Através
do vazio da vida
dos protagonistas
de seus filmes, Herzog
investiga os limites
do que significa
ser humano (1)
O Vampiro Vem de Dentro
Numa cidadezinha alemã as margens do Báltico, Jonathan Harker foi enviado por seu patrão até os Montes Cárpatos, na atual Romênia. Mais especificamente, na região chamada Transilvânia, Jonathan deverá dirigir-se ao castelo do Conde Drácula para efetivar a compra de uma propriedade na mesma cidadezinha alemã. Desde que viu um cordão com a figura de Lucy cair em sua mesa, a esposa de Jonathan torna-se a objeto de desejo do Conde Drácula. Antes de chegar ao castelo, Jonathan fora avisado do perigo. Os aldeões aconselharam a não aproximar-se do castelo, aquela terra, diziam eles, era amaldiçoada. Desdenhando as lendas sobre vampiros, Jonathan só percebe seu erro quando já é tarde demais. (imagem acima, em sua segunda noite no castelo de Drácula, Jonathan sofre o segundo ataque; abaixo, à direita, Lucy espera por seu amado, sem saber, ela olha para o mar de onde virá o vampiro, seu marido vem pela terra; abaixo, à esquerda, drácula vem pelo corredor, em direção ao quarto de Jonathan para o segundo ataque)
Já mordido pelo vampiro, Jonathan foi deixado no castelo, enquanto fulano já se encaminhava para a vizinhança de Lucy. Ele vem por mar, enquanto Jonathan segue por terra. Chegando à cidadezinha alemã, a Peste já está instalada. Jonathan nem reconhece mais Lucy, que desmaia ao perceber que os presságios que lhe vieram em sonhos e pesadelos estão se tornando realidade. Entre as montanhas de ratos, a cidade enterra seus mortos e os sobreviventes se entregam a orgias e banquetes enquanto a Morte não vem buscá-los. Lucy percebe que o vampiro pode ser detido e ela está disposta a se sacrificar para salvar Jonathan. A dedicada esposa consegue distrair o monstro até que o dia amanhece e ele, atingido pela luz do sol, é destruído. Ela morre, e Jonathan, já transformado num vampiro, consegue se livrar das mandingas que a esposa pura havia preparado para protegê-lo, e foge para espalhar a Peste que sugou sua vida.
A Paisagem é a Mesma
Ao contrário
do que acontece
no filme de Murnau,
o Nosferatu de Herzog
está cansado de sua
existência como
morto-vivo
do que acontece
no filme de Murnau,
o Nosferatu de Herzog
está cansado de sua
existência como
morto-vivo
Em 1986, o cineasta alemão Werner Herzog admitiu conhecer muito pouco da filmografia de F. W. Murnau. Entretanto, isto não o impediu de prestar uma homenagem ao outro cineasta alemão ao fazer uma releitura de seu clássico do cinema mudo, Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror (Nosferatu, ein Symphonie des Grauens, 1922). Em Nosferatu, o Vampiro da Noite (Nosferatu, Phantom Der Nacht, 1979), reencontramos o personagem vampiresco (incluindo a cabeça raspada e as unhas enormes), um casal de vítimas e a natureza... Nosferatu, o Fantasma da Noite, é o título original do filme de Herzog. Como no caso de seu conterrâneo, o filme de Herzog teve seu título modificado, truncando toda referência à questão da sombra, tão cara ao cinema alemão da época de Murnau. Referindo-se ao conterrâneo, Herzog disse que “(...) Nosferatu é um filme que possui uma força extraordinária e um terror profundo que não encontro em qualquer outro filme que conheço. Murnau foi um homem absolutamente fora do comum, que infelizmente morreu cedo demais” (2). (imagem abaixo, à direita, Jonathan e Lucy passeiam pela praia, lugar onde se apaixonaram, antes da viagem dele ao encontro de Drácula; tudo que ela pode fazer agora é esperar)
Algumas diferenças existem entre as versões de Murnau e Herzog. Drácula se humanizou, sua psicologia agora é mais ambígua, consonante a de outros tiranos típicos de Herzog. Seu diálogo com Lucy, por exemplo, nos revela um vampiro que se ressente com a imortalidade. Nosferatu “carrega” a imortalidade como alguém que arrasta correntes. Sua malignidade, Lúcia Nagib ressalta, não parece ligadas às forças ocultas, mas àquele poder do destino que, nos filmes de Herzog, transforma os homens em escravos da natureza. Tal como seus outros heróis desesperados de Herzog, Aguirre em Aguirre a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972), o proprietário da fábrica de vidro em Coração de Cristal (Herz aus Glas, 1976) ou Fitzcarraldo (em filme homônimo, 1982), Nosferatu é um solitário incompreendido (4). (imagem abaixo, à esquerda, os aldeões se recusam a levar Jonathan ao castelo de Drácula então ele empreende a jornada sozinho; após longa jornada montanha acima, chegará ao anoitecer)
“(...) Um tipo de
ligação entre o grande
cinema expressionista que
tínhamos na Alemanha e
o nosso cinema agora”
Herzog fala de seu filme (5)
Evidentemente, uma releitura não implica uma cópia. No caso de Herzog, as diferenças introduzidas estariam direcionadas ao clima dramático do filme de Murnau. Logo no início, quando nos deparamos com as imagens de múmias, lembramos que o filme de Murnau começa com uma panorâmica da cidade a partir da torre de uma catedral. Se neste caso podemos perceber corpos cheios de vida lá embaixo, no filme de Herzog o contraponto está dado, para aqueles que conhecem o filme mudo – com corpos vazios de vida lá embaixo, numa espécie de santuário-catacumba. Como metáforas de Nosferatu, essas múmias, que se revelam parte de um pesadelo de Lucy, corpos humanos sem vida e sem alma ganharam a imobilidade que o vampiro de Herzog almeja, preso que está em sua imortalidade tediosa infernal. (imagem abaixo, à direita, Drácula está em pleno segundo ataque a Jonathan quando para subitamente, ele presente a força do amor de Lucy, que chama pelo marido; quando Jonathan acordar, o vampiro já estará a caminho na direção de Lucy)
Outras variações entre os dois filmes são o relógio e as paisagens. O relógio, que na versão de Murnau é uma caveira, na versão de Herzog se transforma num carrilhão com um boneco representando a Morte. As paisagens, que em Murnau ganharam um destaque especial, arranca o elemento macabro da própria paisagem real das montanhas – nada ali é cenário montado. No caso de Murnau, a utilização sistemática da técnica da viragem, onde a película era pintada para que cada seqüência tivesse uma cor, cria um clima entre o horror e o surrealismo – na maioria das cópias que chegaram até nós, infelizmente, assistimos o filme de Murnau apenas em preto e branco. A paisagem, na versão de Herzog, que faz uso de uma técnica de filmagem bastante distinta, alcança o mesmo grau de presságio do maligno. Há quem tenha considerado as paisagens do filme de Herzog desligadas da trama por serem “naturais demais” (6). Entretanto, numa olhadela nas paisagens da versão de Murnau salta aos olhos a natureza “natural demais” daquelas montanhas. (imagem abaixo, à esquerda, Lucy pressente o perigo que Jonathan está correndo)
Nosferatu,
o Vampiro da Noite
é um dos poucos filmes de
Herzog onde a Alemanha
aparece, seu país não passa
de uma referência
geográfica (7)
De fato, a paisagem e o olhar da criança são dois elementos presentes na obra de Herzog cuja fonte pode ser traçada ao cinema underground norte-americano da década de 60 do século passado – embora não se possa dizer que ele abraçou este movimento artístico. Nas palavras de Stan Brakhage, um de seus expoentes: “imagine um olho não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, um olho livre dos preconceitos da lógica da composição, um olho que não responde aos nomes que a tudo se dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida através da aventura da percepção. Quantas cores há num gramado para o bebê que ainda engatinha, ainda não consciente do ‘verde’?” (8) Dito isso, as paisagens em Nosferatu, o Vampiro da Noite parecem entrelaçar-se mais ainda e não desligar-se da trama. (imagem abaixo, Jonathan a caminho do castelo de Drácula, ele chegará à noite, o vampiro lhe oferecerá comida e não resistirá ao sangue de Jonathan que escorre de um ferimento com a faca do pão)
Leia também:
Nosferatu e seu Herzog (II)
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Herzog, Fassbinder e Seus Heróis Desesperados
Berlin Alexanderplatz (I), (II), (final)
Nosferatu, o Retrato de Uma Época (I), (II), (final)
Os Malditos de Visconti (I)
Religião e Cinema na Itália
Notas:
1. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. P. 220.
2. NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: o Cinema Como Realidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1991. P. 249.
3. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., p. 221.
4. NAGIB, Lúcia. Op. Cit., p. 222.
5. Werner Herzog Talks About The Making of His New Film Nosferatu – The Vampire (1979) In Nosferatu, o Vampiro da Noite. Extra contido no dvd lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo.
6. NAGIB, Lúcia. Op. Cit., p. 222.
7. É a opinião de Elsaesser, embora ele nem cite Nosferatu, o Vampiro da Noite In ELSAESSER, Thomas. R.W. Fassbinder. Un Cinéaste D’allemagne. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005. P. 221. Além disso, nem todas as locações são na Alemanha.
8. NAGIB, Lúcia. Op. Cit., pp. 26 e 28.
9. ELSAESSER, Thomas, 2005. Op. Cit., p. 31.
Os Malditos de Visconti (I)
Religião e Cinema na Itália
Notas:
1. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. P. 220.
2. NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: o Cinema Como Realidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1991. P. 249.
3. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., p. 221.
4. NAGIB, Lúcia. Op. Cit., p. 222.
5. Werner Herzog Talks About The Making of His New Film Nosferatu – The Vampire (1979) In Nosferatu, o Vampiro da Noite. Extra contido no dvd lançado no Brasil pela distribuidora Versátil Home Vídeo.
6. NAGIB, Lúcia. Op. Cit., p. 222.
7. É a opinião de Elsaesser, embora ele nem cite Nosferatu, o Vampiro da Noite In ELSAESSER, Thomas. R.W. Fassbinder. Un Cinéaste D’allemagne. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005. P. 221. Além disso, nem todas as locações são na Alemanha.
8. NAGIB, Lúcia. Op. Cit., pp. 26 e 28.
9. ELSAESSER, Thomas, 2005. Op. Cit., p. 31.