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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de dez. de 2017

A Fase Polonesa de Roman Polański


“Aos  25  anos, Polański não era apenas  o  maior nome
no  campus  [da Escola de Cinema de Łodź],  mas  um  dos
poucos dândis imperturbáveis da Polônia central (...) (1)

Relacionamentos Falidos

Rajmund Roman Liebling, vulgo Roman Polański, nasceu numa família de judeus poloneses em Paris. Ele é mais um cineasta polonês criado na Escola de Cinema de Łodź – outros nomes conhecidos são Andrzej Wajda, Jerzy Skolimowski, Krzysztof Zanussi e Krzysztof Kieślowski. Em 1955, dirigiu seu primeiro curta-metragem, A Bicicleta (Rower), baseada no encontro de Polański com o homicida Janusz Dziuba – o filme não existe, foi perdido pelo laboratório de Varsóvia. Em 1957, realiza três curtas-metragens. Com Vamos Arrombar a Festa (Rozbijemy Zabawe), o mostra o universo da juventude polonesa do pós-guerra, com seus mauricinhos e bad boys, uma espécie de sucursal do estilo de vida da terra do Tio Sam, sonorizado pelo jazz que tanto caracterizou um modo de vida jovem internacional naquele universo do realismo socialista patrocinado por Moscou (inclusive, o afrouxamento dos controles diretos soviéticos na Polônia em 1961 foi apelidado de “degelo jazzístico”). A seguir, em Sorriso (Usmiech Zebiczny), mistura humor, violência, voyeurismo e já insinua sua obsessão com a água. Um homem espia pela janela enquanto uma mulher nua se enxuga no banheiro. Apanhado em flagrante por um morador, o homem disfarça, mas quando volta a olhar encontra o morador escovando os dentes e sorrindo para ele. É uma homenagem a Alfred Hitchcock, cujo seriado da década de 1950 foi apresentado na televisão estatal polonesa naquela época – segundo Sandford, biógrafo de Polański, o governo acreditava que a exibição geraria condenação em relação a uma suposta obsessão ocidental com o macabro. Assassinato (Morderstwo) mostra em 80 segundos um homem entrando num quarto, matando alguém e indo embora. Depois disso, surge Dois Homens e um Armário (Dwaj Ludzie z Szafa, 1958) (2). (imagem acima, desconfiado Andrzej vigia a esposa e se prepara para provocar o carona, A Faca na Água)


Em 1957 o governo comunista polonês permite que a televisão
estatal  transmita  a  série  Alfred  Hitchcock  Apresenta.   Sorriso  é
uma homenagem ao cineasta inglês, possível devido a esse interesse
do governo em veicular um produto do “Ocidente decadente” (3)

Polański é um desses nomes do cinema mundial cuja biografia é tão impressionante que poucos têm dúvidas de que seu cinema seja marcado por suas experiências de infância. Desnecessário dizer que, quando a Segunda Guerra Mundial estourou em 1939 e os nazistas invadiram a Polônia sua vida mudou radicalmente – a família havia retornado de Paris para sua terra natal. A mãe morreu em Auschwitz, o pai sobreviveu ao campo de concentração de Mauthausen. Enquanto isso, o pequeno Romek (diminutivo de Roman) vagou pelo país entre os sete e os treze anos de idade, quando a Polônia foi “libertada” pelos soviéticos em 1945. Em 1959, já havia realizado cinco curtas-metragens quando filmou seus dois últimos trabalhos em Łodź: A Lâmpada (Lampa) e Quando Caem os Anjos (Gdy Spadaja Anioly). O primeiro trata de um fabricante de bonecos cuja loja é destruída pelo fogo devido a uma falha elétrica, talvez causada pelos próprios bonecos, assustadoramente reais. Não fez sucesso, e Polański a omite de sua autobiografia. O segundo curta será seu trabalho de conclusão da graduação - nas palavras de Christopher Sandford, “uma obra-prima compacta”.


 Claramente influenciado por Samuel Beckett e com um toque
 de  Charlie  Chaplin,   Dois  Homens  e  um  Armário   prefigura
 perfeitamente o trabalho mais maduro de Roman Polański  (4)

Quando Caem os Anjos acompanha uma senhora de oitenta anos de idade relembrando sua vida durante o horário de trabalho, num banheiro público. O próprio Polański e sua esposa Basia interpretaram a idosa em vários flashbacks – as sequências do banheiro estão em preto e branco, enquanto os flashbacks são coloridos. Como em Lua de Fel (Bitter Moon, 1992), o filme trafega entre passado e presente. Na conclusão, um anjo interrompe a sequência de flashbacks ao cair pela claraboia do banheiro, encontrando a octogenária de joelhos em posição de oração. O reitor e o conselho acadêmico de Łodź desvalorizaram o resultado final. Sandford explica que embora o curta tenha sido aceito pela banca de examinadores, Polański nunca se graduou formalmente. A explicação mais provável é não tenha entregado a tese escrita que fazia parte do exame, sendo assim deixou a escola sem o diploma. Sandford conta ainda que certa animosidade de alguns críticos de cinema poloneses advém deste detalhe da carreira do cineasta. De fato, nem sempre Polański foi uma unanimidade. Em seu curta anterior à Quando Caem os Anjos, Dois Homens e um Armário, portanto ele ainda era um aluno, conta-se que ficava descontrolado e aos berros quando surgiam diferenças criativas durante as filmagens. De acordo com Henryk Kluba, um dos protagonistas, ele chegou a atacar fisicamente membros da equipe e descarregou tanto no armário que o espelho teve de ser trocado. “Ele era insuportável”, concluiu Kluba. Em 1962 consegue realizar seu primeiro longa-metragem, A Faca na Água (Nóż w Wodzie). (imagens abaixo, da esquerda para a direita, acima, O Gordo e o Magro, A Lâmpada; abaixo, Vamos Arrombar a Festa)


Ado Kyrou  se  referiu aos curtas-metragens do início
da  carreira  de  Polański  como  peças  surrealistas (5)

É a história tensa do breve encontro entre um casal, Andrzej e Krystyna, e um rapaz que pede carona. O carro do casal dá uma freada brusca quando um homem jovem pula na frente, estão a caminho dos lagos masurianos para navegar em seu iate. Andrzej, que já não é um jovem, desafia o carona a navegar com eles, então adota o papel autocrático de capitão. Daí em diante a relação entre os dois homens começa a se deteriorar, aparentemente em função da presença de Krystyna e seu corpo jovem. Durante uma discussão, a faca do rapaz acaba caindo na água, que cai também após levar um soco de Andrzej. O rapaz desaparece, simulando um afogamento. Andrzej e Krystyna discutem, ele simplesmente mergulha e vai embora - o rapaz não se afogou, estava escondido.  O rapaz sobe no barco e depois de uma briguinha, Krystyna se mostra bastante receptiva e transam naquela noite. No dia seguinte, voltando para o porto, ela deixa o carona noutro ponto do lago e ruma para a marina. Krystyna confessa, mas Andrzej não acredita nem que ele está vivo nem que ela o traiu. No final, vemos o carro parado numa encruzilhada: se forem à polícia relatar o desaparecimento do rapaz, poderão ser considerados suspeitos; se tomarem a outra direção pode indicar que Andrzej aceita a traição de Krystyna. Divididos entre enfatizar o conflito de gerações e as entrelinhas políticas, em geral tanto os críticos quanto a imprensa polonesa não elogiaram o filme. O governo, única fonte de financiamento do cinema então, preocupado em continuamente alimentar sua quimera socialista com novas utopias para manter a Polônia unida em torno dele, também não gostou.

“O final, com o carro imóvel diante de uma placa de estrada [indicando a distância do posto policial], pode ser menos um exemplo de abertura modernista do que a imagem devastadora de uma cultura sem lugar para onde ir. Essa imagem se torna modernista em certo grau, contudo, quando justaposta com a questão de Krystyna em relação ao final da piada de Andrzej sobre o marinheiro que dançou sobre vidro quebrado [- porque não percebeu que desta vez seus pés não aguentariam]. A questão da forma como as histórias devem terminar está ligada àquela da viabilidade da comunicação em geral, seja porque o casamento vive um impasse pela recusa de uma parte (Andrzej) aceitar o que o outro está dizendo, seja a confissão da infidelidade de Krystyna com um ‘filhote de cachorro’ (palavra de Andrzej para o garoto - szczeniak) poderia ferir seu orgulho se ele acreditar, ou ainda porque a verdade e a mentira se tornaram inseparáveis. Em qualquer dos casos, é claro, o relacionamento deles (ao nível alegórico, aquele entre a Polônia e seus governantes) está falido, literalmente indo para lugar nenhum” (6)

A Faca na Água: Anedotas de Produção


(...)   [Em  1957],   sua  namorada  Kika  o  havia  introduzido
às maravilhas da região do lago Mazury, no nordeste da Polônia. Este, decidiu [Polański], seria o cenário de um thriller (...)(7)

Muito endividado em Paris e com a carreira estagnada, Polański volta à Łodź com a intenção de realizar um thriller enigmático em longa-metragem sobre dois homens e uma mulher isolados num iate. Quase sem dinheiro ou comida, tranca-se em seu pequeno apartamento no centro da cidade com Jerzy Skolimowski e Kuba Goldberg para elaborar um roteiro, sobrevivendo de suco de fruta e guisado de repolho. O resultado foi um esboço hitchcockiano, com traços de Kafka e Jean Genet. Kamera, o único estúdio se interessou no roteiro, ofereceu quase nada por ele – e depois disse que não precisaria dos serviços dele no futuro imediato. Por sua vez, o Ministério da Cultura recebeu o roteiro com frieza, dizendo que era de um valor moral duvidoso e que a parte do rapaz que pega carona no barco deveria ser reescrita num tom de maior comprometimento social. Do diálogo entre marido e esposa deveria ser cortada qualquer sugestão de paixão sexual e os trajes de banho deveriam maiores. Se concordasse, o cineasta poderia solicitar a verba novamente. Em 1961, depois de algumas concessões, finalmente o roteiro é aprovado. Polański seria o diretor e queria também atuar no papel do jovem que se mete na vida do casal, mas o produtor impôs um ator formado em interpretação – mas o cineasta conseguiu que a voz do personagem fosse dublada por ele. Para o papel da atriz, Polański escolheu uma espécie de sósia de Basia, Jolanta Umecka. Ela nunca tinha atuado e o cineasta disse que era muito difícil extrair emoções dela (8). Enquanto isso, depois de botar chifre em Polański algumas vezes, Basia resolve se divorciar do cineasta. Ela já era famosa, enquanto ele, que até gozava de certa fama local na Polônia, somente a partir de A Faca na Água começa a surgir na cena internacional. Conflito de egos? De qualquer forma, o episódio lança luz sobre sua relação com o sexo feminino.

“Após o abandono de Basia, um dos amigos de Polański faria uma análise pública do relacionamento do casal. ‘Tinha a sensação’, dizia, ‘que Romek foi bastante humilhado por ela. Tanto pelo divórcio quanto por sua transformação em estrela de cinema e pelo fato de ele ser baixinho, enquanto ela era alta, jovem e bela’. A teoria psicológica insiste em dizer que toda a carreira subsequente de Polański foi uma espécie de revanche artística contra as mulheres. Com o tempo, esta simplificação pareceu ganhar força das lembranças eternamente recicladas, tanto as que forma publicadas quanto as ditas em particular, das diversas atrizes que trabalharam diretamente com ele. Palavras como ‘imaturo’, ‘valentão’ e ‘volátil’ eram recorrentes (...)” (9)


Às vezes A Faca na Água é comparado a O Sol por Testemunha, 
anterior.  Polański estava sem grana  em  Paris quando sua esposa
 é   convidada  por  René Clément  para  um  filme. Com o dinheiro, 
o casal  muda  de  apartamento  e  ele  compra  uma  Mercedes (10)

Em 1962 A Faca na Água começa enfim a ser transformado em imagens em movimento. Só então Polański começa a descobrir o pesadelo logístico de colocar uma equipe de filmagem dentro de um barco navegando em águas não muito calmas. Sua relação profissional com Jolanta se deteriorava a cada dia. Primeiro ele teve de disparar um sinalizador marítimo perto dela para que demonstrasse alguma reação numa cena em que surpreende o estranho a viu pelada. “Isso ajudou, sua piranha?” perguntou o cineasta à moça – ela respondeu que sim, mas que foi um exagero da parte dele. A seguir, Polański descobre que ela não sabia nadar! Depois disso os dois passaram a se tratar através de agressões verbais. Então, na segunda semana de filmagem, Polański percebe que ela está comendo demais e começa a não caber no biquíni. O cineasta passou a fazer corrida com ela, que ficava amarrada nele para não perder o ritmo. Certo dia Polański sofre um acidente de automóvel e racha o crânio. Sobrevive para terminar o filme, que irá descrever como um filme que utiliza o clima de férias misturado a doses de ironia. A crítica estatal polonesa foi negativa – esse parece ter sido o ponto de partida de sua relação de amor e ódio com a mídia. Lançado nos Estados Unidos, a crítica local também não gostou muito, mas o cineasta foi capa da revista Time (o que impressionou muito seus amigos poloneses e calou a boca da crítica) e o A Faca na Água é indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro – bem mais do que Andrzej Wajda havia conseguido fora do bloco comunista. Abandonado por Basia, ele arruma as malas e parte.

“Depois que A Faca na Água recebeu suas primeiras pancadas, Polański carregou sua Mercedes, partiu para Cracóvia, despediu-se do pai e da madrasta e pegou a estrada rumo à França. Ele não retornaria à Polônia para trabalhar pelos próximos 19 anos. Uma vez cruzada a fronteira da Alemanha Ocidental, o diretor começou a se sentir como antes, deixando os quilômetros para trás ao som de Hit the Road, Jack (...)” (11) (imagens abaixo, em Mamíferos dois homens brigam por um trenó enquanto um terceiro rouba o veículo deles)

O Homem é o Lobo do Homem


“Você tem de mostrar a violência como ela de fato
é. Se não a retrata de maneira realista,  isto  é  imoral
 e perigoso.  Não  perturbar  as  pessoas é obsceno” 

Roman Polański (12)

A Faca na Água foi o primeiro longa-metragem da carreira de Polański. Este foi também o último filme que o cineasta realizou no país (em 2002, retorna para realizar O Pianista, The Pianist) antes de seu próximo trabalho na França, depois na Grã-Bretanha e então nos Estados Unidos, retornando para a França – neste último caso, mais por conta de um escândalo sexual na terra do Tio Sam do que por interesse próprio. Entre 1955 e 1962, a exata fração de tempo que Polański trabalhou no contexto do cinema polonês, realiza nove curtas-metragens. Em alguns filmes ele apresenta personagens que discordam entre si, levando a um conflito de sérias consequências, quando o equilíbrio é rompido por um intruso ou pela passagem do tempo. Imediatamente anterior à Faca na Água, embora tenha sido lançado depois, o curta Mamíferos (Ssaki, 1962) é um desses filmes onde tal tema aflora: em meio à neve, dois homens brigam pelo melhor lugar num trenó, enquanto isso um terceiro homem rouba o veículo. Percebendo que perderam seu precioso bem, eles voltam a se relacionar, mas isso dura pouco. Mazierska explica que a história ilustra o provérbio polonês (“quando dois homens discutem, o terceiro homem aproveita”). O título do filme nos convida, continua Mazierska, a tratar os três não como personagens, mas representantes da categoria dos mamíferos. Procurando aplicar o darwinismo social ao sugerir que lutar e adquirir poder faz parte da natureza humana, para Polański os homens cooperam entre si apenas em função da sobrevivência, fora disso não existe equilíbrio ou harmonia entre eles. Neste caso, assim como em A Faca na Água, Armadilha do Destino (Cul-de-Sac, 1966) entre outros, acompanhamos os personagens em situações, sem nunca saber seus motivos (13).

“(...) Susan Sontag […] afirma que tanto romances quanto filmes podem ser divididos em ‘analítico/psicológico’ e ‘expositivo/antipsicológico’. O primeiro tipo, representado por diretores como [Marcel] Carné, [Ingmar] Bergman, [Federico] Fellini e [Luchino] Visconti, e escritores como [Charles] Dickens e [Fyodor] Dostoievsky, estão preocupados com a revelação dos motivos dos personagens. O segundo, exemplificado pelo trabalho de [Michelangelo] Antonioni, [Jean-Luc] Godard e [Robert] Bresson, e pela literatura de Stendhal, se abstém de psicologizar; seus personagens são opacos, ‘em situação’. Estas categorias me parecem muito úteis para capturar algumas importantes características do cinema de Polański” (14) (Imagem abaixo, Polański atuando como a velha num dos flashbacks dela, Quando os Anjos Caem)


Polański  diz  que seu objetivo é entreter e criticou Godard
 por utilizar a câmera como ferramenta política. Para Mazierska, 
todos  os  filmes  são  ideológicos, trata-se apenas  de  investigar
quais são as dimensões ideológicas da obra de Polański (15)

O comportamento de uma pessoa depende mais de sua posição em relação aos outros indivíduos do que de sua consciência. Mamíferos também sugere que o conflito é eterno, e que força e trapaça são maneiras de tirar vantagem do oponente. Esta sombria conclusão em relação à condição humana remete a peças de Samuel Beckett como Esperando Godot (Waiting for Godot, 1952) e Fim de Jogo (Endgame, 1957), embora Mazierska afirme que o foco no caráter social dos humanos salva o filme, não se pode viver sem a interação com outros humanos. A necessidade de comunicar-se e ser aceito os força a controlar sua inveja e instintos cruéis. Polański chama atenção para a pena e a compaixão, consequentemente a solidariedade, enquanto motor de nossas ações. Mamíferos foi realizado em preto e branco, sem diálogos e sua velocidade foi alterada, o que o faz parece um comédia burlesca muda, levando a comparações com os filmes de O Gordo e o Magro (Laurel and Hardy). Mazierska explica que essa técnica torna humorísticas situações que de fato são trágicas e intoleráveis, criando um distanciamento do espectador e produzindo um efeito que aponta para a arte do absurdo. A situação de Mamíferos se reproduzirá em A Faca na Água e Armadilha do Destino. Além disso, de forma a comunicar, não se fala diretamente, mas através de uma linguagem altamente codificada - de acordo com Mazierska: em A Faca na Água, Krystyna brinca na água com uma boia em formato de jacaré, que substitui seu marido ou o filho que não tiveram; em Armadilha do Destino, Teresa maquia o rosto de seu marido e coloca nele um vestido, atestando sua falta de masculinidade. Polański não acredita que os casamentos existentes nestes filmes se resolvam por si mesmos, não por acaso o marido em A Faca na Água convida alguém de fora para olhar. (imagens abaixo, A Faca na Água)


O tema da água, que sejam rios, lagos, ou o mar, é provavelmente
o   traço   mais   característico   da   encenação   em  Polański,  como
 em   Dois Homens e um Armário,   A Faca na Água Piratas (16) 

Polański não acredita na recuperação desses casamentos a partir de dentro. Na maioria de seus filmes, a função do estranho que aparece surge no casamento de alguém é apenas destruir o equilíbrio inicial da vida do casal até ao ponto da mudança. Os homens se comunicam entre si somente através de objetos (a faca, por exemplo, em A Faca na Água), o que demonstra sua incapacidade. Alguns sugeriram que os personagens masculinos beligerantes em Polański são seus alter egos, ou a personificação de uma parte suprimida de sua psique. O estudante de A Faca na Água é, portanto, o duplo de Andrzej. Para Mazierska, apenas os personagens masculinos precisam de duplos. Em A Faca na Água, Krystyna não se encaixa no mundo dos homens, e não parece impressionar-se com os objetos de poder que tanto valorizam. Ao contrário deles, ela fala pouco e não revela sua identidade social. Demonstra poder ao tomar o forasteiro como amante e manter o marido, seu retorno para esse último ao final sugere que Krystyna prefere voltar para sua existência sem harmonia, colocando em cheque sua sinceridade emocional. Mazierska sugere as duas hipóteses possíveis. Krystyna traduz o lugar da mulher na Polônia socialista, onde elas não teriam a chance de uma vida independente dos homens - por mais que a propaganda sugerisse o contrário. Em segundo lugar, ela poderia ter optado em viver das benesses dos novos ricos poloneses – geralmente ligados à nomenklatura, aos burocratas do Partido Comunista e simpatizantes bajuladores, dos quais faz parte seu marido Andrzej. Seja qual for o caso, Mazierska conclui afirmando que Krystyna pode ser considerada com uma precursora de algumas heroínas dos próximos filmes de Polański, com Teresa em Armadilha do Destino, um dos três títulos de sua fase inglesa. (imagem abaixo, A Lâmpada)


Andrzej Munk se concentra em rituais nacionais e ciclos específicos
da  história  polonesa, que se tornam a causa principal  do  absurdo na
vida dos personagens. Para Polański o absurdo é comum e universal

No final de A Faca na Água, o carro para na estrada e Krystyna e Andrzej discutem a respeito do que fazer agora. Brincar de imitar um casal feliz agora ficou mais difícil entre eles. A narrativa de Armadilha do Destino é baseada numa premissa semelhante, embora a situação do marido neste último caso seja ainda mais difícil. Em comum com Krystyna, Teresa é a estranha entre seu marido e o convidado. Teresa parece desprezar tudo mundo, até seu amante. Além disso, também demonstra pouco respeito por bens materiais. Pode-se argumentar que Teresa aceitou o absurdo da vida, enquanto seu marido procura se apegar a coisas permanentes: casa, família, amor. No final de Armadilha do Destino, o convidado morre e o marido é deixado devastado e saudoso de sua esposa, enquanto Teresa vai embora com um homem que ela nem conhece. A ênfase em rituais (especialmente masculinos, como animais que se pavoneiam diante das fêmeas em busca de acasalamento) enquanto princípio básico de organização do comportamento humano, assim como narrativas circulares (tanto A Faca na Água quanto Armadilha do Destino terminam como começaram), ligam estes filmes e Mamíferos ao cinema de outro polonês, Andrzej Munk, especialmente Heróica (Eroica, 1958) e Má Sorte (Zezowate Szczescie, 1960) (no qual Polański foi assistente, um de seus primeiros trabalhos depois de deixar a escola de Łodź) (17). Em comum com Polański, os personagens de Munk também procuram se encaixar em papéis culturais, mas falham terrivelmente. Ademais, cada ciclo de ajustamento a alguma norma cultural leva a outro ciclo, não impede que mudanças dramáticas ocorram – Jan Piszczyk, seu mais famoso personagem, em Má Sorte, se recusa a desempenhar quaisquer papéis e fica feliz em ser mandado para a cadeia, onde pode finalmente ser ele mesmo, mesmo que isso signifique ser um ninguém. 


“O  primeiro  filme  de  Polański onde a cidade desempenha um
 papel maior é no curta-metragem O Gordo e o Magro (1961) (...) 

De modo geral, nos filmes de Polański a cidade é representada sob uma luz negativa (18)

Em seu quinto curta-metragem, Dois Homens e um Armário, eles saem do mar carregando um guarda-roupa para encontrar um ambiente hostil em terra firme. No final, os dois homens retornam para o mar levando o armário consigo, apontando para a impossibilidade de reconciliação entre eles e o mundo humano “normal”. Este trabalho se enquadra na categoria dos filmes de Polański que apresentam indivíduos mentalmente saudáveis que se encontram num mundo onde as regras são inaceitáveis para o espectador – o exemplo mais evidente aqui talvez seja O Pianista. Embora neste curta-metragem o armário esteja dissociado do contexto natural de uma casa, desempenha uma função similar aos armários em Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965), O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby, 1968) e O Inquilino (Le Locataire, 1976): guiar o personagem de uma vida material, e comum à outra sobrenatural. O espelho no armário nos apresenta um mundo que não existe: um peixe flutuando no céu. Mazierska remete ao pintor René Magritte, em O Homem do Mar, (l’Homme de la Mer, 1927).  Mazierska também resgata a figura do escritor Albert Camus, para quem o desejo mais profundo da mente é compreender e familiarizar-se com o mundo. A incapacidade para alcançar esse objetivo é uma importante fonte de absurdo e de dor – essa dor está no centro destes filmes e outros posteriores como Que? (What?, 1972), Piratas (Pirates, 1986), Busca Frenética (Frantic, 1988), e no curta-metragem A Morte e a Donzela (Death and the Maiden, 1994). Neste último, o personagem principal (o próprio Polański) vive com seu senhor longe de tudo e tenta fugir para a cidade que ele enxerga no horizonte. Mas ela vai continuar apenas sua cidade dos sonhos, já que o homem grande aborta todas as tentativas de escapada.


Jean Douchet concluiu que Polański admira a Nouvelle
Vague  francesa  pelo  simples  fato  de  A Faca na Água  filmar
 a juventude polonesaAfirmou também que o polonês preferiu
ser  fiel  ao  cinema-mentira e não ao cinema-verdade (19)

Talvez a saída de Polański para a França tenha certa relação com a perseguição dos judeus na Polônia do pós-guerra. Desta vez em função da opinião do primeiro ministro Władysław Gomułka, que se referia a uma suposta conspiração sionista. Ele foi responsável, em 1968, pela emigração em massa de judeus, sob o pretexto de seriam os insufladores da insatisfação popular de então (que se estendeu aos estudantes da Escola de Cinema de Łodź) (20) contra as políticas do Partido Comunista polonês – tudo começou, na verdade, em função do discurso de Nikita Khrushchov em 1956 denunciando os crimes de Stalin. Ewa Mazierska insiste em sugerir que as razões do cineasta não foram de ordem política ou, pelo menos, essa dimensão não teria sido tão significativa em sua decisão. Mas é também verdade Gomułka permitiu que pela primeira vez desde a guerra os poloneses teriam permissão de visitar parentes no exterior. Foi então que Polański partiu para Paris, foi visitar sua irmã que estava lá desde 1943 – quando os nazistas a deportaram da Polônia (21). Como Gomułka declarou em 1963 que não havia lugar no cinema polonês para A Faca na Água, o cineasta não tinha mesmo nada o que fazer na Polônia (22). Baseada em comentários do próprio Polański, Mazierska afirma que o que pesou mesmo foi o interesse dele em viajar pelo mundo (23). De qualquer forma, lá chegando entrou em contato com a Nouvelle Vague francesa, que considerou coisa de amadores – com exceção de Claude Chabrol. O “filme de viagem” é o gênero que mais interessa Polański. Não confundir com o road movie, nos filmes do cineasta a viagem é uma condição universal compartilhada por todos. Os meios e objetivos são vários: sobreviver, encontrar um lar, ganhar a vida, escapar de problemas ou do tédio.

“O favorecimento da viagem como modo narrativo afeta cinematografia e iconografia dos filmes de Polański. [...] O diretor emprega a visão subjetiva e mutável do viajante. Aliás, estradas e mar constituem lugares privilegiados em seus filmes. Cidades e vilas são normalmente representadas como uma reunião de estradas. E mesmo as casas não parecem estáveis, comportando-se como labirintos ou corredores, tentando ou forçando personagens a sair de seus apartamentos e se mudar para qualquer outro lugar, muitas vezes para uma ordem ontológica distinta, através de um armário que conecta natural e sobrenatural” (24) (imagem abaixo, um dos flashbacks coloridos da vida em preto e branco da velha, Quando os Anjos Caem)

Polański e o Teatro do Absurdo


 “O  mundo  se  tornou  por  demais  surreal
 e absurdo para se fazer filmes surrealistas”

Roman Polański

 Frase  atribuída  ao  cineasta,  ator  e  roteirista,  supostamente  pronunciada na época 
da estreia de seu décimo longa-metragem, Tess - Uma Lição de Vida (Tess, 1979) (25)

Na Polônia das décadas de 1950 e 1960, o Absurdismo utilizado para falar do país, então sob o governo comunista, exalava ares de realismo! Os filmes de Polański em sua fase polonesa, particularmente A Faca na Água, foram interpretados como parábolas da Polônia do pós-guerra. A literatura do absurdo era muito disseminada na região, o que talvez facilitasse esse tipo de interpretação. Basta saber que quando Esperando Godot, de Samuel Beckett, foi encenada pela primeira vez na Polônia em 1956 (na mesma época do breve degelo político que se seguiu à morte de Stalin), a plateia compreendeu imediatamente a peça como um retrato da vida de frustrações numa sociedade que relativiza as dificuldades do presente justificando-as em função de um futuro supostamente abundante e feliz. Geralmente A Faca na Água é comparado a O Sol por Testemunha (Plein Soleil, René Clément, 1960), que dois anos antes já apresentava esse enredo de três pessoas num barco. Por outro lado, Mazierska acredita que uma peça de 1961, No Alto-Mar (Na pełnym morzu), de Sławomir Mrożek, outro polonês que se interessou pelo Absurdismo, possa ser invocada como inspiração de Polański. A peça, em torno de três náufragos no meio do nada, aborda um dos temas favoritos do cineasta: a vitimização de uma pessoa por outra. Tadeusz Różewicz, mais um dramaturgo polonês da mesma leva, poderia também ser relacionado à obra de Polański em relação ao interesse deste pela crueldade encontrada no cotidiano de pessoas comuns que se mostram indiferentes aos crimes cometidos por outros – é difícil não relacionar o interesse de ambos aos horrores do cotidiano da Polônia durante a ocupação pelos nazistas: a mãe do cineasta acabou seus dias em Auschwitz e o irmão de Różewicz foi morto pela Gestapo (26).


  Muitos críticos viram Nouvelle Vague em A Faca na Água.    
Contudo, na opinião de Mazierska aqueles franceses,  primeira
geração que  não  tinha  lembranças  da  guerra, apresentavam
apenas  uma  sensibilidade  similar  à  de  Roman  Polański

“Os  primeiros  filmes  de  Polański  também  foram comparados ao trabalho de Bergman,
Antonioni e Godard, todos utilizam o tema da viagem em sua narrativa e iconografia” (27)

O absurdo da existência humana também permeia a obra de Witold Gombrowicz. Tanto ele quanto Polański chamam atenção para as circunstâncias sociais, em oposição à moral individual, como o principal mecanismo do comportamento humano. Ambos atribuem a elas a responsabilidade pelo absurdo da vida humana e a habilidade para superá-la. Para Polański, todos são capazes de qualquer coisa em determinado momento: a oportunidade faz o ladrão, o assassino, a vítima e o herói. O Absurdismo compartilha um terreno comum com a arte romântica, considerada o paradigma da cultura polonesa, incluindo o cinema do pós-guerra. Enquanto o primeiro cria um distanciamento da plateia, o segundo evoca compaixão e solidariedade. O Absurdismo, assim como os filmes poloneses de Polański, constitui uma reação à saturação da arte polonesa com o Romantismo – em sua obra, o cineasta fez muitas referências a Samuel Beckett e especialmente Harold Pinter, de quem nunca escondeu a admiração (28). Na opinião de Mazierska, o cineasta nunca assumiu essa estética apenas por considerar o cinema como um meio bem mais realista do que o teatro. De qualquer forma, para ela Polański revela uma sensibilidade em relação ao Absurdismo na maioria de seus filmes. Seja em sua fase polonesa ou além, o que varia entre os personagens são as causas da falta de harmonia e as circunstâncias que permitem a eles perceber o absurdo de suas vidas. Escrevendo em 2004, Mazierska esclarece:

“(...) Três tipos principais de absurdo em seus filmes podem ser identificados. O primeiro ocorre quando existe um conflito entre duas ou três pessoas que não pode ser resolvido satisfatoriamente. Tal conflito pode ser visto como causa de uma situação absurda ou como catalisador, permitindo que o personagem perceba que não existe harmonia em sua vida. A segunda categoria, que chamo de ‘discórdia interior’, refere-se a personagens que parecem estar em conflito consigo mesmos. Nos casos mais sérios, são esquizofrênicos. A terceira categoria engloba a situação onde um protagonista com a mente saudável não consegue reconciliar até mesmo seus interesses e direitos mais básicos com o mundo no qual se encontra. Nesse caso, o mundo inteiro é absurdo. Estas categorias coincidem com a cronologia do cinema de Polański. O primeiro tipo de absurdo predomina no início de sua carreira, marcada por filmes como A Faca na Água e Armadilha do Destino, o segundo tipo domina a parte do meio, célebre por O Bebê de Rosemary e O Inquilino; a terceira é típica dos filmes recentes de Polanski: A Morte e a Donzela, O Pianista e Oliver Twist (2005)” (29)

Drama do Lago do Jazz


Os símbolos cristãos em A Faca na Água são mostrados com ironia
 – como  o  carona  de  braços  abertos e caminhando sobre a água (30) 

O desafio do autor de dramas é transmitir a complexidade do personagem, enquanto no melodrama o foco está em retratar suas circunstâncias externas. Neste sentido, Mazierska afirma que a longevidade de filmes como A Faca na Água e Armadilha do Destino decorre de se articular através da estrutura do drama ao mesmo tempo em que prometem muita ação melodramática – seus filmes em torno de personagens esquizofrênicos, como Repulsa ao Sexo, são ambíguos, podem ser interpretados tanto como dramas quanto melodramas. Para Mazierska, Polański tem grande habilidade em oscilar entre esses dois polos, da mesma forma que pode oscilar entre realismo e psicologismo. Como é evidente para qualquer um, a água é o elemento externo que serve de pano de fundo para articular o ímpeto dos três personagens em A Faca na Água. Em Dois Homens e um Armário, dois homens vêm do mar, que constitui uma realidade melhor do que a terrestre. Em A Faca na Água, os protagonistas passeiam de barco nos lagos masurianos. O estudante, que se assusta com a água, é uma versão mais jovem de Andrzej: vaidoso, egoísta e agressivo. Os lagos masurianos têm uma significação especial para a intelligentsia polonesa do pós-guerra. Especialmente a geração nascida entre os anos 1920 e 1930. Naquela época, sair de Varsóvia ou Cracóvia e viajar para lá se tornou para os poloneses uma oportunidade para escapar mentalmente das ideologias fascista e mergulhar e m elaborações filosóficas e discussões literárias – como era pouco industrializada e de baixa densidade demográfica, as autoridades comunistas ignoravam a região. Era considerado um passeio romântico. A canção que Krystyna canta foi composta por Agnieszka Osiecka (“Você em todos os lagos”, Na całych jeziorach ty), poeta e compositora que inaugurou a moda das férias e fins de semana nos lagos masuriamos (31). (imagem abaixo, A Faca na Água)


O  jazz  que se ouve em A Faca na Água aparecia um pouco em todo
lugar   na   Polônia.  Naquela  época,   era   o   símbolo  da  juventude
moderna  em  oposição  aos  valores conservadores. Naturalmente, o
governo  comunista  considerava  apenas propaganda capitalista (32)

Através de uma série de contrastes em A Faca na Água, ao invés de montar um cenário idílico hollywoodiano, Polański utiliza o contexto de maneira ambígua. Embora seja jornalista de esportes, Andrzej não parece se sentir bem na água. Sua vida opulenta contrasta com a de Osiecka, e propaga os valores socialistas de obediência, humildade e fé cega na autoridade. O estudante é considerado imaturo demais para apreender qualquer valor. Ao contrário de Dois Homens e um Armário, aqui o mar tem mais poder de transformar as pessoas da terra.

“Tal como acontece com muitos elementos da encenação em Polański, o mar tem seu duplo – o céu. Sua semelhança é perfeitamente capturada em Dois Homens e um Armário quando um peixe parece estar voando pelo céu. O espelho no guarda-roupa onde o peixe está voando produz essa ilusão. Da mesma forma, na primeira cena de Macbeth, não estamos certos se a terra toca o mar ou o céu. Depois de algum tempo, toda a paisagem está coberta por uma névoa, uma espécie de matéria prima a partir da qual tudo emerge e para a qual eventualmente retorna. A semelhança entre o céu e o mar também é sugerida pelo comportamento de vários personagens de Polański, que no momento de crise tendem a olhar para os dois como se esperassem algum socorro da parte deles – geralmente em vão. A pessoa se sente como se estivesse rodeada por duas entidades ou dois tipos de vazio, que tornam sua luta contra a insensatez [o absurdo] particularmente difícil” (33) (imagem abaixo, A Faca na Água)

O Poder Corrompe


Alguns viram em A Faca na Água uma discussão do conflito 
 de gerações,  outros a crítica velada ao regime comunista polonês. 
Entretanto, deveria ocorrer aos críticos   o   interesse   de   Roman
Polański em discutir a distância entre autoridade e poder “nu”

Através de A Faca na Água Polański introduz uma série de reflexões a respeito da natureza das relações de poder – o que já é muita coisa, considerando que estava conseguindo fazer isso em pleno governo comunista da Polônia no auge da Guerra Fria, e através de uma mídia totalmente dependente do Estado para sua realização. Mazierska inicia sua explicação diferenciando “poder” e “autoridade”. Este último envolve a capacidade de controlar baseado em qualidades intrínsecas àquele que está em posição de mando ou possui um saber que outros não alcançam. O poder, pelo contrário, poder ser “nu”, baseado apenas em músculos fortes, facas e armas. Os curtas Mamíferos, O Gordo e o Magro (Le Gros et le Maigre, 1961), e o longa A Faca na Água, são os primeiros filmes onde Polański trata abertamente a questão da autoridade em oposição ao poder “nu”. Em A Faca na Água, Andrzej se esforça para demonstrar autoridade: sua esposa Krystyna obedece a suas ordens sem entusiasmo e num silêncio que parece questionar a posição superior em que ele se coloca. Para exercitar sua autoridade sobre outra pessoa e afirmar seu poder sobre ela, Andrzej convida um estudante para acompanhar no barco - papel de filho substituto que vira um Édipo, seduzindo sua “mãe” descartando o pai. Andrzej não pretende ensinar ninguém a velejar ou ser paciente, apenas controlar e humilhar um subalterno em frente à sua esposa. Na Polônia de 1962, A Faca na Água foi interpretado como metáfora da rejeição de uma autoridade socialista paternalista, incompetente e hipócrita. Rejeição de um sistema político que pretende ter autoridade, mas possui apenas poder. Os efeitos de possuir tanto poder político e físico quanto autoridade moral num Estado totalitário estará de volta em 1994, no centro do discurso em A Morte e a Donzela (34). “Se existem dois homens a bordo, um é o capitão”, diz Andrzej em A Faca na Água.

“(...) Os esforços de Andrzej para humilhar o rapaz procuram reforçar sua própria coragem aos olhos da cética Krystyna. Seu medo e ciúme tornam-se patentes quando acorda e não a encontra no interior do barco, sua imediata reação de pegar a faca indica a determinação de tratar do assunto – e do rapaz – pessoalmente, o que faz ordenando que limpe o convés. Tudo e qualquer coisa podem encenar o drama simbólico da rivalidade (...)” (35) (imagem abaixo, A Faca na Água)


“Gente como Truffaut e Godard são como garotos brincando
de fingir de revolucionários. Passei dessa fase. Fui criado
num país onde essas coisas aconteceram para valer”

Roman Polański (36)

Reação do cineasta ao ser convocado pelos dois a boicotar o Festival  de  Cannes em 
solidariedade aos distúrbios de maio de 1968 na França e contra a demissão de Henry Langlois 
da cinemateca de Paris. Na época, a moda  era  ser  comunista  da  vertente  maoista

O poder físico, resultante da posse de ferramentas que permitem mutilar e matar, sem autoridade é muito mais efetivo do que a autoridade desacompanhada do poder físico, esta é a mensagem de filmes como A Faca na Água, A Morte e a Donzela e O Pianista. Polański mostra que pessoas portando facas ou armas de fogo podem ser consideradas imorais, mas são elas que conseguem que os outros obedeçam suas ordens. Como o detonador que Walker carrega em Busca Frenética, a arma de Paulina em A Morte e a Donzela, a faca do estudante em A Faca na Água supera todos os objetos que Andrzej possui. O poder de uma arma de fogo, uma faca ou um punho deriva do simples fato de que para a maioria das pessoas preservar a própria vida é mais importante do que vencer um argumento. Logo conclui Mazierska, para Polański estar vivo numa posição de poder é a maneira de convencer aos outros que você está certo. Por outro lado, em Macbeth (1971), Polański mostra o poder não balizado em respeito, confiança e compaixão torna-o muito instável para aqueles que o detém. Quanto mais poder acumula, Macbeth se torna mais e mais inseguro e solitário, até que fica totalmente só em seu trono inútil esperando que seu castelo seja invadido por um exército hostil. A queda de Macbeth demonstra que é melhor proteger sua arma do que sua coroa.

“Para concluir, Polański mostra profunda desconfiança de instituições e pessoas em posição de autoridade. Em seus filmes os agentes da autoridade nunca são altruístas – seu principal objetivo não é beneficiar os outros, mas seus próprios interesses. O autor muitas vezes rejeita a autoridade como incompetente e até mesmo como um obstáculo para se alcançar o objetivo ao qual ela afirma servir e promover. Além disso, ele mostra que possuir algum tipo de autoridade a atitudes universalizantes ou totalitárias. A pessoa que possui autoridade numa área muitas vezes também procura impor sua vontade em outras; um homem que tem autoridade sobre uma pessoa esforça-se para aumentar seu grupo ou seguidores fiéis. Em resumo, poder e autoridade corrompem. Se existe uma lição moral a ser aprendida com os filmes de Polański, é confiar apenas em si mesmo ao invés de outros, e transportar os meios para se proteger contra as forças ameaçadoras que pode encontrar na vida” (37)


Leia também:

Notas:

1. SANDFORD, Christopher. Polanski, uma Vida. Tradução Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. P. 87.
2. Idem, pp. 78-9, 86, 89, 97.
3. Ibidem, p. 79.
4. Ibidem, p. 86.
5. KYROU, Ado. Le Surrealisme au Cinema. Paris: Éditions Ramsay, 2005. P. 169.
6. COATES, Paul. Knife in the Water. In: HAMES, Peter (Ed.). The Cinema of Central Europe. London/New York: Wallflower Press, 2004. Pp. 84-5.
7. SANDFORD, C. Op. Cit., p. 91.
8. Idem, pp. 91-2, 97-100.
9. Ibidem, p. 103.
10. Ibidem, p. 94.
11. Ibidem, p. 103.
12. Ibidem, p. 170.
13. MAZIERSKA, Ewa. Roman Polanski. The Cinema of a Cultural Traveller. London/New York: I. B. Tauris, 2007. Pp. 29-36, 44, 71, 73-4, 147, 167.
14. Idem, pp. 140-1.
15. Ibidem, p. 115.
16. Ibidem, pp. 83-4.
17. SANDFORD, C. Op. Cit., p. 90.
18. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., pp. 73, 82.
19. DOUCHET, Jean. Nouvelle Vague. Paris: Cinémathèque Française/Hazan, 1998.  P. 205.
20. STOK, Danusia (Ed.). Kieślowski on Kieślowski. London: Faber & Faber, 1993. P. xv.
21. SANDFORD, C. Op. Cit., pp. 83, 84.
22. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Paris: Quadrige/Puf, 2001. P. 351.
23. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., p. 15.
24. Idem, p. 190.
25. Ibidem, p. 5.
26. Ibidem, pp. 26-8.
27. Ibidem, pp. 99, 185.
28. SANDFORD, C. Op. Cit., p. 123.
29. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., p. 28.
30. Idem, p. 123.
31. Ibidem, pp. 47-9, 82-6.
32. Ibidem, pp. 97-9.
33. Ibidem, p. 88.
34. Ibidem, pp. 124-5, 128.
35. COATES, P. Op. Cit., p. 79.
36. SANDFORD, C. Op. Cit., pp. 168-9.
37. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., pp. 128-9.

18 de nov. de 2017

As Crianças de François Truffaut


 “Meus filmes são uma crítica à moda francesa de educar as crianças” 

François Truffaut,
Le Nouvel Observateur, 2 de março de 1970 (1)

Criança Grande

Durante os anos 1970, François Truffaut foi um militante em favor da infância, sustentando diversas associações comprometidas com o bem estar das crianças. Com Idade da Inocência (L’Argent de Poche, 1976), o cineasta retomou um projeto guardado desde o início de sua carreira nos anos 1950. Os Pivetes (Les Mistons, 1957), seu segundo curta-metragem, deveria ter sido o primeiro de vários tendo a infância como tema central. Em Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), talvez seu trabalho mais famoso, volta algumas daquelas histórias. Contudo, apenas em meados da década de 1970 retornará ao tema. Em 1972 havia apenas uma sinopse escrita em colaboração com Suzanne Schiffman, onde Truffaut misturava ficção e autobiografia. Em 1974, Truffaut decide retomar o projeto. Sem intenção de escrever um roteiro tradicional, preferiu improvisar com as crianças e construir os diálogos a partir do vocabulário delas. O enredo de Idade da Inocência é composto de cenas curtas que ilustram diferentes aspectos da infância, cujo ponto em comum é a extrema resistência e capacidade de sobrevivência que o cineasta atribuía às crianças – não por acaso, o título inicial do filme era A Pele Dura – também se chamou Les Enfants e Abel et Calins (2). Trezentas crianças se apresentam para os testes de elenco, apenas quinze interpretariam os papeis principais. O local escolhido foi Thiers, no centro da França – também houve filmagens em Clermont-Ferrand (3). Alunos da escola local fizeram figuração, e os filhos de alguns amigos de Truffaut ficaram com os papéis principais – o filho de Lucette e do cineasta Claude Givray será Patrick; o filho do filósofo Lucien Goldman será Julien. As filhas de Truffaut também participam, Laura será Madeleine Doinel, mãe do pequeno Oscar; Eva será Patrizia. Funcionários da escola e até o prefeito da cidade receberam papeis (4). Durante entrevista em 1976, Truffaut relembra o retorno do interesse no tema:

“Enquanto eu filmava [Os Incompreendidos] durante cinco dias numa sala de aula, dizia a mim mesmo que teria adorado ficar ali durante o filme inteiro, sem estar aprisionado pelo roteiro linear. Mais tarde, estive - por três dias - no instituto de surdos-mudos para O Garoto Selvagem, retornou o desejo de fazer um filme sobre muitas crianças. Foi isso, Idade da Inocência: instalar-me com uma equipe numa cidade do interior durante dois meses inteiros, trabalhar com a unidade de tempo e lugar, com uma escola inteira à minha disposição e toda a cidade como pano de fundo” (5) (imagem acima, o professor Richet até que tentou, ele fechou a porta da sala de aula para poder dar um beijo em sua esposa grávida, mas por algum motivo esqueceu-se de que a porta tem uma parte em vidro, permitindo que os meninos vissem e acompanhasse toda a cena)


Inicialmente, a busca por autenticidade levou Truffaut às crianças do
  interior. De Os Pivetes, passa à cidade grande em Os Incompreendidos,  
para voltar ao interior em  O Garoto SelvagemIdade da Inocência

A estreia de Idade da Inocência foi um triunfo de bilheteria, alcançando quase 500 mil espectadores em seis meses, igualando o sucesso de Os Incompreendidos. Tudo isso compensou o desgaste físico e o fracasso de bilheteria que foi o filme anterior, A História de Adèle H. (L'Histoire d'Adèle H., 1975) na França – embora no mundo e nos Estados Unidos tenha sido um sucesso, ao qual se somaria Idade da Inocência. Um mês após a estreia em Paris, Truffaut foi orgulhoso mostrar o filme para os habitantes de Thiers. O cineasta norte-americano Steven Spielberg assistiu Idade da Inocência e O Garoto Selvagem (também conhecido no Brasil como O Menino Selvagem, L'Enfant Sauvage, 1970) (o qual afirma tê-lo influenciado muito, juntamente com A Noite Americana, La Nuit Américaine, 1973), outro filme de Truffaut que dialoga com o mundo das crianças, e convidou o cineasta francês para participar de seu próximo filme, Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters of the Third Kind, 1977), no papel de um cientista francês especialista em discos voadores. “Eu precisava de um homem que tivesse a alma de uma criança, dirá Spielberg, alguém cuidadoso, caloroso, totalmente capaz de admitir o extraordinário, o irracional” (6). Entretanto, essa alma de criança não significa dizer que o adulto questionador abandonou o discernimento de Truffaut. Como ressaltou Antoine de Baecque, subjacente à obra do cineasta existe uma crítica profunda da maneira como a criança é acolhida pela sociedade francesa, como revelou durante entrevista à Le Nouvel Observateur, em 2 de março de 1970:

“(...) Meus filmes são uma crítica à maneira francesa de educar as crianças. Apenas pouco a pouco me dei conta disso, enquanto viajava. Fiquei impressionado ao ver que a felicidade das crianças não tem nada a ver com a situação material de seus pais, de seus países de origem. Na Turquia, país pobre, a criança é sagrada. No Japão, é inconcebível que uma mãe possa ser indiferente a seus filhos. Aqui, as relações crianças-adultos são sempre ruins, mesquinhas. (...) Eu vejo a vida como algo muito difícil; acredito que é preciso possuir uma moral muito simples, muito áspera e muito forte. É preciso dizer: ‘Sim, sim’, mas fazer apenas aquilo que se deseja fazer. É por este motivo que não pode haver violência direta em meus filmes. Em Os Incompreendidos, Antoine [Doinel] é uma criança que nunca se revolta abertamente. (...) O que substitui a violência é a fuga, não diante do essencial, mas para alcançá-lo. Creio haver ilustrado isso em Fahrenheit 451 (1966). É o aspecto mais importante do filme, a apologia da astúcia. ‘Ah tá! Os livros estão proibidos? Muito bem, então vamos decorá-los’ (...)” (7) (imagem abaixo, Sylvie comunica aos vizinhos que está com fome)

O Coletivo e o Particular 


(...) Tanto no cinema quanto na literatura, as obras primas
 consagradas  à  infância  se  contam nos dedos da mão (...)” 

François Truffaut (8)
Annette Insdorf considera O Garoto Selvagem um exemplo clássico de como Truffaut conseguiu exprimir sem sentimentalismo a necessidade de liberdade e ternura, a espontaneidade e as frustrações da criança numa sociedade construída por e para adultos. Seu elogio a Jean Vigo, outro que para de Insdorf conseguiu mostrar a infância com realismo poético, poderia se aplicar à sua própria obra. Em Zero de Conduta (Zéro de Conduite: Jeunes Diables au Collège, 1933), disse Truffaut, Vigo consegue representar algo mais raro do que em O Atalante (L'Atalante, 1934), porque tanto no cinema quanto na literatura, as obras primas consagradas à infância se contam nos dedos da mão. Sua dimensão biográfica nos remete à nossa própria época de colégio. Em Idade da Inocência, a adesão de Truffaut à espontaneidade e a improvisação é quase total. Embora nem todos concordem que o cineasta tenha conseguido isso, na tela as crianças sempre parecem estar fazendo as coisas pela primeira vez. Para Insdorf, mesmo onde em Truffaut a infância não é o tema, geralmente são inesquecíveis: Sabine Haudepin em Jules e Jim - Uma Mulher para Dois (Jules et Jim, 1962) e Um Só Pecado (La Peau Douce, 1964); Christophe Bruno em A Noiva Estava de Preto (La Mariée Était en Noir, 1968); Jérôme Zucca em Uma Jovem Tão Bela como Eu (Une Belle Fille comme Moi, 1972) e O Quarto Verde (La Chambre Verte, 1978). Nas adaptações, Truffaut às vezes introduz crianças: Fido, o irmão mais novo de Charlie, em Atirem no Pianista (Tirez sur le Pianiste, 1960); em Fahrenheit 451 crianças fogem em direção à Clarisse; em A Noiva Estava de Preto, alunos aguardam a chegada da senhorita Becker; em O Garoto Selvagem, o vizinho recebe um bebê e um filho que não estavam  no texto original de Itard (9).


“Enquanto era crítico de cinema, Truffaut sempre detestou a forma
 como  as   crianças   são  habitualmente  apresentadas  na  tela   (...)” 

Como  exemplos  de  retratos  deformados  e  idealizados da infância especialmente criticados por Truffaut, Insdorf cita
Brinquedo Proibido (Jeux Interdits, 1952), de René Clément, e Crianças sem Destino (Chiens Perdus sans Collier, 1955), de Jean
Delannoy – acima, em Os Pivetes, um dos primeiros filmes de Truffaut, crianças destroem um cartaz deste último  (10)

Truffaut distribui textos para muitas crianças, nenhum deles ator, e pede que recitem a “declaração de Harpagon” (O Avarento, peça teatral de Molière, estreou em 1668), que escutamos no começo do filme. Na media em que a personalidade de algumas delas começam a sobressair, Truffaut e Suzanne Schiffman retrabalham a história. Idade da Inocência vai da primeira infância até o primeiro beijo, passando por tudo que marca o movimento (mais do que “evolução” diria Truffaut) em direção à idade adulta. No início de Os Incompreendidos o professor em sala de aula intercepta a fotografia de uma mulher nua que passava pelas mãos de todos, mas apenas Antoine será punido. No começo Idade da Inocência o professor intercepta um cartão postal que prende a atenção do pequeno Raoul. Ao trazer o aluno para frente da sala, esperamos que o homem vá punir o menino. Contudo, a simetria da punição com o filme anterior para por aí, já que o professor transforma aquilo numa chance para fazer uma descrição geográfica a partir do endereço do remetente (sem citar o conteúdo). A seguir, o professor protagoniza uma situação anedótica ao beijar a esposa na porta da sala – embora tivesse o cuidado de fechá-la, ela possuía uma janela de vidro... No caso de Julien e Patrick, o enredo é mais complexo. O primeiro é calado, veste roupas velhas e surge misteriosamente no final do último trimestre e dorme no fundo da sala de aula. Mora num barraco isolado com duas loucas, a mãe e a avó, que o maltratam física e psicologicamente - comete pequenos furtos perambulando solitário. Patrick, que mora e cuida do pai deficiente físico, se apaixona pela mãe de um amigo e arranca seu primeiro beijo de Martine numa colônia de férias. Durante uma entrevista em 1976, Truffaut se refere aos dois garotos: 

“Eles representam dois personagens contrastantes, o louro e o moreno, um muito aberto e o outro mais tenebroso (...) Eu sabia, desde o início, que queria falar sobre uma criança mártir, pois deles existem muitos milhares na França, dos quais falamos nos jornais, mas nunca nos filmes” (11) (imagens abaixo, Martine e Patrick, o primeiro beijo e a carta dela para o primo com a caneta-lâmpada)

A Questão da Encenação


(...) Ainda que a influência de Truffaut tenha sido decisiva para
a emergência da criança ator, num filme como Idade da Inocência 
ainda estamos longe de poder de fato falar em encenação (...)

Nicolas Livecchi (12)

Evidentemente, nos lembramos do pequeno John Leslie Coogan, que contracena com Charles Chaplin em O Garoto (The Kid, 1921). Contudo, nem só de Chaplin viveu o cinema mudo! Uma lista aleatória apenas ilustrativa e necessariamente incompleta poderia apontar, bem antes disso, desde 1895, que o cinema dos irmãos Lumière tinha também suas crianças prodígio. A seguir, aos seis anos de idade, René Dary atuava como o personagem Bébé Abelard, desde 1910, sob a direção de Louis Feuillade. Ele trabalhou em pelo menos noventa curtas-metragens, até que em 1913 Feuillade o substituiu por René Payen, que aos quatro anos de idade protagonizou a série de curtas Bout-de-Zan. Em 1925, o belga Jacques Feyder realizou Visões de Criança (Visages d'Enfants), considerado o primeiro filme a mostrar a psicologia da criança, com sua mistura de crueldade e sensibilidade. Aqui uma criança atua num papel sério, digamos um passo além de O Garoto: o personagem Jan Amsler, interpretado por Jean Marie Forest, então com onze anos de idade, tenta o suicídio. Certo, ainda assim, Coogan foi a primeira criança estrela de Hollywood; surge a fórmula imbatível no cinema: as duplas com um adulto e uma criança. Contudo, foi o filme de Feyder que ultrapassou a linha que até então não permitia ainda que crianças tivessem personalidade. Em Visões de Criança, onde três crianças que perderam a mãe são obrigadas a conviver com a nova esposa do pai, Feyder antecipa Quando o Amor é Cruel (Incompreso (Vita col Figlio), direção Luigi Comencini, 1967), Eu Sou o Senhor do Castelo (Je suis le Seigneur du Château, direção Régis Wargnier, 1989) e Ponette (direção Jean Doillon, 1996), onde o protagonista não se recupera da morte dela. Visões de Criança inova ao adotar o ponto de vista das crianças (13).

“(...) O paradoxo é que numa época onde o estilo de encenação em vigor está relacionado a uma pantomima exagerada Visões de Criança oferece, da parte de seus jovens atores, atuações sóbrias e surpreendentemente naturais, que sem dúvida devem muito à clareza das situações descritas” (14)


 Das histórias que Truffaut não utilizou  em  Idade da Inocência 
uma era inspirada em fatos reais: um menino nos Estados Unidos
tinha problemas imunológicos e vivia numa bolha de plástico (15)

Segundo Nicolas Livecchi, Idade da Inocência parece ao mesmo tempo fechar um ciclo e anunciar a entrada da criança ator na modernidade: Tubarão (Jaws) e Un Sac de Billes (Um Saco de Bolinhas), dirigidos, respectivamente, pelo norte-americano Steven Spielberg e o francês Jacques Doillon, foram lançados em 1975, ano em que Truffaut ainda filmava Idade da Inocência, mas seu filme mostra antes o que é a criança ator. Ainda de acordo com Livecchi, nos vários quadros de Idade da Inocência Truffaut sintetiza as diferentes representações cinematográficas da infância e convoca tanto seus próprios filmes quanto aqueles dos franceses Maurice Pialat, como Infância Nua (L'Enfance Nue, 1968), ou de Jean Eustache, como Meus Pequenos Amores (Mes Petites Amoureuses, 1974) – evocados, respectivamente, aos personagens Julien e Patrick. Desta forma, conclui Livecchi, Idade da Inocência reúne uma amostragem bastante exaustiva das situações de encenação que os jovens atores podem encontrar (16). Para nos estendermos em apenas um desses autores, a obra de Eustache é atravessada por imagens extremas de crianças, que por sua vez referiu Intendente Sansho (Sanshô Dayû, 1954), do japonês Kenji Mizoguchi, história de crianças privadas sucessivamente de sua mãe e vendidos como escravos, como tendo sido um filme determinante em sua vocação de cineasta. Francis Vanoye não compreende o motivo que teria levado alguns a reprovar a escolha de Ingrid Caven por Eustache como mãe de Daniel em Meus Pequenos Amores: ela representa perfeitamente a máscara da mãe-estrela distante, cujo olhar é desprovido de afeto quando pousa sobre seu filho (17) – Caven é do grupo de atores do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, e foi casada com ele.


“Como Antoine  e  Julien, em Idade da Inocência, Truffaut encontra
o conforto do lar na sala de cinema:  entra pela saída ou a janela dos
banheiros, ou rouba dinheiro para pagar a entrada.   Às vezes, com o
dinheiro do lanche, pula a refeição e a escola para ir ao cinema (...)(18)

Spielberg e Doillon são os dois jovens cineastas que Truffaut encoraja desde o início. Em Idade da Inocência, podemos acompanhar seu método de trabalho e pensar a encenação para crianças. Segundo Livecchi, mesmo que seus filmes tenham aberto um campo interessante para a criança enquanto sujeito, são bem tímidos em matéria de direção de ator: Truffaut adotou um método que atualmente chamaríamos de “primitivo” no que diz respeito ao trabalho que esperava das crianças. O fato é que Truffaut aplicou às crianças o mesmo princípio que empregava com os atores e atrizes adultos, ele não “dirigia” ninguém, limitando-se a descontrair as pessoas. Da mesma forma que os adultos, explicou o cineasta, as crianças não são como cãezinhos e não atuam apenas para projetar uma imagem favorável de si mesmos. Elas atuam apenas por duas razões: se divertir (então preciso entrar no jogo delas) ou para ajudá-lo. É neste sentido que Truffaut confessou sua impotência para “dirigir” crianças. A respeito de Os Pivetes, Truffaut lembra que as crianças eram muito capazes quando a encenação lhes pedia que fizessem as coisas que estavam acostumadas a fazer em suas vidas cotidianas. Por outro lado, quando deviam seguir algo do roteiro, isso os incomodava. A partir daí o cineasta decidiu que nunca mais faria uma história artificial, onde as crianças fossem direcionadas para demonstrar alguma coisa. No geral, conclui Livecchi a respeito de Idade da Inocência, o efeito de realidade perde para a artificialidade. No futuro, o cinema irá sempre à busca do tom exato. A encenação da criança ator teria de esperar Spielberg e Doillon para atingir a maturidade. Truffaut estava terminando Idade da Inocência quando Spielberg o convida para atuar em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (19). 


Truffaut  decidiu  cortar  de  Idade da Inocência a história do
menino que descobre   que  seu  pai  é  na   verdade  seu  padrasto.
Elemento autobiográfico, o cineasta já havia causado um racha na
 família quando inseriu este tema em Os Incompreendidos (20)  

Portanto, desde Os Incompreendidos Truffaut não deixou de buscar certa naturalidade da criança, que segundo ele possuem um sentido formidável para o realismo. Na opinião do próprio cineasta, os erros cometidos em Os Pivetes levariam Os Incompreendidos a estar muito mais próximo da infância e do documentário, trabalhando com um mínimo de ficção: Truffaut filma, capta, observa, mas não dirige. O cineasta compreendeu que a questão com as crianças é seu comportamento inesperado. Quando você diz “ação”, explicou, existe sempre uma chance em duas que a criança simplesmente vire as costas e vá embora. Por esse motivo elas não foram escolhidas para Idade da Inocência em função do personagem que deveriam interpretar, mas de acordo com sua vivacidade, vocabulário e até mesmo sua disponibilidade. Truffaut os distribuiu em duas salas, uma com trinta e cinco e outra com vinte e cinco alunos, para que pudesse estudá-los. O fato de que com exceção de Patrick, Martine e Julien, todas as crianças eram chamadas pelo próprio nome, indica a recusa do cineasta em relação à ficção. Truffaut sublinha que não apenas a improvisação é sempre enriquecedora num filme interpretado por crianças, como em Idade da Inocência se tornou em absolutamente necessária. Não faz sentido, insistiu Truffaut, que os diálogos sejam escritos sem a participação das crianças. De fato, o roteiro original trazia poucos diálogos, ele explicava as cenas para as crianças e deixava que fizessem com suas próprias palavras. Apesar disso, o roteiro tinha seu peso, como quando ele insistiu para que sua filha Eva beijasse Bruno durante a cena no cinema, apesar dela insistir com o pai que não queria fazer isso! O filme deve ter, disparou Truffaut direto entre os olhos dela, prioridade em relação aos sentimentos.

“(...) Sequências filmadas em grande desordem [cronológica], um texto quase inexistente, planos curtos e filmados rapidamente: a experiência vivida pelos jovens atores de Truffaut não poderia ser mais distante daquelas dos atores de Spielberg e Doillon... Mesmo se Idade da Inocência permaneça uma espécie de patchwork ou de laboratório de situações de encenação, as atuações dos intérpretes resultam diretamente dos métodos de trabalho do cineasta e, desse modo, revelam certas fraquezas de sua direção de ator ”(21) 


(...) O cineasta insistiu para que as crianças estivessem sempre com a
mesma roupa, para facilitar o reconhecimento pelos espectadores” (22)

Livecchi ressalta uma faceta que pode passar despercebida a respeito da maneira como Truffaut enxerga as crianças. Para o cineasta, é preciso deixar claro, é como se todas as crianças fossem iguais, sua única diferença seria a faixa etária. Ele sempre fala da infância ou das crianças em geral, como se fossem termos intercambiáveis, e todas elas seriam animadas pelas mesmas preocupações. Naturalmente, o close sobre as personagens principais tem como objetivo atingir ao espectador, mas geralmente o objetivo do cineasta é captar através desta medida a maior quantidade de personagens e entrecruzar as histórias de Idade da Inocência. Segundo Livecchi, essa escala de plano acentua a visão ingênua e nostálgica de Truffaut, fazendo deste filme mais um exemplo de olhar adulto a respeito da infância: a proximidade da câmera acentua paradoxalmente a distância que separa o espectador de seus personagens. O close também será empregado na sala de aula, todos os alunos são filmados de frente, o que significa que nunca temos o ponto de vista deles, apenas do espectador. Certamente, Truffaut utiliza muitas vezes o recurso da montagem, único modo de manipular a atuação da criança ator. As sequências com o pequeno Gregory, de dois anos e meio de idade, são um exemplo dessa necessidade, mas também no caso de Sylvie, que com seus mais ou menos sete anos de idade não pronuncia mais do que algumas frases. A não ser por personagens como Julien em Idade da Inocência, Antoine em Os Incompreendidos e Victor em O Garoto Selvagem, a infância que Truffaut nos apresenta é uma espécie de todo homogêneo. Para Livecchi, o plano final de Idade da Inocência resume esta tendência do cineasta e o espírito do filme, o próprio explica:

“Fiquei muito impressionado, filmando escondido com teleobjetiva na época de Os Incompreendidos, as crianças sentadas no Guignol, pelo fato de que uma massa de rostos de crianças se torna lisa, sem idade, evocando uma multidão chinesa. Tive de mostrar isso, registrei o plano final para obter um efeito desse gênero” (23) (imagem abaixo, aparição efêmera de Truffaut como pai de Martine na cena inicial)

De Patrick à Martine, Via Sylvie e Antoine


(...) Filmando Os Incompreendidos, eu era o irmão mais velho
do personagem. Filmando O Garoto Selvagem, era o pai de Victor. 
 Filmando  Idade da Inocência,  me  senti  como  um  avô   (...)” 

François Truffaut
Durante entrevista em 1976 (24)

Em Idade da Inocência, Patrick e Bruno levam duas garotas para o cinema, naturalmente com o objetivo de conseguir beijos. Uma das filhas de Truffaut atua como uma mulher grávida no cinejornal, a outra, Eva, é a garota que espera em vão por um beijo de Patrick – Bruno acaba beijando as duas. Em casa, Sylvie cuida dos peixes no aquário (plic e ploc) e insiste em levar sua bolsa para o restaurante, seus pais não conseguem dissuadi-la e acaba sendo deixada em casa. Sozinha, a menina pega o megafone do pai policial e da janela repete: “estou com fome! estou com fome! estou com fome!”. Ela inventa para os vizinhos de que foi deixada trancada em casa (sabemos que Sylvie colocou a chave dentro do aquário). Os irmãos De Luca, seus vizinhos, mandam para a menina uma cesta de comida através de uma corda. Gregory, com dois anos e meio de idade, também será deixado sozinho em casa, no nono andar. Seguindo um gato, ele acaba caindo da janela. Milagrosamente, a criança sobrevive à queda e explica sorridente: “Gregory fez bum!” (pouco antes ele havia dito a mesma coisa do pão que deixou cair no chão). Lydia, a esposa de Richet, o professor, conta ao marido o que acontece e ele lamenta que as crianças sejam tão vulneráveis. Ela, que está grávida, não concorda, afirmando que as crianças são muito fortes e que esbarram na vida, mas que são abençoadas e também têm uma pele dura! Em suas entrevistas, Truffaut sempre falou da capacidade de recuperação das crianças, sejam feridas físicas ou psicológicas. Para Insdorf, no passado, a violência que sofrera na prisão, reformatórios, na própria família, levaram Truffaut a elaborar uma estética da compensação. É difícil completa Insdorf, não ouvir o próprio cineasta através da voz do professor Richet quando se dirige a seus alunos no final do ano:

“(...) Porque minha própria infância foi infeliz, e porque não gosto da maneira como as crianças são tratadas, que me tornei professor. A vida não é fácil. E é importante que vocês se endureçam para enfrentá-la. Não quero dizer insensíveis. Estou falando de endurecer. Por uma espécie de equilíbrio estranho, aqueles que tiveram uma infância difícil, geralmente são mais bem preparados para a vida adulta do que aqueles que foram superprotegidos, muito amados. É uma espécie de lei de compensação. A vida é dura, mas é bela (...)” 


(...) O título inicial de Idade da Inocência era A Pele Dura (...)” (25)

Misterioso, sujo e maltrapilho, Julien pode ser considerado o marginal de Idade da Inocência. Quando ele aparece pela primeira vez, a câmera o mostra dos pés à cabeça, marcando assim claramente sua roupa em péssimo estado e a pasta com seus cadernos pior ainda (quando o vemos chegar à sua casa pela primeira vez, ele simplesmente a joga no chão de terra e capim). O porteiro da escola lhe faz várias perguntas sem conseguir que o menino responda, concluindo seu monólogo de forma grosseira perguntando a ele se é surdo ou mudo – em O Garoto Selvagem, o Dr. Itard atribui o mutismo de Victor ao isolamento no qual vivia até então. Assim como o corpo de Victor, Julien também carrega cicatrizes. Os meninos fazem gozação com Julien porque ele não quer se despir para o exame médico. Sem mostrar o corpo dele, Truffaut evidencia que Julien é mais uma criança que sofre maus tratos físicos em casa e a coisa vira um caso de polícia – é quando acompanhamos a prisão da mãe e da avó, assim como o questionamento da atitude omissa da professora em relação ao comportamento introvertido e as vestes de Julien. Em Os Incompreendidos, Antoine também fica perambulando pela rua, mas pelo menos tem amigos. Como Julien, ele também não tem pai, mas pelo menos tem um padrasto. Patrick, que cuida do pai doente e não tem mãe, projeta essa ausência de amor maternal na mãe de um amigo, Laurent – atração que fica evidente quando o vemos olhar enquanto a mãe de Laurent o enche de beijos.  Ela é cabeleireira e todo dia Patrick vai para lá encontrar o amigo de escola. No salão, Patrick se fixa num cartaz que mostra, intercalado com a imagem do rosto da mulher, um casal se olhando prestes a se deitarem juntos num vagão leito de trem. O cartaz já havia aparecido em A Noiva Estava de Preto e Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1986). O cartaz aparece pela primeira vez no segundo filme, ligando Patrick à idealização de Fabienne Tabard por Antoine que acompanhamos aí (26).


Em Os Incompreendidos, Antoine está pior do que Julien.
Se Julien foi maltratado, Antoine foi simplesmente ignorado
pelos  pais,  e  sequer  receberia  qualquer  tratamento  (27)

Na opinião de Insdorf, Antoine procurava amor maternal com Fabienne, Christine era a quem ele amava – porque ela tinha pais gentis. Patrick também está em busca de um espaço doméstico idílico com uma mulher. Patrick ajuda o amigo com o dever de casa e madame Riffle o convida para jantar com ela, Laurent e o pai (tecnicamente o rival de Patrick). Essa mistura entre a nutrição e estar no interior de algum lugar já havia se tornado visível no episódio de Sylvie. Ao transformar seu aprisionamento em espetáculo, Sylvie confessa para si mesma em voz alta enquanto verifica a comida foi levada para ela em sua própria casa: todo mundo me olhou! Todo mundo me olhou! De acordo com Insdorf, esse desejo de atrair a atenção motiva numerosos personagens em Truffaut. O cineasta é bastante específico a respeito disto em relação à Idade da Inocência: “O ponto em comum entre todas as crianças mostradas no filme é seu desejo de autonomia [juntamente] com, no detalhe, a necessidade de carinho, do qual elas não são conscientes” (28). O leite também é um elemento recorrente em Truffaut, como quando Lydia amamente seu recém-nascido enquanto Richet, o marido, comenta a respeito do psicólogo austríaco Bruno Bettelheim e sua noção de que as relações do bebê com sua mãe determinarão suas relações futuras com as mulheres. Para Insdorf, é significativo o momento que Richet escolheu para falar sobre isso. Em Os Incompreendidos, na noite que Antoine foge ele rouba uma garrafa de leite, que bebe avidamente. Em O Garoto Selvagem, Victor deve pedir o leite com sua voz ou juntando as letras para formar a palavra. Em Idade da Inocência, Truffaut se torna mais doce, o leite é oferecido livre e amorosamente. (imagem abaixo, recém-nascido da esposa do professor Richet)


A relação de um bebê com sua mãe determina suas relações futuras
com  as  mulheresQuando  Richet  cita   Bettelheim  diante  de  sua
esposa  amamentando  o  recém-nascido,   indica   o   caminho  para
o próximo filme de Truffaut: O Homem que Amava as Mulheres (29)

Insdorf chama atenção que Idade da Inocência parece ultrapassar os elementos biográficos de Truffaut, já que apesar do protagonismo de Julien e Patrick, é a pequena Martine o catalisador do filme. Ou melhor, são suas cartas ao primo que constroem o fio condutor do filme – uma no início, outra no final. Com sua caneta-lâmpada Martine vai além da vela, símbolo do amor difícil e de um eventual fechamento sobre si mesma para outras escritoras de cartas de Truffaut: Muriel, em As Duas Inglesas e o Amor (Les Deux Anglaises et le Continent, 1971), e Adèle H./Adèle Lewly, em A História de Adèle H. (L'Histoire d'Adèle H., 1975). De acordo com Insdorf, a caneta-lâmpada é o emblema ideal da heroína trouffaudiana: oferece luz e tinta, mas pertence às condições e ao mundo moderno – pode ser utilizado no interior e no exterior, permitindo a mobilidade. O que a faz emergir como figura central em Idade da Inocência é o fato dela articular amor e linguagem: escutamos sua voz em off descrevendo aquilo que escreveu ou está escrevendo. Símbolo da comunicação e da passagem ao ato, seu primeiro encontro com Patrick, durante uma viagem de trem, será filmado por Truffaut de acordo com o cartaz dos vagões leito que Patrick viu no trabalho de Nadine Riffle, objeto de seu primeiro delírio de amor. Na primeira cena do filme, Truffaut aparece como pai de Martine. Como o próprio cineasta explicou, durante entrevista em 1976: “(...) Filmando Os Incompreendidos, eu era o irmão mais velho do personagem, filmando O Garoto Selvagem, era o pai de Victor, filmando Idade da Inocência, me senti como um avô (...)”. Mas para Insdorf ele é o pai nos três casos:

“(...) Em Idade da Inocência aparecem suas duas filhas – Eva (14 anos de idade) na sala de cinema, e Laura, (17 anos) no filme dentro do filme interpretando o papel de Madeleine Doinel –, ilustração demasiado óbvia do provérbio ‘tal pai tal filhas’. Sua paternidade em O Garoto Selvagem é um pouco mais complexa. Truffaut condensou as memórias de Itard de 1801 e 1806 num período de nove meses: o trabalho do doutor Itard leva a uma espécie de nascimento – aquele de uma criança que passa a perceber que necessita de um pai. Truffaut chegou a qualificar Itard como pai adotivo, talvez porque é ele que dá uma identidade ao garoto (...)” (30)

Já Vi Esse Filme


“Enquanto O Homem que Amava as Mulheres faz com o sexo
oposto [uma] trégua, Idade da Inocência marca a paz com [a] infância, 
cujos sofrimentos [são] descritos [nos] filmes anteriores (...)(31)

O engajamento público de Truffaut em relação à infância não evitava as polêmicas. Em 1970, por exemplo, ele criticou em carta aberta à atriz Annie Girardot por aceitar protagonizar um filme, baseado em fatos reais, retratando um caso de pedofilia e um suicídio – o cantor Charles Aznavour já havia escrito uma canção inspirado no fato. Uma professora se apaixona pelo aluno de 17 anos e é correspondida, resistem à exposição pública, processo e prisão dela, que acaba se suicidando devido à pressão - se considerarmos a reação de Truffaut à luz do episódio em Idade da Inocência, mais especificamente os maus tratos que mãe e avó de Julien infringem ao menino, lembramos que também as mulheres podem são abusadoras de crianças e adolescentes. O filme, Morrer de Amor (Mourir d’Aimer, direção André Cayatte, 1971), seria refilmado como série para a televisão em 2009. Truffaut também questionou os critérios e até a criatividade de Cayatte (32). O tema parece recorrente na França, basta lembrar que o atual presidente, Emmanuel Macron, aos 15 anos de idade dividia a sala de aula com Laurence Auzière-Jourdan, filha de sua professora, Brigitte Marie-Claude. Aluno e professora (que se divorcia em 2006) seguem suas vidas, até se casarem em 2007. Atualmente, portanto, Emmanuel é padrasto de Laurence. Para Truffaut, a criança é sempre uma vítima potencial dos adultos. Em relação à sociedade, insistiu, a criança é o marginal por excelência, semeador de discórdia (Os Pivetes), inquietações (Os Incompreendidos), ou selvagem (O Garoto Selvagem). Oito anos antes de realizar este último filme, Truffaut declarou: “De um ponto de vista moral, a criança é como um lobo, fora da sociedade. Para uma criança pequena, a noção de acidente não existe apenas a de ofensa, enquanto que no mundo do adulto tudo é permitido”. Segundo ele, as crianças estão sempre à margem da atividade social, sem poder de decisão, cercados por um mundo de adultos falsos e ridículos (33). 


 A linguagem foi uma das preocupações de Truffaut. Em Os Pivetes, 
as  crianças  se  vingam do casal rabiscando seus nomes  em  lugares
públicos.  Idade da Inocência  começa  com  a  carta de Martine  (34)

É preciso dizer que a infância e a adolescência de Truffaut foram bastante conturbadas. Nascido de uma mãe solteira de dezenove anos de idade, o pequeno François nem era Truffaut, agregando este sobrenome dezoito meses mais tarde quando sua mãe se casa e ele ganha um padrasto. François foi criado principalmente pela avó materna, retornando ao convívio dos pais apenas depois da morte dela por insistência do padrasto. Contudo, o garoto tinha sentimentos contraditórios em relação à mãe, por um lado gostava dela, por outro sentia que sua presença a incomodava – o garoto era frequentemente deixado sozinho durante os fins de semana, excluído da vida dos pais. Seu ressentimento em relação a ela cresceu quando ele descobriu sozinho que Truffaut não era seu pai verdadeiro. François fez um amigo, com o qual passava muito tempo, transfigurado posteriormente no personagem de René, em Os Incompreendidos e Antoine e Colette (episódio do filme coletivo O Amor aos 20 Anos, 1962). Na escola, François era péssimo, iniciando uma sucessão de passagens por reformatórios. A sequência de Os Incompreendidos onde Antoine justifica suas ausências porque sua mãe morreu (o que era mentira) é retirada diretamente da vida de François. Certa vez Truffaut, então já cineasta, declarou:

“A minha mãe não suportava o barulho, ou devo dizer, para ser mais preciso, ela não me suportava. Seja como for, eu tinha que fingir que ali não estava e ficava sentado numa cadeira lendo. Não me era permitido brincar ou fazer qualquer barulho. Eu tinha que fazer com que as pessoas se esquecessem de que eu existia” (35)



Leia também:

Notas:

1. BAECQUE, Antoine de; TOUBIANA, Serge. François Truffaut. Paris: Éditions Gallimard, 1996. P. 527.
2. LE BERRE, Carole. François Truffaut at Work. London: Phaidon Press Ltd., 2005. P. 216.
3. LIVECCHI, Nicolas. L’Enfant Acteur. De François Truffaut à Steven Spielberg et Jacques Doillon. Paris: Les Impressions Nouvelles, 2012.  P. 144.
4. BAECQUE, A. de; TOUBIANA, S. Op. Cit., pp. 635-9, 819n187.
5. INSDORF, Annette. François Truffaut. Le Cinéma est-il Magique? Paris: Éditions Ramsay, 1989. P. 188.
6. BAECQUE, A. de; TOUBIANA, S. Op. Cit., pp. 639.
7. Idem, p. 527.
8. INSDORF, A. Op. Cit., p. 185.
9. Idem, pp. 185-92, 199-204.
10. Ibidem, p. 186.
11. Ibidem, p. 189.
12. LIVECCHI, N. Op. Cit., p. 16.
13. Idem, pp. 19, 20.
14. Ibidem, pp. 20-1.
15. LE BERRE, C. Op. Cit., p. 213.
16. LIVECCHI, N. Op. Cit., p. 140.
17. VANOYE, Francis. Enfance. In: BAECQUE, A. de (Org.). Le Dictionnaire Eustache. Paris: Éditions Léo Scheer, 2011. Pp. 101-2.
18. INSDORF, A. Op. Cit., p. 222.
19. LIVECCHI, N. Op. Cit., pp. 141-56.
20. LE BERRE, C. Op. Cit., p. 216.
21. LIVECCHI, N. Op. Cit., pp. 147.
22. LE BERRE, C. Op. Cit., p. 216.
23. LIVECCHI, N. Op. Cit., p. 148.
24. INSDORF, A. Op. Cit., p. 216.
25. Idem, p. 204.
26. Ibidem, pp. 205-6, 215-6.
27. Ibidem, p. 205.
28. Ibidem, p. 203.
29. Ibidem, p. 258.
30. Ibidem, p. 216.
31. Ibidem, p. 181.
32. BAECQUE, A. de; TOUBIANA, S. Op. Cit., pp. 528-9.
33. INSDORF, A. Op. Cit., pp. 192-3.
34. Idem, p. 206.
35. DUNCAN, Paul; INGRAM, Robert (Eds.). François Truffaut. A filmografia completa. Köln: Taschen, 2004. P. 25.

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