“Aos 25 anos, Polański não era apenas o maior nome
no campus [da Escola de Cinema de Łodź], mas um dos
poucos dândis imperturbáveis da Polônia central (...)” (1)
no campus [da Escola de Cinema de Łodź], mas um dos
poucos dândis imperturbáveis da Polônia central (...)” (1)
Relacionamentos Falidos
Rajmund Roman Liebling, vulgo Roman Polański, nasceu numa família de judeus poloneses em Paris. Ele é mais um cineasta polonês criado na Escola de Cinema de Łodź – outros nomes conhecidos são Andrzej Wajda, Jerzy Skolimowski, Krzysztof Zanussi e Krzysztof Kieślowski. Em 1955, dirigiu seu primeiro curta-metragem, A Bicicleta (Rower), baseada no encontro de Polański com o homicida Janusz Dziuba – o filme não existe, foi perdido pelo laboratório de Varsóvia. Em 1957, realiza três curtas-metragens. Com Vamos Arrombar a Festa (Rozbijemy Zabawe), o mostra o universo da juventude polonesa do pós-guerra, com seus mauricinhos e bad boys, uma espécie de sucursal do estilo de vida da terra do Tio Sam, sonorizado pelo jazz que tanto caracterizou um modo de vida jovem internacional naquele universo do realismo socialista patrocinado por Moscou (inclusive, o afrouxamento dos controles diretos soviéticos na Polônia em 1961 foi apelidado de “degelo jazzístico”). A seguir, em Sorriso (Usmiech Zebiczny), mistura humor, violência, voyeurismo e já insinua sua obsessão com a água. Um homem espia pela janela enquanto uma mulher nua se enxuga no banheiro. Apanhado em flagrante por um morador, o homem disfarça, mas quando volta a olhar encontra o morador escovando os dentes e sorrindo para ele. É uma homenagem a Alfred Hitchcock, cujo seriado da década de 1950 foi apresentado na televisão estatal polonesa naquela época – segundo Sandford, biógrafo de Polański, o governo acreditava que a exibição geraria condenação em relação a uma suposta obsessão ocidental com o macabro. Assassinato (Morderstwo) mostra em 80 segundos um homem entrando num quarto, matando alguém e indo embora. Depois disso, surge Dois Homens e um Armário (Dwaj Ludzie z Szafa, 1958) (2). (imagem acima, desconfiado Andrzej vigia a esposa e se prepara para provocar o carona, A Faca na Água)
Em 1957 o governo comunista polonês permite que a televisão
estatal transmita a série Alfred Hitchcock Apresenta. Sorriso é
uma homenagem ao cineasta inglês, possível devido a esse interesse
do governo em veicular um produto do “Ocidente decadente” (3)
estatal transmita a série Alfred Hitchcock Apresenta. Sorriso é
uma homenagem ao cineasta inglês, possível devido a esse interesse
do governo em veicular um produto do “Ocidente decadente” (3)
Polański é um desses nomes do cinema mundial cuja biografia é tão impressionante que poucos têm dúvidas de que seu cinema seja marcado por suas experiências de infância. Desnecessário dizer que, quando a Segunda Guerra Mundial estourou em 1939 e os nazistas invadiram a Polônia sua vida mudou radicalmente – a família havia retornado de Paris para sua terra natal. A mãe morreu em Auschwitz, o pai sobreviveu ao campo de concentração de Mauthausen. Enquanto isso, o pequeno Romek (diminutivo de Roman) vagou pelo país entre os sete e os treze anos de idade, quando a Polônia foi “libertada” pelos soviéticos em 1945. Em 1959, já havia realizado cinco curtas-metragens quando filmou seus dois últimos trabalhos em Łodź: A Lâmpada (Lampa) e Quando Caem os Anjos (Gdy Spadaja Anioly). O primeiro trata de um fabricante de bonecos cuja loja é destruída pelo fogo devido a uma falha elétrica, talvez causada pelos próprios bonecos, assustadoramente reais. Não fez sucesso, e Polański a omite de sua autobiografia. O segundo curta será seu trabalho de conclusão da graduação - nas palavras de Christopher Sandford, “uma obra-prima compacta”.
Claramente influenciado por Samuel Beckett e com um toque
de Charlie Chaplin, Dois Homens e um Armário prefigura
perfeitamente o trabalho mais maduro de Roman Polański (4)
de Charlie Chaplin, Dois Homens e um Armário prefigura
perfeitamente o trabalho mais maduro de Roman Polański (4)
Quando Caem os Anjos acompanha uma senhora de oitenta anos de idade relembrando sua vida durante o horário de trabalho, num banheiro público. O próprio Polański e sua esposa Basia interpretaram a idosa em vários flashbacks – as sequências do banheiro estão em preto e branco, enquanto os flashbacks são coloridos. Como em Lua de Fel (Bitter Moon, 1992), o filme trafega entre passado e presente. Na conclusão, um anjo interrompe a sequência de flashbacks ao cair pela claraboia do banheiro, encontrando a octogenária de joelhos em posição de oração. O reitor e o conselho acadêmico de Łodź desvalorizaram o resultado final. Sandford explica que embora o curta tenha sido aceito pela banca de examinadores, Polański nunca se graduou formalmente. A explicação mais provável é não tenha entregado a tese escrita que fazia parte do exame, sendo assim deixou a escola sem o diploma. Sandford conta ainda que certa animosidade de alguns críticos de cinema poloneses advém deste detalhe da carreira do cineasta. De fato, nem sempre Polański foi uma unanimidade. Em seu curta anterior à Quando Caem os Anjos, Dois Homens e um Armário, portanto ele ainda era um aluno, conta-se que ficava descontrolado e aos berros quando surgiam diferenças criativas durante as filmagens. De acordo com Henryk Kluba, um dos protagonistas, ele chegou a atacar fisicamente membros da equipe e descarregou tanto no armário que o espelho teve de ser trocado. “Ele era insuportável”, concluiu Kluba. Em 1962 consegue realizar seu primeiro longa-metragem, A Faca na Água (Nóż w Wodzie). (imagens abaixo, da esquerda para a direita, acima, O Gordo e o Magro, A Lâmpada; abaixo, Vamos Arrombar a Festa)
Ado Kyrou se referiu aos curtas-metragens do início
da carreira de Polański como peças surrealistas (5)
da carreira de Polański como peças surrealistas (5)
É a história tensa do breve encontro entre um casal, Andrzej e Krystyna, e um rapaz que pede carona. O carro do casal dá uma freada brusca quando um homem jovem pula na frente, estão a caminho dos lagos masurianos para navegar em seu iate. Andrzej, que já não é um jovem, desafia o carona a navegar com eles, então adota o papel autocrático de capitão. Daí em diante a relação entre os dois homens começa a se deteriorar, aparentemente em função da presença de Krystyna e seu corpo jovem. Durante uma discussão, a faca do rapaz acaba caindo na água, que cai também após levar um soco de Andrzej. O rapaz desaparece, simulando um afogamento. Andrzej e Krystyna discutem, ele simplesmente mergulha e vai embora - o rapaz não se afogou, estava escondido. O rapaz sobe no barco e depois de uma briguinha, Krystyna se mostra bastante receptiva e transam naquela noite. No dia seguinte, voltando para o porto, ela deixa o carona noutro ponto do lago e ruma para a marina. Krystyna confessa, mas Andrzej não acredita nem que ele está vivo nem que ela o traiu. No final, vemos o carro parado numa encruzilhada: se forem à polícia relatar o desaparecimento do rapaz, poderão ser considerados suspeitos; se tomarem a outra direção pode indicar que Andrzej aceita a traição de Krystyna. Divididos entre enfatizar o conflito de gerações e as entrelinhas políticas, em geral tanto os críticos quanto a imprensa polonesa não elogiaram o filme. O governo, única fonte de financiamento do cinema então, preocupado em continuamente alimentar sua quimera socialista com novas utopias para manter a Polônia unida em torno dele, também não gostou.
“O final, com o carro imóvel diante de uma placa de estrada [indicando a distância do posto policial], pode ser menos um exemplo de abertura modernista do que a imagem devastadora de uma cultura sem lugar para onde ir. Essa imagem se torna modernista em certo grau, contudo, quando justaposta com a questão de Krystyna em relação ao final da piada de Andrzej sobre o marinheiro que dançou sobre vidro quebrado [- porque não percebeu que desta vez seus pés não aguentariam]. A questão da forma como as histórias devem terminar está ligada àquela da viabilidade da comunicação em geral, seja porque o casamento vive um impasse pela recusa de uma parte (Andrzej) aceitar o que o outro está dizendo, seja a confissão da infidelidade de Krystyna com um ‘filhote de cachorro’ (palavra de Andrzej para o garoto - szczeniak) poderia ferir seu orgulho se ele acreditar, ou ainda porque a verdade e a mentira se tornaram inseparáveis. Em qualquer dos casos, é claro, o relacionamento deles (ao nível alegórico, aquele entre a Polônia e seus governantes) está falido, literalmente indo para lugar nenhum” (6)
A Faca na Água: Anedotas de Produção
“(...) [Em 1957], sua namorada Kika o havia introduzido
às maravilhas da região do lago Mazury, no nordeste da Polônia. Este, decidiu [Polański], seria o cenário de um thriller (...)” (7)
às maravilhas da região do lago Mazury, no nordeste da Polônia. Este, decidiu [Polański], seria o cenário de um thriller (...)” (7)
Muito endividado em Paris e com a carreira estagnada, Polański volta à Łodź com a intenção de realizar um thriller enigmático em longa-metragem sobre dois homens e uma mulher isolados num iate. Quase sem dinheiro ou comida, tranca-se em seu pequeno apartamento no centro da cidade com Jerzy Skolimowski e Kuba Goldberg para elaborar um roteiro, sobrevivendo de suco de fruta e guisado de repolho. O resultado foi um esboço hitchcockiano, com traços de Kafka e Jean Genet. Kamera, o único estúdio se interessou no roteiro, ofereceu quase nada por ele – e depois disse que não precisaria dos serviços dele no futuro imediato. Por sua vez, o Ministério da Cultura recebeu o roteiro com frieza, dizendo que era de um valor moral duvidoso e que a parte do rapaz que pega carona no barco deveria ser reescrita num tom de maior comprometimento social. Do diálogo entre marido e esposa deveria ser cortada qualquer sugestão de paixão sexual e os trajes de banho deveriam maiores. Se concordasse, o cineasta poderia solicitar a verba novamente. Em 1961, depois de algumas concessões, finalmente o roteiro é aprovado. Polański seria o diretor e queria também atuar no papel do jovem que se mete na vida do casal, mas o produtor impôs um ator formado em interpretação – mas o cineasta conseguiu que a voz do personagem fosse dublada por ele. Para o papel da atriz, Polański escolheu uma espécie de sósia de Basia, Jolanta Umecka. Ela nunca tinha atuado e o cineasta disse que era muito difícil extrair emoções dela (8). Enquanto isso, depois de botar chifre em Polański algumas vezes, Basia resolve se divorciar do cineasta. Ela já era famosa, enquanto ele, que até gozava de certa fama local na Polônia, somente a partir de A Faca na Água começa a surgir na cena internacional. Conflito de egos? De qualquer forma, o episódio lança luz sobre sua relação com o sexo feminino.
“Após o abandono de Basia, um dos amigos de Polański faria uma análise pública do relacionamento do casal. ‘Tinha a sensação’, dizia, ‘que Romek foi bastante humilhado por ela. Tanto pelo divórcio quanto por sua transformação em estrela de cinema e pelo fato de ele ser baixinho, enquanto ela era alta, jovem e bela’. A teoria psicológica insiste em dizer que toda a carreira subsequente de Polański foi uma espécie de revanche artística contra as mulheres. Com o tempo, esta simplificação pareceu ganhar força das lembranças eternamente recicladas, tanto as que forma publicadas quanto as ditas em particular, das diversas atrizes que trabalharam diretamente com ele. Palavras como ‘imaturo’, ‘valentão’ e ‘volátil’ eram recorrentes (...)” (9)
Às vezes A Faca na Água é comparado a O Sol por Testemunha,
anterior. Polański estava sem grana em Paris quando sua esposa
é convidada por René Clément para um filme. Com o dinheiro,
o casal muda de apartamento e ele compra uma Mercedes (10)
anterior. Polański estava sem grana em Paris quando sua esposa
é convidada por René Clément para um filme. Com o dinheiro,
o casal muda de apartamento e ele compra uma Mercedes (10)
Em 1962 A Faca na Água começa enfim a ser transformado em imagens em movimento. Só então Polański começa a descobrir o pesadelo logístico de colocar uma equipe de filmagem dentro de um barco navegando em águas não muito calmas. Sua relação profissional com Jolanta se deteriorava a cada dia. Primeiro ele teve de disparar um sinalizador marítimo perto dela para que demonstrasse alguma reação numa cena em que surpreende o estranho a viu pelada. “Isso ajudou, sua piranha?” perguntou o cineasta à moça – ela respondeu que sim, mas que foi um exagero da parte dele. A seguir, Polański descobre que ela não sabia nadar! Depois disso os dois passaram a se tratar através de agressões verbais. Então, na segunda semana de filmagem, Polański percebe que ela está comendo demais e começa a não caber no biquíni. O cineasta passou a fazer corrida com ela, que ficava amarrada nele para não perder o ritmo. Certo dia Polański sofre um acidente de automóvel e racha o crânio. Sobrevive para terminar o filme, que irá descrever como um filme que utiliza o clima de férias misturado a doses de ironia. A crítica estatal polonesa foi negativa – esse parece ter sido o ponto de partida de sua relação de amor e ódio com a mídia. Lançado nos Estados Unidos, a crítica local também não gostou muito, mas o cineasta foi capa da revista Time (o que impressionou muito seus amigos poloneses e calou a boca da crítica) e o A Faca na Água é indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro – bem mais do que Andrzej Wajda havia conseguido fora do bloco comunista. Abandonado por Basia, ele arruma as malas e parte.
“Depois que A Faca na Água recebeu suas primeiras pancadas, Polański carregou sua Mercedes, partiu para Cracóvia, despediu-se do pai e da madrasta e pegou a estrada rumo à França. Ele não retornaria à Polônia para trabalhar pelos próximos 19 anos. Uma vez cruzada a fronteira da Alemanha Ocidental, o diretor começou a se sentir como antes, deixando os quilômetros para trás ao som de Hit the Road, Jack (...)” (11) (imagens abaixo, em Mamíferos dois homens brigam por um trenó enquanto um terceiro rouba o veículo deles)
O Homem é o Lobo do Homem
“Você tem de mostrar a violência como ela de fato
é. Se não a retrata de maneira realista, isto é imoral
e perigoso. Não perturbar as pessoas é obsceno”
Roman Polański (12)
A Faca na Água foi o primeiro longa-metragem da carreira de Polański. Este foi também o último filme que o cineasta realizou no país (em 2002, retorna para realizar O Pianista, The Pianist) antes de seu próximo trabalho na França, depois na Grã-Bretanha e então nos Estados Unidos, retornando para a França – neste último caso, mais por conta de um escândalo sexual na terra do Tio Sam do que por interesse próprio. Entre 1955 e 1962, a exata fração de tempo que Polański trabalhou no contexto do cinema polonês, realiza nove curtas-metragens. Em alguns filmes ele apresenta personagens que discordam entre si, levando a um conflito de sérias consequências, quando o equilíbrio é rompido por um intruso ou pela passagem do tempo. Imediatamente anterior à Faca na Água, embora tenha sido lançado depois, o curta Mamíferos (Ssaki, 1962) é um desses filmes onde tal tema aflora: em meio à neve, dois homens brigam pelo melhor lugar num trenó, enquanto isso um terceiro homem rouba o veículo. Percebendo que perderam seu precioso bem, eles voltam a se relacionar, mas isso dura pouco. Mazierska explica que a história ilustra o provérbio polonês (“quando dois homens discutem, o terceiro homem aproveita”). O título do filme nos convida, continua Mazierska, a tratar os três não como personagens, mas representantes da categoria dos mamíferos. Procurando aplicar o darwinismo social ao sugerir que lutar e adquirir poder faz parte da natureza humana, para Polański os homens cooperam entre si apenas em função da sobrevivência, fora disso não existe equilíbrio ou harmonia entre eles. Neste caso, assim como em A Faca na Água, Armadilha do Destino (Cul-de-Sac, 1966) entre outros, acompanhamos os personagens em situações, sem nunca saber seus motivos (13).
“(...) Susan Sontag […] afirma que tanto romances quanto filmes podem ser divididos em ‘analítico/psicológico’ e ‘expositivo/antipsicológico’. O primeiro tipo, representado por diretores como [Marcel] Carné, [Ingmar] Bergman, [Federico] Fellini e [Luchino] Visconti, e escritores como [Charles] Dickens e [Fyodor] Dostoievsky, estão preocupados com a revelação dos motivos dos personagens. O segundo, exemplificado pelo trabalho de [Michelangelo] Antonioni, [Jean-Luc] Godard e [Robert] Bresson, e pela literatura de Stendhal, se abstém de psicologizar; seus personagens são opacos, ‘em situação’. Estas categorias me parecem muito úteis para capturar algumas importantes características do cinema de Polański” (14) (Imagem abaixo, Polański atuando como a velha num dos flashbacks dela, Quando os Anjos Caem)
Polański diz que seu objetivo é entreter e criticou Godard
por utilizar a câmera como ferramenta política. Para Mazierska,
todos os filmes são ideológicos, trata-se apenas de investigar
quais são as dimensões ideológicas da obra de Polański (15)
por utilizar a câmera como ferramenta política. Para Mazierska,
todos os filmes são ideológicos, trata-se apenas de investigar
quais são as dimensões ideológicas da obra de Polański (15)
O comportamento de uma pessoa depende mais de sua posição em relação aos outros indivíduos do que de sua consciência. Mamíferos também sugere que o conflito é eterno, e que força e trapaça são maneiras de tirar vantagem do oponente. Esta sombria conclusão em relação à condição humana remete a peças de Samuel Beckett como Esperando Godot (Waiting for Godot, 1952) e Fim de Jogo (Endgame, 1957), embora Mazierska afirme que o foco no caráter social dos humanos salva o filme, não se pode viver sem a interação com outros humanos. A necessidade de comunicar-se e ser aceito os força a controlar sua inveja e instintos cruéis. Polański chama atenção para a pena e a compaixão, consequentemente a solidariedade, enquanto motor de nossas ações. Mamíferos foi realizado em preto e branco, sem diálogos e sua velocidade foi alterada, o que o faz parece um comédia burlesca muda, levando a comparações com os filmes de O Gordo e o Magro (Laurel and Hardy). Mazierska explica que essa técnica torna humorísticas situações que de fato são trágicas e intoleráveis, criando um distanciamento do espectador e produzindo um efeito que aponta para a arte do absurdo. A situação de Mamíferos se reproduzirá em A Faca na Água e Armadilha do Destino. Além disso, de forma a comunicar, não se fala diretamente, mas através de uma linguagem altamente codificada - de acordo com Mazierska: em A Faca na Água, Krystyna brinca na água com uma boia em formato de jacaré, que substitui seu marido ou o filho que não tiveram; em Armadilha do Destino, Teresa maquia o rosto de seu marido e coloca nele um vestido, atestando sua falta de masculinidade. Polański não acredita que os casamentos existentes nestes filmes se resolvam por si mesmos, não por acaso o marido em A Faca na Água convida alguém de fora para olhar. (imagens abaixo, A Faca na Água)
O tema da água, que sejam rios, lagos, ou o mar, é provavelmente
o traço mais característico da encenação em Polański, como
em Dois Homens e um Armário, A Faca na Água e Piratas (16)
o traço mais característico da encenação em Polański, como
em Dois Homens e um Armário, A Faca na Água e Piratas (16)
Polański não acredita na recuperação desses casamentos a partir de dentro. Na maioria de seus filmes, a função do estranho que aparece surge no casamento de alguém é apenas destruir o equilíbrio inicial da vida do casal até ao ponto da mudança. Os homens se comunicam entre si somente através de objetos (a faca, por exemplo, em A Faca na Água), o que demonstra sua incapacidade. Alguns sugeriram que os personagens masculinos beligerantes em Polański são seus alter egos, ou a personificação de uma parte suprimida de sua psique. O estudante de A Faca na Água é, portanto, o duplo de Andrzej. Para Mazierska, apenas os personagens masculinos precisam de duplos. Em A Faca na Água, Krystyna não se encaixa no mundo dos homens, e não parece impressionar-se com os objetos de poder que tanto valorizam. Ao contrário deles, ela fala pouco e não revela sua identidade social. Demonstra poder ao tomar o forasteiro como amante e manter o marido, seu retorno para esse último ao final sugere que Krystyna prefere voltar para sua existência sem harmonia, colocando em cheque sua sinceridade emocional. Mazierska sugere as duas hipóteses possíveis. Krystyna traduz o lugar da mulher na Polônia socialista, onde elas não teriam a chance de uma vida independente dos homens - por mais que a propaganda sugerisse o contrário. Em segundo lugar, ela poderia ter optado em viver das benesses dos novos ricos poloneses – geralmente ligados à nomenklatura, aos burocratas do Partido Comunista e simpatizantes bajuladores, dos quais faz parte seu marido Andrzej. Seja qual for o caso, Mazierska conclui afirmando que Krystyna pode ser considerada com uma precursora de algumas heroínas dos próximos filmes de Polański, com Teresa em Armadilha do Destino, um dos três títulos de sua fase inglesa. (imagem abaixo, A Lâmpada)
Andrzej Munk se concentra em rituais nacionais e ciclos específicos
da história polonesa, que se tornam a causa principal do absurdo na
vida dos personagens. Para Polański o absurdo é comum e universal
da história polonesa, que se tornam a causa principal do absurdo na
vida dos personagens. Para Polański o absurdo é comum e universal
No final de A Faca na Água, o carro para na estrada e Krystyna e Andrzej discutem a respeito do que fazer agora. Brincar de imitar um casal feliz agora ficou mais difícil entre eles. A narrativa de Armadilha do Destino é baseada numa premissa semelhante, embora a situação do marido neste último caso seja ainda mais difícil. Em comum com Krystyna, Teresa é a estranha entre seu marido e o convidado. Teresa parece desprezar tudo mundo, até seu amante. Além disso, também demonstra pouco respeito por bens materiais. Pode-se argumentar que Teresa aceitou o absurdo da vida, enquanto seu marido procura se apegar a coisas permanentes: casa, família, amor. No final de Armadilha do Destino, o convidado morre e o marido é deixado devastado e saudoso de sua esposa, enquanto Teresa vai embora com um homem que ela nem conhece. A ênfase em rituais (especialmente masculinos, como animais que se pavoneiam diante das fêmeas em busca de acasalamento) enquanto princípio básico de organização do comportamento humano, assim como narrativas circulares (tanto A Faca na Água quanto Armadilha do Destino terminam como começaram), ligam estes filmes e Mamíferos ao cinema de outro polonês, Andrzej Munk, especialmente Heróica (Eroica, 1958) e Má Sorte (Zezowate Szczescie, 1960) (no qual Polański foi assistente, um de seus primeiros trabalhos depois de deixar a escola de Łodź) (17). Em comum com Polański, os personagens de Munk também procuram se encaixar em papéis culturais, mas falham terrivelmente. Ademais, cada ciclo de ajustamento a alguma norma cultural leva a outro ciclo, não impede que mudanças dramáticas ocorram – Jan Piszczyk, seu mais famoso personagem, em Má Sorte, se recusa a desempenhar quaisquer papéis e fica feliz em ser mandado para a cadeia, onde pode finalmente ser ele mesmo, mesmo que isso signifique ser um ninguém.
“O primeiro filme de Polański onde a cidade desempenha um
papel maior é no curta-metragem O Gordo e o Magro (1961) (...)”
papel maior é no curta-metragem O Gordo e o Magro (1961) (...)”
De modo geral, nos filmes de Polański a cidade é representada sob uma luz negativa (18)
Em seu quinto curta-metragem, Dois Homens e um Armário, eles saem do mar carregando um guarda-roupa para encontrar um ambiente hostil em terra firme. No final, os dois homens retornam para o mar levando o armário consigo, apontando para a impossibilidade de reconciliação entre eles e o mundo humano “normal”. Este trabalho se enquadra na categoria dos filmes de Polański que apresentam indivíduos mentalmente saudáveis que se encontram num mundo onde as regras são inaceitáveis para o espectador – o exemplo mais evidente aqui talvez seja O Pianista. Embora neste curta-metragem o armário esteja dissociado do contexto natural de uma casa, desempenha uma função similar aos armários em Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965), O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby, 1968) e O Inquilino (Le Locataire, 1976): guiar o personagem de uma vida material, e comum à outra sobrenatural. O espelho no armário nos apresenta um mundo que não existe: um peixe flutuando no céu. Mazierska remete ao pintor René Magritte, em O Homem do Mar, (l’Homme de la Mer, 1927). Mazierska também resgata a figura do escritor Albert Camus, para quem o desejo mais profundo da mente é compreender e familiarizar-se com o mundo. A incapacidade para alcançar esse objetivo é uma importante fonte de absurdo e de dor – essa dor está no centro destes filmes e outros posteriores como Que? (What?, 1972), Piratas (Pirates, 1986), Busca Frenética (Frantic, 1988), e no curta-metragem A Morte e a Donzela (Death and the Maiden, 1994). Neste último, o personagem principal (o próprio Polański) vive com seu senhor longe de tudo e tenta fugir para a cidade que ele enxerga no horizonte. Mas ela vai continuar apenas sua cidade dos sonhos, já que o homem grande aborta todas as tentativas de escapada.
Jean Douchet concluiu que Polański admira a Nouvelle
Vague francesa pelo simples fato de A Faca na Água filmar
Vague francesa pelo simples fato de A Faca na Água filmar
a juventude polonesa. Afirmou também que o polonês preferiu
ser fiel ao cinema-mentira e não ao cinema-verdade (19)
ser fiel ao cinema-mentira e não ao cinema-verdade (19)
Talvez a saída de Polański para a França tenha certa relação com a perseguição dos judeus na Polônia do pós-guerra. Desta vez em função da opinião do primeiro ministro Władysław Gomułka, que se referia a uma suposta conspiração sionista. Ele foi responsável, em 1968, pela emigração em massa de judeus, sob o pretexto de seriam os insufladores da insatisfação popular de então (que se estendeu aos estudantes da Escola de Cinema de Łodź) (20) contra as políticas do Partido Comunista polonês – tudo começou, na verdade, em função do discurso de Nikita Khrushchov em 1956 denunciando os crimes de Stalin. Ewa Mazierska insiste em sugerir que as razões do cineasta não foram de ordem política ou, pelo menos, essa dimensão não teria sido tão significativa em sua decisão. Mas é também verdade Gomułka permitiu que pela primeira vez desde a guerra os poloneses teriam permissão de visitar parentes no exterior. Foi então que Polański partiu para Paris, foi visitar sua irmã que estava lá desde 1943 – quando os nazistas a deportaram da Polônia (21). Como Gomułka declarou em 1963 que não havia lugar no cinema polonês para A Faca na Água, o cineasta não tinha mesmo nada o que fazer na Polônia (22). Baseada em comentários do próprio Polański, Mazierska afirma que o que pesou mesmo foi o interesse dele em viajar pelo mundo (23). De qualquer forma, lá chegando entrou em contato com a Nouvelle Vague francesa, que considerou coisa de amadores – com exceção de Claude Chabrol. O “filme de viagem” é o gênero que mais interessa Polański. Não confundir com o road movie, nos filmes do cineasta a viagem é uma condição universal compartilhada por todos. Os meios e objetivos são vários: sobreviver, encontrar um lar, ganhar a vida, escapar de problemas ou do tédio.
“O favorecimento da viagem como modo narrativo afeta cinematografia e iconografia dos filmes de Polański. [...] O diretor emprega a visão subjetiva e mutável do viajante. Aliás, estradas e mar constituem lugares privilegiados em seus filmes. Cidades e vilas são normalmente representadas como uma reunião de estradas. E mesmo as casas não parecem estáveis, comportando-se como labirintos ou corredores, tentando ou forçando personagens a sair de seus apartamentos e se mudar para qualquer outro lugar, muitas vezes para uma ordem ontológica distinta, através de um armário que conecta natural e sobrenatural” (24) (imagem abaixo, um dos flashbacks coloridos da vida em preto e branco da velha, Quando os Anjos Caem)
Polański e o Teatro do Absurdo
“O mundo se tornou por demais surreal
e absurdo para se fazer filmes surrealistas”
Roman Polański
Frase atribuída ao cineasta, ator e roteirista, supostamente pronunciada na época
da estreia de seu décimo longa-metragem, Tess - Uma Lição de Vida (Tess, 1979) (25)
Na Polônia das décadas de 1950 e 1960, o Absurdismo utilizado para falar do país, então sob o governo comunista, exalava ares de realismo! Os filmes de Polański em sua fase polonesa, particularmente A Faca na Água, foram interpretados como parábolas da Polônia do pós-guerra. A literatura do absurdo era muito disseminada na região, o que talvez facilitasse esse tipo de interpretação. Basta saber que quando Esperando Godot, de Samuel Beckett, foi encenada pela primeira vez na Polônia em 1956 (na mesma época do breve degelo político que se seguiu à morte de Stalin), a plateia compreendeu imediatamente a peça como um retrato da vida de frustrações numa sociedade que relativiza as dificuldades do presente justificando-as em função de um futuro supostamente abundante e feliz. Geralmente A Faca na Água é comparado a O Sol por Testemunha (Plein Soleil, René Clément, 1960), que dois anos antes já apresentava esse enredo de três pessoas num barco. Por outro lado, Mazierska acredita que uma peça de 1961, No Alto-Mar (Na pełnym morzu), de Sławomir Mrożek, outro polonês que se interessou pelo Absurdismo, possa ser invocada como inspiração de Polański. A peça, em torno de três náufragos no meio do nada, aborda um dos temas favoritos do cineasta: a vitimização de uma pessoa por outra. Tadeusz Różewicz, mais um dramaturgo polonês da mesma leva, poderia também ser relacionado à obra de Polański em relação ao interesse deste pela crueldade encontrada no cotidiano de pessoas comuns que se mostram indiferentes aos crimes cometidos por outros – é difícil não relacionar o interesse de ambos aos horrores do cotidiano da Polônia durante a ocupação pelos nazistas: a mãe do cineasta acabou seus dias em Auschwitz e o irmão de Różewicz foi morto pela Gestapo (26).
Muitos críticos viram Nouvelle Vague em A Faca na Água.
Contudo, na opinião de Mazierska aqueles franceses, primeira
geração que não tinha lembranças da guerra, apresentavam
apenas uma sensibilidade similar à de Roman Polański
Contudo, na opinião de Mazierska aqueles franceses, primeira
geração que não tinha lembranças da guerra, apresentavam
apenas uma sensibilidade similar à de Roman Polański
“Os primeiros filmes de Polański também foram comparados ao trabalho de Bergman,
Antonioni e Godard, todos utilizam o tema da viagem em sua narrativa e iconografia” (27)
O absurdo da existência humana também permeia a obra de Witold Gombrowicz. Tanto ele quanto Polański chamam atenção para as circunstâncias sociais, em oposição à moral individual, como o principal mecanismo do comportamento humano. Ambos atribuem a elas a responsabilidade pelo absurdo da vida humana e a habilidade para superá-la. Para Polański, todos são capazes de qualquer coisa em determinado momento: a oportunidade faz o ladrão, o assassino, a vítima e o herói. O Absurdismo compartilha um terreno comum com a arte romântica, considerada o paradigma da cultura polonesa, incluindo o cinema do pós-guerra. Enquanto o primeiro cria um distanciamento da plateia, o segundo evoca compaixão e solidariedade. O Absurdismo, assim como os filmes poloneses de Polański, constitui uma reação à saturação da arte polonesa com o Romantismo – em sua obra, o cineasta fez muitas referências a Samuel Beckett e especialmente Harold Pinter, de quem nunca escondeu a admiração (28). Na opinião de Mazierska, o cineasta nunca assumiu essa estética apenas por considerar o cinema como um meio bem mais realista do que o teatro. De qualquer forma, para ela Polański revela uma sensibilidade em relação ao Absurdismo na maioria de seus filmes. Seja em sua fase polonesa ou além, o que varia entre os personagens são as causas da falta de harmonia e as circunstâncias que permitem a eles perceber o absurdo de suas vidas. Escrevendo em 2004, Mazierska esclarece:
“(...) Três tipos principais de absurdo em seus filmes podem ser identificados. O primeiro ocorre quando existe um conflito entre duas ou três pessoas que não pode ser resolvido satisfatoriamente. Tal conflito pode ser visto como causa de uma situação absurda ou como catalisador, permitindo que o personagem perceba que não existe harmonia em sua vida. A segunda categoria, que chamo de ‘discórdia interior’, refere-se a personagens que parecem estar em conflito consigo mesmos. Nos casos mais sérios, são esquizofrênicos. A terceira categoria engloba a situação onde um protagonista com a mente saudável não consegue reconciliar até mesmo seus interesses e direitos mais básicos com o mundo no qual se encontra. Nesse caso, o mundo inteiro é absurdo. Estas categorias coincidem com a cronologia do cinema de Polański. O primeiro tipo de absurdo predomina no início de sua carreira, marcada por filmes como A Faca na Água e Armadilha do Destino, o segundo tipo domina a parte do meio, célebre por O Bebê de Rosemary e O Inquilino; a terceira é típica dos filmes recentes de Polanski: A Morte e a Donzela, O Pianista e Oliver Twist (2005)” (29)
Drama do Lago do Jazz
Os símbolos cristãos em A Faca na Água são mostrados com ironia
– como o carona de braços abertos e caminhando sobre a água (30)
– como o carona de braços abertos e caminhando sobre a água (30)
O desafio do autor de dramas é transmitir a complexidade do personagem, enquanto no melodrama o foco está em retratar suas circunstâncias externas. Neste sentido, Mazierska afirma que a longevidade de filmes como A Faca na Água e Armadilha do Destino decorre de se articular através da estrutura do drama ao mesmo tempo em que prometem muita ação melodramática – seus filmes em torno de personagens esquizofrênicos, como Repulsa ao Sexo, são ambíguos, podem ser interpretados tanto como dramas quanto melodramas. Para Mazierska, Polański tem grande habilidade em oscilar entre esses dois polos, da mesma forma que pode oscilar entre realismo e psicologismo. Como é evidente para qualquer um, a água é o elemento externo que serve de pano de fundo para articular o ímpeto dos três personagens em A Faca na Água. Em Dois Homens e um Armário, dois homens vêm do mar, que constitui uma realidade melhor do que a terrestre. Em A Faca na Água, os protagonistas passeiam de barco nos lagos masurianos. O estudante, que se assusta com a água, é uma versão mais jovem de Andrzej: vaidoso, egoísta e agressivo. Os lagos masurianos têm uma significação especial para a intelligentsia polonesa do pós-guerra. Especialmente a geração nascida entre os anos 1920 e 1930. Naquela época, sair de Varsóvia ou Cracóvia e viajar para lá se tornou para os poloneses uma oportunidade para escapar mentalmente das ideologias fascista e mergulhar e m elaborações filosóficas e discussões literárias – como era pouco industrializada e de baixa densidade demográfica, as autoridades comunistas ignoravam a região. Era considerado um passeio romântico. A canção que Krystyna canta foi composta por Agnieszka Osiecka (“Você em todos os lagos”, Na całych jeziorach ty), poeta e compositora que inaugurou a moda das férias e fins de semana nos lagos masuriamos (31). (imagem abaixo, A Faca na Água)
O jazz que se ouve em A Faca na Água aparecia um pouco em todo
lugar na Polônia. Naquela época, era o símbolo da juventude
moderna em oposição aos valores conservadores. Naturalmente, o
governo comunista considerava apenas propaganda capitalista (32)
lugar na Polônia. Naquela época, era o símbolo da juventude
moderna em oposição aos valores conservadores. Naturalmente, o
governo comunista considerava apenas propaganda capitalista (32)
Através de uma série de contrastes em A Faca na Água, ao invés de montar um cenário idílico hollywoodiano, Polański utiliza o contexto de maneira ambígua. Embora seja jornalista de esportes, Andrzej não parece se sentir bem na água. Sua vida opulenta contrasta com a de Osiecka, e propaga os valores socialistas de obediência, humildade e fé cega na autoridade. O estudante é considerado imaturo demais para apreender qualquer valor. Ao contrário de Dois Homens e um Armário, aqui o mar tem mais poder de transformar as pessoas da terra.
“Tal como acontece com muitos elementos da encenação em Polański, o mar tem seu duplo – o céu. Sua semelhança é perfeitamente capturada em Dois Homens e um Armário quando um peixe parece estar voando pelo céu. O espelho no guarda-roupa onde o peixe está voando produz essa ilusão. Da mesma forma, na primeira cena de Macbeth, não estamos certos se a terra toca o mar ou o céu. Depois de algum tempo, toda a paisagem está coberta por uma névoa, uma espécie de matéria prima a partir da qual tudo emerge e para a qual eventualmente retorna. A semelhança entre o céu e o mar também é sugerida pelo comportamento de vários personagens de Polański, que no momento de crise tendem a olhar para os dois como se esperassem algum socorro da parte deles – geralmente em vão. A pessoa se sente como se estivesse rodeada por duas entidades ou dois tipos de vazio, que tornam sua luta contra a insensatez [o absurdo] particularmente difícil” (33) (imagem abaixo, A Faca na Água)
O Poder Corrompe
Alguns viram em A Faca na Água uma discussão do conflito
de gerações, outros a crítica velada ao regime comunista polonês.
Entretanto, deveria ocorrer aos críticos o interesse de Roman
Polański em discutir a distância entre autoridade e poder “nu”
de gerações, outros a crítica velada ao regime comunista polonês.
Entretanto, deveria ocorrer aos críticos o interesse de Roman
Polański em discutir a distância entre autoridade e poder “nu”
Através de A Faca na Água Polański introduz uma série de reflexões a respeito da natureza das relações de poder – o que já é muita coisa, considerando que estava conseguindo fazer isso em pleno governo comunista da Polônia no auge da Guerra Fria, e através de uma mídia totalmente dependente do Estado para sua realização. Mazierska inicia sua explicação diferenciando “poder” e “autoridade”. Este último envolve a capacidade de controlar baseado em qualidades intrínsecas àquele que está em posição de mando ou possui um saber que outros não alcançam. O poder, pelo contrário, poder ser “nu”, baseado apenas em músculos fortes, facas e armas. Os curtas Mamíferos, O Gordo e o Magro (Le Gros et le Maigre, 1961), e o longa A Faca na Água, são os primeiros filmes onde Polański trata abertamente a questão da autoridade em oposição ao poder “nu”. Em A Faca na Água, Andrzej se esforça para demonstrar autoridade: sua esposa Krystyna obedece a suas ordens sem entusiasmo e num silêncio que parece questionar a posição superior em que ele se coloca. Para exercitar sua autoridade sobre outra pessoa e afirmar seu poder sobre ela, Andrzej convida um estudante para acompanhar no barco - papel de filho substituto que vira um Édipo, seduzindo sua “mãe” descartando o pai. Andrzej não pretende ensinar ninguém a velejar ou ser paciente, apenas controlar e humilhar um subalterno em frente à sua esposa. Na Polônia de 1962, A Faca na Água foi interpretado como metáfora da rejeição de uma autoridade socialista paternalista, incompetente e hipócrita. Rejeição de um sistema político que pretende ter autoridade, mas possui apenas poder. Os efeitos de possuir tanto poder político e físico quanto autoridade moral num Estado totalitário estará de volta em 1994, no centro do discurso em A Morte e a Donzela (34). “Se existem dois homens a bordo, um é o capitão”, diz Andrzej em A Faca na Água.
“(...) Os esforços de Andrzej para humilhar o rapaz procuram reforçar sua própria coragem aos olhos da cética Krystyna. Seu medo e ciúme tornam-se patentes quando acorda e não a encontra no interior do barco, sua imediata reação de pegar a faca indica a determinação de tratar do assunto – e do rapaz – pessoalmente, o que faz ordenando que limpe o convés. Tudo e qualquer coisa podem encenar o drama simbólico da rivalidade (...)” (35) (imagem abaixo, A Faca na Água)
“Gente como Truffaut e Godard são como garotos brincando
de fingir de revolucionários. Passei dessa fase. Fui criado
num país onde essas coisas aconteceram para valer”
de fingir de revolucionários. Passei dessa fase. Fui criado
num país onde essas coisas aconteceram para valer”
Roman Polański (36)
Reação do cineasta ao ser convocado pelos dois a boicotar o Festival de Cannes em
solidariedade aos distúrbios de maio de 1968 na França e contra a demissão de Henry Langlois
da cinemateca de Paris. Na época, a moda era ser comunista da vertente maoista
O poder físico, resultante da posse de ferramentas que permitem mutilar e matar, sem autoridade é muito mais efetivo do que a autoridade desacompanhada do poder físico, esta é a mensagem de filmes como A Faca na Água, A Morte e a Donzela e O Pianista. Polański mostra que pessoas portando facas ou armas de fogo podem ser consideradas imorais, mas são elas que conseguem que os outros obedeçam suas ordens. Como o detonador que Walker carrega em Busca Frenética, a arma de Paulina em A Morte e a Donzela, a faca do estudante em A Faca na Água supera todos os objetos que Andrzej possui. O poder de uma arma de fogo, uma faca ou um punho deriva do simples fato de que para a maioria das pessoas preservar a própria vida é mais importante do que vencer um argumento. Logo conclui Mazierska, para Polański estar vivo numa posição de poder é a maneira de convencer aos outros que você está certo. Por outro lado, em Macbeth (1971), Polański mostra o poder não balizado em respeito, confiança e compaixão torna-o muito instável para aqueles que o detém. Quanto mais poder acumula, Macbeth se torna mais e mais inseguro e solitário, até que fica totalmente só em seu trono inútil esperando que seu castelo seja invadido por um exército hostil. A queda de Macbeth demonstra que é melhor proteger sua arma do que sua coroa.
“Para concluir, Polański mostra profunda desconfiança de instituições e pessoas em posição de autoridade. Em seus filmes os agentes da autoridade nunca são altruístas – seu principal objetivo não é beneficiar os outros, mas seus próprios interesses. O autor muitas vezes rejeita a autoridade como incompetente e até mesmo como um obstáculo para se alcançar o objetivo ao qual ela afirma servir e promover. Além disso, ele mostra que possuir algum tipo de autoridade a atitudes universalizantes ou totalitárias. A pessoa que possui autoridade numa área muitas vezes também procura impor sua vontade em outras; um homem que tem autoridade sobre uma pessoa esforça-se para aumentar seu grupo ou seguidores fiéis. Em resumo, poder e autoridade corrompem. Se existe uma lição moral a ser aprendida com os filmes de Polański, é confiar apenas em si mesmo ao invés de outros, e transportar os meios para se proteger contra as forças ameaçadoras que pode encontrar na vida” (37)
Leia também:
Notas:
1. SANDFORD, Christopher. Polanski, uma Vida. Tradução Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. P. 87.
2. Idem, pp. 78-9, 86, 89, 97.
3. Ibidem, p. 79.
4. Ibidem, p. 86.
5. KYROU, Ado. Le Surrealisme au Cinema. Paris: Éditions Ramsay, 2005. P. 169.
6. COATES, Paul. Knife in the Water. In: HAMES, Peter (Ed.). The Cinema of Central Europe. London/New York: Wallflower Press, 2004. Pp. 84-5.
7. SANDFORD, C. Op. Cit., p. 91.
8. Idem, pp. 91-2, 97-100.
9. Ibidem, p. 103.
10. Ibidem, p. 94.
11. Ibidem, p. 103.
12. Ibidem, p. 170.
13. MAZIERSKA, Ewa. Roman Polanski. The Cinema of a Cultural Traveller. London/New York: I. B. Tauris, 2007. Pp. 29-36, 44, 71, 73-4, 147, 167.
14. Idem, pp. 140-1.
15. Ibidem, p. 115.
16. Ibidem, pp. 83-4.
17. SANDFORD, C. Op. Cit., p. 90.
18. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., pp. 73, 82.
19. DOUCHET, Jean. Nouvelle Vague. Paris: Cinémathèque Française/Hazan, 1998. P. 205.
20. STOK, Danusia (Ed.). Kieślowski on Kieślowski. London: Faber & Faber, 1993. P. xv.
21. SANDFORD, C. Op. Cit., pp. 83, 84.
22. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Paris: Quadrige/Puf, 2001. P. 351.
23. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., p. 15.
24. Idem, p. 190.
25. Ibidem, p. 5.
26. Ibidem, pp. 26-8.
27. Ibidem, pp. 99, 185.
28. SANDFORD, C. Op. Cit., p. 123.
29. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., p. 28.
30. Idem, p. 123.
31. Ibidem, pp. 47-9, 82-6.
32. Ibidem, pp. 97-9.
33. Ibidem, p. 88.
34. Ibidem, pp. 124-5, 128.
35. COATES, P. Op. Cit., p. 79.
36. SANDFORD, C. Op. Cit., pp. 168-9.
37. MAZIERSKA, Ewa. Op. Cit., pp. 128-9.