erro inocente mas irremissível que faz com que o destino se abata sobre o ser humano com força destruidora (...)” (5)

Citando um texto de 1979 escrito por Emmanuel Carrère a respeito de Woyzeck, Lúcia Nagib observa como várias relações estabelecidas entre a obra de Herzog e teorias filosóficas e religiosas procuram dar conta de como ele compreendeu o texto de Feuerbach e o quanto isso configurou os heróis de seus filmes. Considerando especialmente Kaspar Hauser, Carrère compara temas do diretor com idéias gnósticas em relação à Criação e os malefícios que se originaram aí, abatendo-se sobre o homem de forma implacável por culpa de um impostor que se fez passar pelo verdadeiro Deus. Para Carrère, este contexto inspira a construção de muitos heróis de Herzog, sempre atravessados pelo sentimento gnóstico de estarem no mundo, mas não serem do mundo. Na identificação desta falta que expõe o interior romântico da realidade, conclui Nagib, Herzog descobre um sinal de vida, apontando a origem ao mesmo tempo divina e profana, ilusória e real, do homem. 
É um filme a respeito da linguagem, a descoberta e a compreensão do mundo, sobre ver o mundo pela primeira vez, explicou Herzog durante entrevista na Itália, esclarecendo também uma particularidade da pronúncia em Kaspar Hauser que guarda relação com Bruno S., que atuou como Kaspar:

“(...) Claro que aprendi muito quando fiz O País do Silêncio e da Escuridão (Land des Schweigens und der Dunkelheit, 1971) como Fini Straubinger [mulher surda e cega], que não ouvia uma língua desde os 11 anos, ou isso. Quando rodamos o filme tinha uns 50 anos e tentava articular muito claramente a língua. Quando começamos a rodagem de O Enigma de Kaspar Hauser, o Bruno falava num dialeto berlinense muito forte. Disse-lhe que não devia usar o seu dialeto e, em vez disso, devia falar no alemão mais erudito possível, mas foi-lhe sempre difícil porque não estava habituado a exprimir-se em alemão. É um daqueles filmes que nunca deveria ser dobrado [dublado], temos de ouvir a voz dele no original. Sei que as pessoas que vão ao cinema em Itália não gostam de ler legendas, que detestam legendas, não estão habituadas a elas. Mas neste caso, e também em O País do Silêncio e da Escuridão e Os Anões Também Começaram Pequenos (Auch Zwerge haben klein angefangen, 1970), a dobragem estraga tudo” (6)

As Visões de Kaspar


Impulso que de certa forma origina o cinema de Herzog: mostrar a
experiência  da  primeira  visão,  do contato inicial com o mundo (7)


Herzog não assinou o Manifesto de Oberhausen, marco inicial do assim chamado Cinema Novo Alemão (cuja duração, grosso modo, se estende entre as décadas de 1960 e 1980 do século passado), atitude que vai de par sua rejeição em relação às escolas de cinema (8). Não obstante, boa parte de sua obra é identificada por muitos como um marco deste movimento. Em 1964 Herzog tinha dezoito anos quando assistiu em Munique a uma retrospectiva de cineastas experimentais nova-iorquinos (P. Adams Sitney, Jonas Mekas, Jack Smith, Kenneth Anger, e especialmente Stam Brakhage). Maravilhado com o que viu, escreve um ensaio, Rebellem in Amerika: Zu Film des New American Cinema (Filmstudio, 43), onde exalta aquela estética que rejeita as categorias estéticas da literatura e do teatro, menos dependente da construção narrativa e favorecendo meios de expressão puramente cinematográficos: movimento no interior da imagem, edição entre imagens e a justaposição entre efeitos acústicos e imagem. 

“(...) Está aqui em causa a magnífica ambição de Herzog, a de querer ver o primeiro olhar. Lembra-nos Kaspar Hauser, o seu nascimento adulto, o seu modo de abrir os olhos ao mundo. ‘O filme dá-me uma excelente ocasião para demonstrar uma espécie de primeira visão das coisas. Quero mostrar com o que é que se pode parecer uma árvore quando a vermos pela primeira vez na vida. Como se fosse a primeira vez que abrissem os olhos para ver como é feito o mundo’” (9)

Herzog valorizou o fato de que aqueles cineastas não precisavam de um estúdio, atores e equipe numerosa – vários desses filmes foram realizados por apenas uma pessoa, subjetivos ao extremo, poéticos e sem fins lucrativos. Rejeitando o mundo racional e muito intelectualizado dos domínios da linguagem e dos sistemas linguísticos, estes cineastas apontam a possibilidade de experimentar as imagens diretamente, sem o filtro da linguagem. Stefanie Harris lembra que o prazer de Herzog com essas obras, e seu desdém pelos críticos de cinema comercial que os desvalorizavam, toma emprestados termos que Brakhage utiliza para descrever a possibilidade de criar imagens cinematográficas anteriores ao paradigma linguístico, ou apesar dele: 

“Imagine um mundo antes de ‘no começo foi a palavra’. (...) Mas ninguém pode voltar lá, nem mesmo na imaginação. Depois da perda da inocência, apenas o conhecimento mais avançado pode equilibrar o pivot oscilante. Mesmo assim, sugiro que existe uma busca de conhecimento estranha à linguagem e fundada na comunicação visual, demandando o desenvolvimento da mente ótica, e dependente da percepção no sentido mais profundo e original da palavra. (...) Passada a infância, não há necessidade de neutralizar o olho da mente. Seja como for, atualmente o desenvolvimento da compreensão visual foi quase universalmente abandonado” (10)

A relação de Kaspar Hauser com o mundo sensível se encaixa como uma luva nessa experiência de Herzog com Brakhage. Em sua descrição, Feuerbach aponta a capacidade que Kaspar demonstra para sentir vibrações no ar imperceptíveis aos outros, ou a dor que lhe causava a proximidade com um ímã. Dos vários martírios que o mundo dos homens impõe à Kaspar (a oficialidade burocrática que o julga impostor, o professor de lógica com suas abstrações e os pastores com sua inapreensível ideia de Deus), o pior é a linguagem verbal. Nagib nos lembra de que é para exprimir esse universo de sensações físicas incompatíveis com o discurso verbal que Herzog cria um segundo nível narrativo composto pelas chamadas “visões” (11).



A galinha, principal símbolo da estupidez nos filmes de Herzog, foi
notada  por  Feuerbach como um dos animais que causavam horror a
Kaspar:  ele  tenta  fugir  pela  janela quando uma delas aparece  (12)


Num primeiro momento, explica Nagib, as imagens visionárias aparecem de forma súbita e desordenada (sem apresentar uma relação direta com o enredo). Esse fluxo de imagens surge logo no começo do filme, quando antes dos créditos iniciais somos confrontados com uma sequência de planos acompanhados por uma ária da A Flauta Mágica (Die Zauberflöte, 1791), ópera de Mozart, na opinião de Nagib, não parece indicar nenhuma explicação em sua letra, apenas acentuam o estranhamento: “Esta imagem é magicamente bela/como os olhos jamais viram./Sinto-a, sinto-a/com que nova emoção esta imagem penetra divina/penetra o coração”. 
A introdução do pianista cego foi pura invenção de Herzog, não se encontra nos registros de Feuerbach. Ele desejava incluir no filme o músico Florian Fricke, líder da banda alemã Popol Vuh, autor de várias trilhas musicais para Herzog. Kaspar diz alguma coisa estranha, explicou o cineasta, algo de difícil tradução porque ele não falava o alemão correto, sugerindo que a música estivesse em algum lugar dentro dele: “a música sente-me fundo em meu coração”. Por outro lado, a fuga de um confuso Kaspar para longe do coro da igreja veio diretamente da documentação a respeito do Kaspar real. Pelo menos Herzog afirma que provavelmente isso estava registrado! Kaspar teria dito que o coro gritava e, quando parou, o pastor começou a gritar (13).

“ (...) O Enigma de Kaspar Hauser, onde a música adquire também um sentido diegético, como se fosse uma outra personagem, a única capaz de comunicar diretamente com [Kaspar] (que se deixa abalar pelas notas de um piano e foge, perturbado pelos coros da igreja), e no entanto é capaz de solicitar a atenção do espectador, para contar histórias que não se veem e que vivem dentro das coisas. O início [do filme], portanto, é cheio de otimismo, com a ária de Tamino da Flauta Mágica de Mozart que canta o espanto do ver e do viver: ‘Retrato de encantadora beleza que nenhum olho antes viu’. Uma espécie de promessa de harmonia, que a música procura manter, não obstante as tentativas falhadas do homem. A pouco e pouco, contudo, também a música perde o encanto e a magia daquele início descamba no Réquiem a Cinco Vozes de Orlando di Lasso, com o seu movimento melancólico, antecipador da morte. As imagens mostram-nos Kaspar estendido na relva, acabado de aprender a andar e a pronunciar poucas palavras. Atrás de si, o desconhecido, sentado de costas, fica imóvel durante longos instantes. Não é o início de uma nova vida, mas o primeiro de uma série de sinais contrastantes entre a vida e a morte. Adéquam-se as imagens, que acolhem luzes e sombras, repetidamente e em alternância, e para acompanhar as visões e os sonhos do protagonista Herzog escolhe o Adagio para cordas e orgão de Albinoni, centelha de luz que dá uma cor de sonho à paisagem” (14)

Um segundo grupo de imagens, durante a viagem de Kaspar para Nuremberg, leva Nagib a concluir que se trata daquilo que os olhos dele estão vendo pela primeira vez.
“As visões que vêm a seguir já apresentam características diferentes. Agora elas são fruto das habilidades recém-adquiridas de Kaspar – que aprendeu a falar, a andar, a escrever -, e se seguem, portanto, às suas narrativas de histórias e sonhos, ganhando com isso uma coerência que anteriormente não tinham. Mas então já não mostram mais objetos e paisagens identificáveis no universo ao redor de Kaspar, e sim lugares imaginários como o Cáucaso e o deserto do Saara. Essa alteração, se resulta, por assim dizer, de uma evolução do personagem, que agora consegue estabelecer uma diferença entre a realidade e os frutos exclusivos de sua imaginação, aponta também um perigoso desligamento dessa mesma realidade, da qual ele era antes parte integrante. É este desligamento que o irá conduzir à morte – ‘no topo, estava a morte’, diz Kaspar ao narrar um de seus sonhos” (15)



Embora alguma imagem dos sonhos de Kaspar  venha do filme de
 turista do irmão  de  Herzog na Birmânia, as do Saara e outras são
  de Klaus Wyborny,  cineasta experimental  que Herzog admira (16), 
 um raro reconhecimento para  alguém  que  se  diz  autodidata  (17)

Escrevendo em 1983, Gilles Deleuze (1925-1995) lançou mais alguma luz sobre essa questão das visões. Considere a afirmação: “Enquanto Ideias, o Pequeno e o Grande designam a um só tempo duas formas e duas concepções distintas, que, entretanto, também são capazes de passar uma através da outra. Eles têm ainda um terceiro sentido, designam Visões que, com muito mais razão, merecem o nome de Ideias (...)” (18). 
O filósofo francês considerou Herzog o mais metafísico dos autores de cinema e apontou dois temas obsedantes, que são como motivos visuais e musicais, na obra do cineasta. No primeiro deles, um homem de desmesura ocupa um meio também desmesurado, concebendo uma ação tão grande quanto o meio. Mas a ação não é exigida pela situação, nascendo da cabeça de um iluminado que parece ser o único capaz de se igualar à enormidade do ambiente. Há uma ação sublime que engendra uma ação heróica. Aqui se encaixam Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972), Coração de Cristal (Herz aus Glas, 1976) e Fitzcarraldo (1982). Além das ações heroicas de desvairados evidentes no primeiro e no terceiro, os três apresentam paisagens naturais exuberantes. Desta forma, concluiu Deleuze, o Grande realiza-se enquanto Ideia pura, na dupla natureza das paisagens e das ações (19).
É não segundo tema obsedante que o filósofo encaixa O Enigma de Kaspar Hauser, pois procura nas “pequenas” personagens (os anões, os surdos-cegos, os deficientes, os simples, como Kaspar e, nos filmes seguintes, Stroszek e Woyzeck) os artífices da Ideia. Nas palavras de Deleuze, é o Pequeno que se torna Idéia, realizando-se inicialmente nos anões que “também começaram pequenos” (alusão ao filme de Herzog em 1970, Os Anões Também Começaram Pequenos), para prolongar-se em homens que não deixaram de ser anões. Não são mais “conquistadores do inútil” (alusão à Fitzcarraldo), mas seres inutilizáveis. Dos iluminados aos débeis, idiotas. As paisagens se achatam e desaparecem. Aqui os seres não dispõem mais de Visões, reduzidos ao tato elementar, como os surdos-mudos de No País do Silêncio e da Escuridão e o caminhar incerto de Kaspar no jardim do professor que o “ajuda”.
Referindo-se a si mesmo em seu diário de viagem Caminhando no Gelo, Herzog disse que “aquele que anda não tem defesa” – viajou a pé os mil quilômetros entre Munique e Paris, desejoso que isso salva-se a vida de Lotte Eisner, a quem dedicou Kaspar Hauser

“(...) Herzog – entre outros artistas de seu tempo – se empenhava na redescoberta do indivíduo, na recuperação de uma espontaneidade perdida que substituísse os mecanismos viciosos da percepção. Para isso, era preciso, em primeiro lugar, acreditar nos impulsos físicos – e o livro Caminhando no Gelo, que relata uma caminhada na neve de Munique a Paris, é o melhor exemplo do movimento criador desencadeado pelo esforço físico (...)” (20)

Para Deleuze, citando Henri Bergson (1859- 1941), o que deixou de ser útil, simplesmente começa a ser. O andarilho, ainda de acordo com Deleuze, é aquele que começa a ser e continua sempre pequeno. É como ele vê a caminha de Kaspar, caminhada do inominável. Eis que o Pequeno entra em relação com o Grande, levando as duas Idéias a se comunicarem. 

“(...) O projeto sublime do iluminado malograva na grande forma, e toda sua realidade penetrava no inferno: Aguirre acaba sozinho em sua jangada enviscada, tendo uma ninhada de macacos como a raça que lhe resta; Fitzcarraldo se oferece, como último espetáculo, uma troupe medíocre que canta para um público minguado e para um leitãozinho preto, é o incêndio da fábrica de vidro não tinha outra saída senão os operários catando os cacos. Mas, inversamente, os debilitados que andam na pequena forma têm tais relações de tato com o mundo que inflam e inspiram a própria imagem, como quando a criança surda-muda toca uma árvore, um cacto, ou quanto Woyzeck, no contato com a lenha que está cortando, sente crescerem as potências da Terra. E esta liberação dos valores táteis não se contenta em inspirar a imagem, entreabrindo-a e nela introduzindo amplas visões alucinatórias de voo, de ascensão ou de travessia, como o esquiador vermelho em pleno salto em País do Silêncio e da Escuridão, ou os três grandes sonhos de paisagem em O Enigma de Kaspar Hauser. Portanto, assistimos também aí a um desdobramento análogo ao do sublime: e todo o sublime se encontra do lado do Pequeno. Este, como em Platão, é tão Idéia quanto o Grande. Num sentido como no outro, Herzog terá mostrado que as patas grandes do albatroz e suas grandes asas brancas eram a mesma coisa” (21)

Fontes Literárias Alemãs


Kaspar como a criança abandonada (os alemães) em busca
 de  sua  identidade,  buscando  legitimar  sua  história, 
 apesar do desastre no qual seu pai (Hitler) a lançou?


Depois do Nazismo, uma questão assombrava os alemães: como resgatar a cultura germânica deixando para trás os fantasmas que levaram à construção do mito da raça superior. Com o cinema não foi diferente. Em 1981, Olga Grüber apresentou números impressionantes aos amantes do cinema independente: dos trezentos títulos que podem ser classificados como Cinema Novo Alemão, apenas seis foram sucesso comercial nos cinemas da então Alemanha Ocidental e O Enigma de Kaspar Hauser estava entre eles. Não por acaso, como o filme de Herzog, quatro desses títulos, são baseados em fontes literárias – embora para alguns não explique o sucesso dos filmes para o espectador alemão da época, mais do que o fato de que para fazer sucesso lá fosse preciso deixar-se explorar por distribuidores norte-americanos, que dominavam 85% daquele mercado. Entre 1968 e 1971 surge a primeira onda de filmes literários, que levou a buscar na produção do século XIX uma correspondência com as preocupações da Alemanha do pós-guerra (22).  
De acordo com Thomas Elsaesser, a necessidade de localizar na literatura o ponto de partida para uma tradição de arte radical análoga à situação dos próprios cineastas levou a privilegiarem-se textos onde a subjetividade vivenciada agudamente se confronta com igualmente agudo senso de dever ou transforma-se em tristeza entre burocratas e estruturas de poder hierarquizadas. Visto que o sensibilismo (sensismo, sensualismo) pode ser considerado retorno aos temas românticos do forasteiro adolescente cheio de vida, o subtexto político (e cinematográfico) torna essa figura mais característica, permitindo enxergar tal estratégia dupla por trás de qualquer reprodução ingênua da interioridade germânica. Tudo isso para localizar o cinema, explicou Elsaesser, no contexto da cultura e civilização alemãs, e para renovar as ligações entre teatro, literatura e cinema que existiam no início dos anos 1920 – a última vez que o cinema alemão havia conquistado uma reputação internacional. (imagem abaixo, para um dos sonhos de Kaspar Herzog utilizou imagens registradas por seu irmão durante uma viagem turística à Birmânia, atual Myanmar)



“Protótipo do cineasta solitário  (não é por acaso que o seu primeiro
gesto público foi a recusa em subscrever o Manifesto de Oberhausen
que, em 1962, assinalou o nascimento do Novo Cinema Alemão)  (23)


Para Elsaesser, foi esta situação que tornou o escritor romântico Henrich von Kleist (1777-1811) uma escolha quase inevitável, tornando-se o santo padroeiro do Cinema Novo Alemão. Enquanto escritor conservador radical e político, o individualismo do “excesso” de Kleist desempenhará papel chave na cultura alemã dos anos 1970. Elsaesser insiste, mesmo onde não se reconhece uma fonte direta, a metafísica da revolta privada de Kleist está por trás da maioria do primeiros trabalhos de Werner Herzog. Sinais de Vida (Lebenszeichen, 1968), seu primeiro longa-metragem, é baseado num incidente das guerras napoleônicas que na opinião de Elsaesser poderia ter sido escrito por Kleist, assim como outra historia do escritor, Der Findling (1811), poderia ter sido a fonte para Kaspar Hauser (e de fato já havia sido filmada por George Moorse em 1967).
Solidão, isolamento, estar desabrigado, medo e fracasso foram muitas vezes identificados como preocupações centrais para o Cinema Novo Alemão. Tenha sido isso jogada de marketing ou busca real pelas características da germanidade (em especial depois de Hitler), o fato é que não apenas estes temas são recorrentes durante a década de 1970, como certas cenas dos próprios filmes se repetem entre si. No caso de Kaspar Hauser, Elsaesser destaca a evidência, tendo sido um personagem real, de alguém criado sozinho, sem linguagem, memória, passado ou futuro e que será morto justo quando alcança o limiar da comunicação – a cena de Kaspar deixado de pé sozinho naquela cidade com um bilhete na mão é emblemático desta solidão. Logo no início do filme, depois da contextualização da história de Kaspar, vemos um campo de trigo assolado pelo vento e uma trilha musical, então lemos uma citação de Lenz (1836), de Georg Büchner (1813-1837) (Woyzeck, de 1979, outro filme de Herzog, é baseado na obra do escritor): “O senhor não ouve à nossa volta esse grito medonho que costumam chamar de silêncio?”



“O início  de  Kaspar Hauser  diz  muito  da  ‘dimensão  sonora’  do
cinema  de  Herzog.  O  som  e  a  música e a forma como se ligam às
 imagens representa a parte mais experimental de cada filme (...)”  (24)


Em Sinais de Vida, que Herzog realizou quando ainda era muito jovem, é considerado seu filme mais romântico. Partindo do princípio genérico de que os jovens são naturalmente românticos, podemos nos surpreender ao descobrir que quase todos os filmes do cineasta constituem uma tentativa de descaracterizar o romantismo como um privilégio daquela faixa etária ao não abrir espaço em suas histórias para eles. Quando chegou aos 20 anos de idade, resolveu não viver aquela década e pular direto para os 35! Verificamos que muitos dos heróis de seus filmes são homens maduros com experiências infelizes. Kaspar, por exemplo, é um adolescente com aparência de velho. Herzog teria expressado assim o fracasso histórico do romantismo (e da juventude utópica), que sucumbiu às leis do capital e da uniformização industrialista. O romantismo em seus filmes é mais esperança romântica, onde a desesperança dos personagens é constante, não tem idade (25).
A capacidade de sofrer, que personagens românticos de Herzog recuperam, seria a única prova da existência. Mas essa dor não deriva de condições abstratas, de um temperamento romântico vago e nostálgico. Eles são marginalizados sociais por motivos econômicos ou fatores alheios à sua vontade (como Kaspar). Paradoxalmente, se os personagens conseguem manter com o mundo um contato sensível de que a sociedade já não é mais capaz, não é porque possuem dom divino ou coisas do ipo, mas  devido ao isolamento no qual se encontram, que os obriga a desenvolver um sistema próprio de utilização da razão burguesa. É o que que Nagib chamou de lógica do concreto, uma experiência prática que contrasta com a abstração da lógica burguesa.

Kaspar Herzog?


Bruno S.,  que encarna Kaspar,  teve trajetória parecida:  abandonado
pela mãe aos 3 anos, passa mais de 20 em reformatóriosprisões (26),
  até os 40.  Trabalhou numa fábrica e era músico de rua em Berlim (27)  

Para compreender o Cinema Novo Alemão, Elsaesser considera necessário ter em mente havia entre aqueles cineastas uma compreensão aguda das transformações da cultura nas sociedades pós-industriais, a partir da qual procuravam tornar produtiva a anomalia e a marginalidade de seu trabalho. A cultura não aparece em seus filmes como discurso explícito sobre o ponto de vista estético a respeito da vida, mas, paradoxalmente, quase como o oposto. Seus heróis valorizam o insignificante, a muda unidade da vida, em contraste com a estetização do ambiente moderno como mercadoria e consumo. É fácil confundir isso, ressalta Elsaesser, com romantismo ingênuo, como em Kaspar Hauser, ou ver aqui uma espécie de fetichismo do inarticulado, como em alguns filmes de Wim Wenders e nos primeiros trabalhos de Rainer Werner Fassbinder (28).

“(...) Enquanto ‘regionalista’ bávaro, Herzog [...] se insere nos termos de um debate especificamente alemão a respeito de antropologia e ecologia, o qual nos anos 1970 procurou fundir as preocupações internacionais da Esquerda com o problema germânico da terra natal [Heimat] e do ‘pertencimento’. Eis porque Kaspar Hauser é tão central para Herzog e para o Cinema Novo Alemão. Não apenas como o tema de um de seus filmes mais conhecidos, mas como um assunto psicanalítico complexo; é a fantasia de se abandonado, sem pai, com uma relação incerta com todas as formas de socialização, de identidade sexual e maioridade, tentando sobreviver entre um bom pai substituto e uma imagem paterna ruim. Os trabalhos de Herzog apresentam uma abundancia de tais polaridades e seus protagonistas incorporam os dois lados do complexo Kaspar Hauser – seu componente ativo e passivo. Enquanto Kaspar se vê abandonado e lançado no mundo Aguirre [protagonista de Aguirre, a Cólera dos Deuses], num ato de desafio à Deus, ao rei e ao país, abandona a si mesmo, como que para antecipar a experiência de ser abandonado, tornado-se um obstinado instrumento de sua própria destruição. (...) Tanto Kaspar Hauser quanto Aguirre buscam a salvação num estado onde a sociedade ainda não impõe (ou não impõe mais) suas normas (...)” (29)

Em Kaspar Hauser, Herzog parece menos preocupado e justapor a natureza inocente e o enjeitado desarticulado com a sociedade corrupta e decadente - na opinião de Elsaesser, esta seria uma leitura possível, mas simplista. Para Elsaesser, a condição não natural e não humana de Kaspar desafia igualmente sociedade e natureza. O que emana deste filme é o processo de construção de um artista (Herzog) cujo dom reside em ser capaz de ler a sociedade enquanto natureza e a natureza enquanto utopia social, mantendo uma relação radicalmente artificial em relação a ambos. Na opinião de Elsaesser, a dialética particular de Herzog quanto aos personagens marginais e exagerados deve ser entendida como parte de uma mitologia da auto criação mais relacionada com a situação do cinema alemão daquela época do que com um romantismo regressivo.



Pelo menos até 1989, o isolamento e o fracasso que acompanham
 os   heróis   de   Herzog   se   liga  à  oposição  rebelião/submissão. 
Aguirre,  espécie  de  irmão  mais  feliz  de  Fitzcarraldo,  parece
um  personagem  saído  dos  sonhos  de  Kaspar  Hauser  (30) 


O artista enquanto herói é apresentado de maneira enviesada, como imagens da natureza depois do homem ou uma visão do exótico como uma colisão surreal entre sistemas de valor incompatíveis, tais como Elsaesser indicou em filmes de Herzog - os documentários lançados em 1971 Fata Morgana, O País do Silêncio e da Escuridão, e La Soufrière (La Soufrière - Warten auf eine unausweichliche Katastrophe, 1977). O personagem Kaspar Hauser é o artista como autodidata, alguém que se construiu sozinho a partir do zero e possui uma apreensão distinta representada metaforicamente através da ênfase na percepção pura, numa visão sem mediação e na beleza da imagem. A autoimagem de Herzog, ainda segundo Elsaesser, é instrutiva a esse respeito. Cita uma fala do cineasta baseada em colagem de entrevistas (Filmkritk em julho de 1968; New York Times, setembro de 1977; American Film, maio de 1980 e uma gravada no Chicago Art Institute em 1978):

“Eu quase diria, as notícias sobre meu nascimento são apenas rumores. Meu avô, que era arqueólogo, morreu louco, e eu o admirava muito. Minha mãe é Iugoslava. Eu tenho uma família muito complicada. Meu pai vive como um vagabundo. Ele se casou duas vezes. Tenho muitos irmãos e irmãs, mas alguns são meio irmãos. Eu não fui educado no sistema. Sou uma autodidata e nunca frequentei a escola de cinema. Enquanto estudava, trabalhava à noite numa siderúrgica em Munique. Por dois anos fui acorrentado das seis da tarde às oito da noite. Ganhei bastante dinheiro para fazer meu primeiro filme em 35 milímetros. Contratei um cinegrafista, e lá estava o Instituto para Pesquisa de Cinema, um precursor da atual Escola de Cinema de Munique, e esses bastardos tinham três câmeras trancadas em algum tipo de cofre, eu fui e ‘peguei emprestado’ uma delas. Acho que até agora eles não sabem que falta uma de suas câmeras. Sob tais circunstâncias, acho eu estava certo em me apropriar dos meios de produção. O que me torna um cineasta? Eu me tornei um cineasta” (31)



Kaspar Hauser e Aguirre buscam salvação lá onde a sociedade
 ainda  não  impõe  (ou  não  mais  impõe)  suas  normas  (32)


Acorrentado durante a noite a uma máquina de solda numa siderúrgica, roubando uma câmera na escola de cinema, e realizando seu primeiro filme em 35 mm ao invés de Super-8 ou 16mm. Ancestrais loucos e vagabundos, autodidata e autossuficiente. Segundo Elsaesser, para quem isso está mais parecido como um roteiro dos filmes de Herzog do que com sua biografia, podemos perceber os contornos de um mito muito particular: o autodidata como um Prometeu, desafiando os deuses e roubando o fogo para o benefício da humanidade. Desta forma, conclui Elsaesser, Prometeu se junta à Kaspar Hauser, como os dois lados da mesma tentativa de conceituar uma ausência radical de paternidade e tornar o artista subsidiado pelo dinheiro público como um mártir rebelde. A visão heróica que Herzog tem da vida não é vontade de dominar, mas estratégia de sobrevivência. Autobiográfico, vira católico para opor-se ao pai, a quem não perdoa por abandonar a família para viver como aventureiro e vagabundo. Roubar uma câmera daqueles que não o ajudaram é parte da mesma configuração edipiana. Elsaesser afirma que não é tão fantasioso enxergar as figuras do aventureiro e do vagabundo que dominam os filmes de Herzog como uma busca assombrada da figura paterna. Como ele mesmo afirmou:

“(...) Não aprendi cinema com mais ninguém, nunca trabalhei como assistente ou andei em escolas de cinema, aprendi através da aproximação, e é por isso que os meus filmes parecem tão diferentes uns dos outros, mas sei que algo metódico os une a todos” (33)

Elsaesser explica ainda que esta questão do autodidata como órfão enjeitado e criador todo poderoso não se refere apenas à construção do cineasta como herói, remete também ao tópico básico do cinema alemão do pós-guerra: o novo começo depois de 1945, além de uma necessidade de se diferenciar do cinema comercial dos anos 1950. “Não tivemos pais, apenas avós” (os segundos sendo os mestres do cinema alemão dos anos 1920-30, os primeiros sendo Hitler e seu secto de genocidas), ecos deste tipo de afirmação de Herzog podem ser encontrados em Wenders e Fassbinder. Como eles eram dependentes do subsídio governamental para financiar seus projetos, a questão do herói que se fez sozinho é puramente simbólica. E aqui Elsaesser remete à Kleist novamente, justificando a influência do conto O Terremoto no Chile (Das Erdbeben in Chili, 1807) - seu tema é a possibilidade de um novo começo e as razões porque não deu certo.

“ (...) Os heróis de Werner Herzog nos grandes filmes (Sinais de Vida, Os Anões Também Começaram Pequenos, Kaspar Hauser, Nosferatu, o Vampiro da Noite [Nosferatu: Phantom der Nacht, 1979], Coração de Cristal, Stroszek, Woyzeck e Fitzcarraldo) podem ser vistos mais facilmente como formando um paradigma autossustentado e internamente coerente. Esses heróis invariavelmente circulam em torno de estados limite e procuram definir o que é humano – através de uma dialética entre da humanidade enquanto destrutiva e o indivíduo enquanto internamente destruído. Resumidamente, eles se dividem em dois grupos simetricamente relacionados: os trapaceiros (mas que sempre acabam por inviabilizar seus próprios objetivos) de Sinais de Vida, Aguirre, Nosferatu, Fitzcarraldo, e os oprimidos de Os Anões Também Começaram Pequenos, Kaspar Hauser, Stroszek e Woyzeck. Contudo, sejam super-homens ou vítimas, os protagonistas de Herzog são sempre extremos, marginais e afastados em relação ao centro que é o mundo social, o mundo da história, aquele dos seres comuns. (...) Apenas Onde Sonham as Formigas Verdes (Wo die grünen Ameisen träumen, 1984) é uma exceção, com um herói que parece ter sido escolhido por sua simplicidade e determinação em se envolver num tema local específico, a luta de uma tribo dos aborígenes australianos para manter seus rituais sagrados (...)” (34)

Macunaíma Kaspar Herzog


“A  figura  do  outsider  funciona  como  um 
tema recorrente nos filmes de Herzog (...)(35)

Kaspar, o garoto que vive numa espécie de cova não passa de um animal sujo gruindo e movendo para lá e para cá seu cavalinho de madeira. Extraído deste universo, ele se vê obrigado a reagir como um adulto. Na opinião de Nagib, talvez possamos ver aí vago parentesco com Macunaíma, o menino que já nasce grande. De qualquer forma, Kaspar não consegue se desligar totalmente de seu condicionamento e nunca se igualará aos outros homens, vivendo uma vida de incompletude marcada pela diferença (36).
“Cada um por si e Deus por Todos”, famosa frase da versão para cinema de Macunaíma (publicado em 1928 pelo escritor Mario de Andrade), realizada por Joaquim Pedro de Andrade, que Herzog resolveu colocar como subtítulo de Kaspar Hauser, é pronunciada aos 29 minutos e pouco do filme. Já metamorfoseado em homem branco, Macunaíma viaja num caminhão cheio de passageiros (conhecido no Brasil como “pau de arara”). Ao saltar, alguém (o dono do caminhão?) dispara a tal frase enquanto nosso herói olha para o horizonte.
Na verdade, a frase que se ouve é: “cada um por si e Deus contra”. De fato, ainda que o sentido possa ser o mesmo, a frase que Herzog atribuiu ao texto do filme de Andrade existe apenas nas legendas em inglês e francês do DVD da Vídeo Filmes (distribuidora que lançou Macunaíma em suporte digital no Brasil em 2004 [?]). Provavelmente, preocupada em reproduzir as legendas destes idiomas como foram lançadas fora do Brasil na época, não reproduz a frase como é pronunciada em português.

Filme-Síntese da Poética dos Excluídos


(...)   Kaspar Hauser  pode  ser  entendido como uma metáfora
da criação do homem: um ser que sai de um subterrâneo, onde vivia
como um animal, para adquirir características humanas (...) (37)


A experiência da primeira visão, do contato primordial com o mundo, este impulso que segundo Nagib de certa forma deu origem ao cinema de Herzog está todo em Kaspar Hauser. O relato de Feuerbach trouxe para Herzog um ser de outro planeta que caiu na Terra, alguém com uma experiência corpórea e vegetativa em relação ao mundo, que não passa pela razão. Daí a importância das visões de Kaspar, aspecto do filme que pode passar despercebido para muitos como elemento desconexo em relação à narrativa (38). Numa coisa Herzog e os críticos de cinema que analisaram sua obra concordam, do ponto de vista dos aspectos exteriores de O Enigma de Kaspar Hauser, este pode ser considerado seu filme-síntese, onde realiza um inventário de suas obsessões e resume muito do que se viu em filmes anteriores e posteriores.

“(...) Aí estão o deserto do Saara, de Fata Morgana; os animais, como a galinha hipnotizada de Sinais de Vida, o macaco personificado (Os Anões, Woyzeck), o camelo que se ajoelha (Os Anões); Walter Steiner, estrela de O Grande Êxtase do Entalhador Steiner [(Die große Ekstase des Bildschnitzers Steiner, 1974)], faz aqui uma pequena ponta, bem como Herbert Achternbusch, corroteirista de Coração de Cristal;” o músico Florian Fricke (Sinais de Vida), líder do grupo [musical] Popol Vuh, responsável pela trilha sonora de vários filmes do diretor, representa em Kaspar um pianista cego; Clemens Scheitz, o notário, vai aparecer também em Stroszek e Coração de Cristal; e temos ainda o anão Helmut Döring, de Os Anões, o índio Hombrecito, de Aguirre, e o próprio Bruno S., o Kaspar Hauser, voltará em Stroszek. Além disso, Herzog transformou em pastor protestante seu amigo Enno Patalas, diretor do Museu de Cinema de Munique, onde em geral monta seus filmes; e a historiadora de cinema Lotte Eisner, não estivesse apenas de passagem durante as filmagens, também garantiria um papel: ‘Eu a vestiria com um belo traje Biedermeier’, disse-lhe Herzog, que dedicou o filme a ela” (39)



Fata Morgana é algo como o primeiro despertar, o primeiro
espanto.  Sem  este  filme  Kaspar Hauser seria impensável, esse
acordar  cheio  de  espanto, o ato de ver as coisas de repente pela
primeira vez; é um processo incrivelmente doloroso também”

Werner Herzog (40)


Após a autópsia de Kaspar, na sequência final, descobrem uma anormalidade no cerebelo. O franzino notário, que desde o início do filme abre um processo, recolhe dados procurando montar o quebra-cabeças em torno aquela presença inusitada em Nuremberg, anota a conclusão. Satisfeito com o resultado, pede que o cocheiro leve sua cartola para casa e vai a pé não sem antes falar sozinho: “Um belo processo! Um processo preciso (...). Finalmente temos para esse estranho homem uma explicação como não se poderia encontrar melhor” (41) – Nagib observa como o pequeno homem parece inconsciente de suas próprias deformidades físicas e seu passo irregular. Presença constante nos filmes de Herzog, as crianças, como o casal de filhos de Hiltel (o guarda da prisão), serão a primeira companhia de Kaspar e, segundo Nagib, os primeiros a realmente compreendê-lo.

“(...) Na relação com essas crianças resume-se a essência do personagem: a infância que não houve na realidade e à qual não é possível o retorno romântico. Na verdade é, sobretudo, entre as crianças e a gente humilde (como a doméstica Käthe e a família de Hiltel) que Kaspar encontra amor e carinho. Como entre eles não há regras sociais fixas ou padrões firmemente estabelecidos, não se discrimina o diferente. Neste mesmo sentido, a cenografia acentua em cada peça do mobiliário da casa de Hiltel a dignidade da pobreza – na barrica onde Kaspar toma seu primeiro banho, nos talheres de madeira, na caneca de cerveja, no crucifixo rústico pendurado na parede que faz um triste paralelo com a própria situação do garoto abandonado. Em tudo isso se evidencia os elementos que fazem da obra de Herzog uma poética dos excluídos, e é provavelmente neste filme que ela encontra sua melhor expressão” (42)


Leia também:


Notas:

1. NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: o Cinema como Realidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1991. P. 62.
2. PAGANELLI, Grazia. Sinais de Vida. Werner Herzog e o Cinema. Tradução Marta Amaral. Lisboa: Edições 70/Indie Lisboa, 2009.  P. 104n3.
3. HAKE, Sabine. German National Cinema. London/New York: Routledge, 2ª ed., 2008. P. 168.
4. NAGIB, L. Op. Cit., pp. 60, 99, 102.
5. Idem, p. 101.
6. PAGANELLI, G. Op. Cit., pp. 120-1.
7. NAGIB, L. Op. Cit., pp. 103-4.
8. PRAGER, Brad. Werner Herzog ’ s Companions: The Consolation of Images. In: PRAGER, Brad (Ed.). A Companion to Werner Herzog. Oxford/Malden: Blackwell Publishing Ltd. 2012. Versão em PDF. P. 7.
9. PAGANELLI, G. Op. Cit., p. 72.
10. HARRIS, Stefanie. Moving Stills: Herzog and Photography. In: PRAGER, Brad (Ed.). Op. Cit., p. 130.
11. NAGIB, L. Op. Cit., pp. 106, 108-9.
12. Idem, p. 105-6.
13. PAGANELLI, G. Op. Cit., pp. 180-1.
14. Idem, p. 164.
15. NAGIB, L. Op. Cit., p. 110.
16. NAGIB, L. Op. Cit., pp. 102, 110; PAGANELLI, G. Op. Cit., p. 147; WAHL, Chris. “I don’t like the Germans”: Even Herzog Started in Bavaria. In: PRAGER, Brad (Ed.). Op. Cit., p. 252n37.
17. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: MacMillan, 1989. p. 296.
18. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 227.
19. DELEUZE, Gilles. Op. Cit., pp. 228-30; PAGANELLI, G. Op. Cit., p. 43.
20. NAGIB, L. Op. Cit., p. 176.
21. DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 230.
22. ELSAESSER, T. Op. Cit., p. 37, Os outros cinco são Amor e Preconceito (Fontane Effi Briest, 1974) e O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978), realizados por Rainer Werner Fassbinder; A Honra Perdida de Katharina Blum (Die verlorene Ehre der Katharina Blum, 1975) e O Tambor (Die Blechtrommel, 1979), realizados por Volker Schlöndorff; O Pão do Padeiro (Das Brot des Bäckers, 1976), realizado por Erwin Keusch; 87-8, 210.
23. PAGANELLI, G. Op. Cit., p. 11.
24. Idem, p. 161.
25. NAGIB, L. Op. Cit., pp. 64-5, 67.
26. Idem, pp. 63, 111.
27. PAGANELLI, G. Op. Cit., p. 105n4.
28. ELSAESSER, T. Op. Cit., pp. 90-2, 225, 332n24.
29. Idem, pp. 225-6.
30. Ibidem pp. 223.
31. Ibidem p. 91.
32. Ibidem p. 226.
33. PAGANELLI, G. Op. Cit., p. 31.
34. ELSAESSER, T. Op. Cit., p. 218.
35. HAKE, S. Op. Cit., p. 168.
36. NAGIB, L. Op. Cit., p. 105.
37. Idem, p. 71.
38. Ibidem, pp. 103-4.
39. Ibidem, p. 103.
40. Ibidem, p. 22.
41. Optei aqui pela tradução de Nagib.
42. NAGIB, L. Op. Cit., p. 112.

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