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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de mai. de 2018

Ficção Científica Inglesa no Cinema e Guerra Fria


Com as primeiras adaptações britânicas do livro do socialista George
Orwell,  1984,  o  cinema  inglês  inventa  a  ficção  científica  política

Nicho Mercadológico da Loucura

A ficção científica já existia no cinema britânico desde a década de 1930. Antes de 1945, ano em que as bombas atômicas jogadas pelos Estados Unidos no Japão criaram mais um filão, o cinema inglês que se dedicava ao assunto já havia realizado vários filmes repletos de conotações sociais políticas contemporâneas. Talvez o mais famoso seja Daqui a Cem Anos (Things to Come, direção William Cameron Menzies, 1936), que conta a história de como a guerra em 1940 poderia ser seguida por pragas, o colapso da civilização e o primeiro foguete para a lua. Tony Shaw mostra que muitos filmes de ficção científica feitos no período entre guerras abordam questões que dominarão o gênero vinte anos depois, como o conflito entre ciência e natureza, o significado da humanidade, e os benefícios da sociedade planejada: High Treason (direção Maurice Elvey, 1929), Túnel Transatlântico (The Tunnel, direção Elvey, 1935) e O Homem que Fazia Milagres (The Man Who Could Work Miracles, direção Lothar Mendes e Alexander Korda, 1936) (1). Contudo, Shaw adverte que enquanto os filmes dos anos 1920 e 1930 tendiam às fantasias futuristas, nos anos 1950 e 1960 eram mais baseados no tempo presente. Além disso, enquanto os filmes do entre guerras geralmente demonstravam fé na ciência e nos progressos do futuro, aqueles realizados depois da Segunda Guerra Mundial eram predominantemente muito pessimistas e projetados com o objetivo de assustar (2). Pelo menos para alguns de nós, pode soar curioso que o homem do futuro que chega à Everytown destruída pela guerra em Daqui a Cem Anos tenha como uma de suas prioridades o restabelecimento do mercado:

“(...) Eis que no céu surge um avião com seu piloto que, este sim, representa outro rosto da reconstrução: perante os pequenos Estados guerreiros que se instauraram, ele defende [o regresso da ordem e do comércio, da ciência e da razão]. Nota-se o paralelismo entre o progresso técnico e o progresso político e moral (igualdade dos homens e respeito pelo próximo, etc.), por um lado, e, por outro, a oposição entre os dois tipos de Estado (...)” (3) (imagem acima, The Earth Dies Screaming, 1964; abaixo, poster de Daqui a Cem Anos)

H.G. Wells desaprova a adaptação
 de  seu  livro, Things  to  Come,  em 
Daqui a Cem Anos  (1936).  Contudo, 
sabemos que frequentou as filmagens
e que suas sugestões aos cenógrafos
eram subjetivas demais para serem
compreendidas ou visualizadas (4)


Vale a pena chamar atenção para o fato de que Daqui a Cem Anos é anterior às explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Se até então o tema não havia sido levado a serio, depois disso tudo mudou, já que aquilo que era considerado fantasia e tornou realidade. A proliferação de armamento nuclear na Guerra Fria que se instalou no mundo real logo depois do final da guerra tornou-se o combustível para a ficção científica. Outra reviravolta no gênero chega rapidamente com a década seguinte, quando a obsessão com espaço sideral, discos voadores e alienígenas vai se misturar com a paranoia nuclear. Este foi mais um tema que se articulou com a própria realidade novamente, uma vez que União Soviética e Estados Unidos incluíram na Guerra Fria uma corrida espacial em direção à lua – no cinema, o filão teria se iniciado em 1950 em Hollywood com Destino à Lua (Destination Moon, direção Irving Pichel), primeiro filme colorido a respeito do tema (5). Geralmente, durante a Guerra Fria os cientistas aparecem nas telas tanto como fonte de salvação quanto como maior responsável pela criação de monstruosidades - existem também os cientistas-espiões. Por outro lado, embora filmes norte-americanos como O Mundo em Perigo (Them!, direção Gordon Douglas, 1954) reflitam a ansiedade em torno da ciência, todos apoiam a ordem moral e política oficial. Aqui, cientistas, militares e governo estão unidos na luta contra o inimigo enquanto as pessoas comuns (personagens e espectadores) são informadas de que não há como voltar atrás com o relógio tecnológico. (imagem abaixo, Túnel Transatlântico, 1935)

Estética, Política, Orwell

Na ficção científica, a crítica social
e política só começa para valer
a partir da década de 1960
Éric Dufour observou uma semelhança entre Metropolis, que Fritz Lang realizou na Alemanha em 1927, e Daqui a Cem Anos, lançado nove anos depois. Neste último a cidade do futuro é toda ela subterrânea, sendo ligada ao mundo natural exterior uma abertura para o céu. Não é o caso do filme de Lang, a não ser, justamente, pelos muitos arranha-céus imponentes e as grandes pontes formando caminhos suspensos - aqui, apenas os trabalhadores-escravos vivem no subterrâneo, mais prisão do que refúgio. Da mesma forma como em Metropolis, os espaços públicos são lugares amplos e vazios, que os habitantes atravessam. Na opinião de Dufour, reencontraremos isso nos filmes dos anos 1950, pois o movimento em frente é também um retorno que aponta para um passado distante. Ou melhor, é como se fosse a Àgora dos gregos antigos, onde se discutem questões políticas e se informa através de uma gigantesca tela de televisão – é bom lembrar que toda grande cidade Ocidental conta com praças amplas onde acontece muita coisa, desde feiras de alimentos até comícios políticos. Gregas também as vestimentas, vários tipos de togas que podem evocar Roma Antiga. Outro elemento estético é a limpeza, tudo futuro é novinho em folha e totalmente limpo - detalhe recorrente em muitos filmes de ficção científica. Em Daqui a Cem Anos, a ciência é apresentada como um movimento infinito, como quando no final será lançado um veiculo ao espaço, em direção à lua. Assim sendo, um filme que se inicia com imagens do passado (que logo se transformará numa sociedade belicista decadente), da tradição e da religião (festa de Natal), termina com o foguete decolando da cidade do amanhã rumo ao espaço sideral (a ciência contra a religião). Ao contrário de Tony Shaw, Dufour acredita que a ficção científica não existe no cinema inglês antes de Daqui a Cem Anos. Pelo menos, ainda não se reivindica enquanto tal – o mesmo acontece nos Estados Unidos, onde a ficção científica ainda é um tema inserido nos filmes de terror (6).


Durante a década de 1950, a ficção científica ainda não existe
enquanto  tal,  mas  como  um  filão  dos  filmes  de  horror

Desprezando Daqui a Cem Anos, entre outros, Dufour sugere ainda que os primeiros filmes de ficção científica ingleses surgem na mesma época que a ficção científica japonesa (Godzilla) com uma mulher vestida de Darth Vader em A Garota Diabólica de Marte (Devil Girl from Mars, direção David MacDonald, 1954) e Projeto Quatermass (também conhecido no Brasil como Terror que Mata, direção Val Guest, 1955). Dufour segue lembrando que a ficção científica inglesa também começa explorando o filão do filme de monstros (O Monstro Submarino, Behemoth the Sea Monster, direção Douglas Hickox e Eugène Lourié, 1958, e Gorgo, direção Eugène Lourié, 1961), crianças louras aparentando inocência (A Aldeia dos Amaldiçoados, Village of the Damned, direção Wolf Rilla, 1960 e seu remake, A Estirpe dos Malditos, Children of the Damned, direção Anton Leader, 1964), o astronauta que vira uma massa sem forma (Terror que Mata) e o homem aparentemente comum, mas que é outra coisa (Quatermass 2, direção Val Guest, 1957). A invasão ao planeta Terra era um tema recorrente, como nos citados A Garota Diabólica de Marte, A Aldeia dos Amaldiçoados e Quatermass 2, além de A Ilha do Terror (Island of Terror, 1966), The Earth Dies Screaming (1964) e Night of the Big Heat (1967), dirigidos por direção Terence Fisher, que também se enquadram no filão apocalíptico.


Seria Brazil, o Filme a melhor adaptação 
do  livro  de  George  Orwell,  1984 ?

Para Dufour, a ficção científica é por excelência o lugar da crítica social e da política, pelo menos a partir da década de 1960, particularmente focado na distopia – antecipado pelo estadunidense Fantasias de 1980 (Just Imagine, David Butler,1930). Tendência evidente nos franceses Alphaville (Alphaville, une Étrange Aventure de Lemmy Caution, direção Jean-Luc Godard, 1965) ou Fahrenheit 451 (direção François Truffaut, 1966). Embora não veja muita crítica nos filmes dos anos 1950, Dufour admite que um filme dos Estados Unidos como Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, direção Don Siegel, 1956) contém certa crítica, embora tímida. Ainda de acordo com Dufour, foi o cinema inglês que inventou o filme político de ficção científica, com as duas primeiras adaptações do livro de George Orwell, 1984 (1949): em 1954, um telefilme de Rudolph Cartier (que também dirigiria episódios para a televisão do seriado Quatermass), com o ator Peter Cushing atuando como Winston Smith, e um filme de Michael Anderson (que irá dirigir, em 1976, Fuga no Século 23, Logan’s Run), em 1956 – o primeiro uma adaptação fiel do livro, o segundo uma adaptação livre. Também é opinião de Dufour que Brazil, o Filme (Brazil, 1985) é a verdadeira adaptação de 1984 (superando a versão de Michael Radford, 1984), embora o realizador Terry Gilliam o negue, afirmando que estava pensando em Kafka e nem leu Orwell. Em 1954, Joy Batchelor e John Halas realizaram uma versão em desenho animado de outro livro dele, A Revolução dos Bichos (Animal Farm, 1944). O Jogo da Guerra (The War Game, direção Peter Watkins, 1965) acirra o debate quando, na época de mais força do movimento antinuclear, descreve em estilo documental as consequências de um ataque atômico numa pequena cidade inglesa. (imagem abaixo, O Monstro Submarino, 1958; acima, à esquerda, Brazil, o Filme, à direita, 1984, versão 1956)

Bicharada Radioativa e Comunista


Alguns acreditam que os filmes britânicos de ficção científica
das décadas de 1950  e  1960 eram menos conformistas do que
os similares norte-americanos  que eles geralmente imitavam
Entre 1953 e 1963, os filmes britânicos de ficção científica abordam vários aspectos da interpretação pública sobre a era nuclear. Aqui os filmes de monstros também fizeram escola, embora Shaw considere discutível que os britânicos inoculassem a mesma mensagem consensual autoritária, para John Baxter muitos desses filmes não passam de imitações fracas de sucessos norte-americanos. Dentre os lançamentos de 1958, O Monstro Submarino, O Monstro Cósmico (The Strange World of Planet X, direção Gilbert Gunn) e The Trollenberg Terror (também conhecido no Brasil como The Crawling Eye, direção Quentin Lawrence). No primeiro, uma criatura pré-histórica volta à vida em função da radioatividade dos testes nucleares (então ainda em voga) e invade Londres até ser torpedeada e destruída. No segundo, o desequilibrado Dr. Laird é morto por visitantes do espaço e por insetos gigantes produzidos por suas experiências. No último, alienígenas estão escondidos numa nuvem radioativa sobre uma montanha na Suíça e são destruídos por um investigador científico das Nações Unidas e duas irmãs telepatas. Esses monstros estão um passo além de Frankenstein, pois enquanto este é fruto da loucura individual de alguém, aqueles são fruto da tendência do “sistema” de brincar com as leis da natureza – antes era apenas uma aldeia ameaçada pelo monstro, agora toda a humanidade. Para Charles Derry, o horror do Armageddon surge com mais força no ciclo de filmes realizados em meados da década de 1950, em torno das atividades do professor Bernhard Quatermass (7). 

“Animais comuns que se tornaram gigantes e animais gigantes pré-históricos despertados ou reconstituídos pela radiação invadem a Terra através da tela de cinema, de 1954 a 1975, com um auge muito nítido entre 1954 e 1963. Eles são projetados abundantemente para americanos e japoneses. Geralmente, esses animais estão em relação antagônicos com a humanidade: as primeiras aparições de Godzilla (de 1954 a 1965), as formigas de O Mundo em Perigo (1954), os insetos do tipo gafanhoto de Mundos que se Chocam (Killers from Space, direção W. Lee Wilder, 1954), o polvo de O Monstro do Mar Revolto (It Came from Beneath the Sea, direção Robert Gordon, 1955), O Escorpião Negro (The Black Scorpion, direção Edward Ludwig, 1957), os insetos de The Beginning of the End (direção Bert I. Gordon, 1957), o dinossauro Behemoth (1958), o peixe gigante de Viagem ao Fundo do Mar (Voyage to the Bottom of the Sea, direção Irwin Allen, 1961), Gamera (a série dos Gamera começa em 1966), são destruidores impiedosos, contra os quais se mobilizam todas as forças armadas. As formigas de O Mundo em Perigo são destruídas com lança-chamas no subterrâneo; como aconteceu, na mesma época, em filmes que ilustram os episódios da [Segunda Guerra Mundial] no [Oceano] Pacífico entre 1941 e 1945, por exemplo, com os japoneses em Okinawa (...)” (8)


Quatermass critica o conformismo britânico durante a Guerra Fria

Baseado na série muito popular de televisão The Quatermass Xperiment, Terror que Mata foi um grande sucesso do estúdio Hammer nos dois lados do Oceano Atlântico e oferecia uma crítica da ciência e do conformismo durante a Guerra Fria – primeiro produto de ficção científica do estúdio, Spaceways (direção Terence Fisher), foi realizado em 1953, sendo considerado ridículo. Na sequência, O Estranho de um Mundo Perdido (X The Unknown, direção Leslie Norman e Joseph Losey, 1956) e Quatermass 2 (também conhecido como Enemy from Space, direção Val Guest, 1957). Mais conhecido por seus filmes de terror, para Shaw a justaposição com a ficção científica pela Hammer não teria sido apenas uma coincidência mercadológica. Marcia Landy articula o conservadorismo britânico dos anos 1950 com estes dois gêneros, para concluir que constituem parte da “crise ideológica” que se abateu sobre aquela sociedade depois do fim da Segunda Guerra Mundial, manifestada na forma de delinquência juvenil (que Hammer mostrou acontecendo na cidade litorânea de Brighton, em Os Malditos, These are the Dammed, direção Joseph Losey, 1963; outro exemplo, agora no registro do filme policial Noir, na mesma cidade, é Rincão de Tormentas, Brighton Rock, 1947), aumento da taxa de divórcio e de consumismo, sem esquecer as pressões geradas pela Guerra Fria. Projeto Quatermass conta a história de Victor, mandado para o espaço por Quatermass e que retorna metamorfoseado em planta. Vagando por Londres matando e transformando as pessoas até ser morto, o personagem já foi comparado ao “perigo comunista”, tema típico da paranoia dos anos 1950, embora alguns comentaristas o vejam mais como vítima do ameaça. 


Spaceways  (1953)  foi  uma  primeira  incursão  da  Hammer
(coprodução com um estúdio norte-americano) na ficção científica. 
Filme de assassinato em cenário tecnológico,  a  crítica  odiou

Alexandre Hougron chamou atenção para a mistura em Quatermass de discos-voadores, marcianos, vegetais e insetos – que ele chamou de os “nazistas” da ficção científica. Em 1958 o filme já havia virado um seriado pata TV quando em Quatermass and the Pit  (1958) o professor Quatermass descobre uma estranha espaçonave enterrada no metrô de Londres e cheia de cadáveres de criaturas extraterrestres. São grandes gafanhotos verdes em casulos que começam a se decompor com a abertura do disco-voador. Crânios de primatas também cercam o veículo voador. Resumidamente, a tese do professor é de que os insetos-aliens destruíram seu planeta através de guerras e vieram para a Terra, onde transformaram os macacos que viviam aqui. Os seres humanos descenderiam desses marcianos. Para Hougron, o filme mostra até que ponto o simbolismo do alien inseto se relaciona com o medo do superego e a regularização do indivíduo (logo do individualismo) no interior de uma vasta entidade coletiva (representada pelo “espírito de colmeia” dos marcianos insetos) onde ele perderia sua alma. Todos serão salvos pelo ato individual de um humano, que se joga diante de um espectro gigante que está sobre Londres, salvando a “sociedade de indivíduos”. O sangue dos aliens gafanhotos é verde, cor fetiche da ficção científica. Mas não é o verde da vegetação terrestre, pois é luminescente. Basta lembrar-se de alguns alienígenas de Hollywood: O Predador I e II – A Caçada Continua (Predator, 1987 e 1990, John McTiernan e Stephen Hopkins, respectivamente), que apesar de negro-cinza, tem sangue verde reluzente que brilha – verde também é o sangue do caranguejo-polvo, primeiro estágio de metamorfose do monstro de Alien, o Oitavo Passageiro (Alien, Ridley Scott, 1979) (9).

“Quer se trate do coletivo primitivo, instintivo e animal ou de um coletivo cerebral, a dissolução do indivíduo e de sua identidade deixou decididamente obcecados os espíritos e os imaginários ocidentais” (10)

Entre  1953  e  1963,  os  filmes britânicos  de  ficção
 científica abordam vários aspectos da interpretação 
 pública a respeito da perspectiva de guerra atômica 

Ainda que O Estranho de um Mundo Perdido não seja considerado tão poderoso quanto Terror que Mata, possui o mérito de ter sido um dos primeiros filmes a criticar a atitude complacente das autoridades em relação à ameaça da radiação – o filme fala de uma força misteriosa contida na radiação emitida por uma estação de pesquisas escocesa. A verdade, explica Shaw, é que durante os anos 1950 nem mesmo os físicos conheciam toda a extensão do poder termonuclear. A chuva radioativa liberada pela bomba de hidrogênio lançada pelos Estados Unidos nas ilhas Marshall em 1954 surpreendeu o governo e os pesquisadores envolvidos, mas todos estavam a milhares de quilômetros daquele arquipélago do Oceano Pacifico. O chamado teste Bravo produziu 15 megatons, três vezes mais do que esperado. 28 norte-americanos e 236 ilhéus foram expostos, assim como a tripulação de um barco de pesca japonês, onde todos ficaram doentes e um morreu (11). O barco de pesca estava fora da zona proibida, portanto não se pode dizer que estavam no lugar errado, na hora errada. Este incidente inflamou o temor da população japonesa, que já conhecia os efeitos da bomba e temia que a Guerra Fria levasse a uma guerra nuclear. Não por acaso, o primeiro filme de Godzilla (Gojira, direção Ishiro Honda), que estreou no Japão naquele mesmo ano, não apenas falava de um monstro pré-histórico mutante acordado pelas explosões, como logo na sequência inicial um navio mercante e sua tripulação são atingidos e afundados por uma grande explosão no mar (de fato, segundo Tadao Sato foi este evento que deu a ideia ao produtor Tomoyuki Tanaka) (12). (ao lado, O Estranho de um Mundo Perdido, 1956; Trollenberg Terror, 1958)

“(...) No mesmo dia que a produção de Quatermass 2 começou, The Times informou a seus leitores a respeito de outra bomba gigante que foi jogada, produzindo ‘o lançamento mais estupendo de energia explosiva na Terra até agora’. Para muitas pessoas, as declarações oficiais alegando que tais testes deveriam ser bem vindos porque serviam como ‘substitutos para a guerra’ beiravam a imprudência, no contexto dos perigosos níveis de radiação sendo detectados ao redor do mundo” (13)


A Máquina do Tempo, adaptação do livro de H.G. Wells, sugere
como seria tratada a questão a escassez de alimentos num mundo
 reduzido à barbárie, mesmo muito tempo depois da destruição total

É recorrente o comentário de que Quatermass 2 se parece demais com o estadunidense Vampiros de Almas. Ocorre que, embora o segundo tenha sido lançado antes, o roteiro do primeiro já estava pronto nessa época, e os dois foram realizados independentemente (14). Mas ambos são pesadelos anticomunistas mal disfarçados. Enquanto um é considerado exemplar da paranoia coletiva dos Estados Unidos nos anos 1950, o outro é chamado de o maior de todos os filmes britânicos sobre ansiedade – o que na opinião de Shaw é um exagero. De fato, explica Shaw, a alegoria política é mais explícita em Quatermass 2: parlamentares britânicos e o delegado da Scotland Yard foram “infectados” por alienígenas. Pode-se até dizer que Quatermass é um cientista amistoso, já que revelou que a fábrica de comida sintética era a base dos alienígenas e utilizou seu conhecimento para destruir os monstros que crescem ali. Todavia, emprega mais energia em seus projetos do que em suprir as necessidades humanas – as instalações dos alienígenas são idênticas as do projeto de colônias lunares de Quatermass, então qual é a diferença entre as colonizações alienígena e a humana? Nessa época, cientistas, empresas e governos começam a investir em comida sintética, afirmando que o mundo estaria livre para sempre da ameaça malthusiana de superpopulação. Noutro registro, o tema da escassez de comida reaparece em A Máquina do Tempo (The Time Machine, direção George Pal, 1960), coprodução com os Estados Unidos. Baseado em outro livro de H. G. Wells, num futuro pós-apocalíptico os Morlocks são predadores dos Eloi (15) – podemos ainda citar o estadunidense No Ano de 2020 (Soylent Green, direção Richard Fleischer, 1973).

“(...) Para alguns observadores, esta foi mais uma prova de que ao complexo industrial-científico foi permitido enlouquecer, brincando com a ordem natural em busca de recompensas discutíveis. Experiências com a cadeia alimentar humana, alguns críticos argumentam, engendram seus próprios riscos de mutação biológica e ecológica, numa escala ainda mais abrangente do que aquela descoberta por Quatermass” (16)


Leia Também:


Notas:

1. SHAW, Tony. British Cinema and the Cold War. The State, Propaganda and Consensus. London/New York: I. B. Tauris, 2001. P. 236n62.
2. Idem, pp. 126-7.
3. DUFOUR, Éric. O Cinema de Ficção Científica. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2012. P. 31.
4. O Design de Daqui a Cem Anos, entrevista com Christopher Frayling (edição original The Criterion Collection, 2013), nos extras do DVD Clássicos Sci-Fi volume 3, distribuído no Brasil por Versátil Home Vídeo, 2016.
5. Ibidem, p. 236n66.
6. DUFOUR, É. Op. Cit., pp. 31-3, 94-5, 157, 161, 183.
7. SHAW, T. Op. Cit., pp. 128-30.
8. PUISEUX, Hélène. L’Apocalypse Nucléaire et son Cinéma. Paris: Les Éditions du Cerf, 1987. Pp. 112-3.
9. HOUGRON, Alexandre. Science-Fiction et Société. Paris: PUF, 2000. Pp. 70-2, 214-5.
10. Idem, p. 72.
11. SHAW, T. Op. Cit., p. 237n79.
12. Entrevista com Tadao Sato (s/d) e curta-metragem O Dragão Terrível (The Unluckiest Dragon, 2012), nos extras de Godzilla, Origens, distribuído no Brasil por Obras Primas, 2015.
13. SHAW, T. Op. Cit., pp. 129-130.
14. Idem, p. 237n81.
15. Ibidem, p. 237n83.
16. Ibidem, pp. 130-1. 

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