“O Sacrifício é,
entre outras coisas,
um repúdio ao
cinema comercial”
Andrei Tarkovski,
Esculpir o Tempo, p. 274
Sinopse
Alexander, um jornalista, ator aposentado e professor de estética, está preocupado com a perda da espiritualidade no mundo moderno. Na primeira seqüência do filme o encontramos com seu pequeno filho embaixo de uma árvore seca. Alexander conta para a criança, emudecida por uma operação nas cordas vocais, a estória de um monge que, passo a passo e balde após balde, sobe uma colina para regar uma árvore seca. Ele acredita que seu ato é necessário e não duvida do poder milagroso de sua fé em Deus. Certa manhã, a árvore explode de vida.
Na noite de seu aniversário, estoura a Terceira Guerra Mundial. Ele se volta para Deus, na esperança de parar a guerra. Enquanto sua família procura, sem muito êxito, lidar com a situação, Alexander é perturbado por sonhos (o filme é colorido, enquanto os sonhos são em preto e branco). O insondável filósofo, amigo e carteiro Otto informa Alexander que ele tem o poder para salvar o mundo. Mas para isso ele deve transar com a solitária, tímida e hesitante feiticeira Maria, que também é a empregada da família. No final Alexander consegue alcançar seu objetivo, mas agora ele deve cumprir sua promessa e se afastar de seu passado: de seu amado filho, de sua família, sua casa... Otto é a única pessoa de quem ele se despende.
Na noite de seu aniversário, estoura a Terceira Guerra Mundial. Ele se volta para Deus, na esperança de parar a guerra. Enquanto sua família procura, sem muito êxito, lidar com a situação, Alexander é perturbado por sonhos (o filme é colorido, enquanto os sonhos são em preto e branco). O insondável filósofo, amigo e carteiro Otto informa Alexander que ele tem o poder para salvar o mundo. Mas para isso ele deve transar com a solitária, tímida e hesitante feiticeira Maria, que também é a empregada da família. No final Alexander consegue alcançar seu objetivo, mas agora ele deve cumprir sua promessa e se afastar de seu passado: de seu amado filho, de sua família, sua casa... Otto é a única pessoa de quem ele se despende.
Depois de atear fogo à casa da família, tentam conduzi-lo a uma ambulância (do manicômio?). Após alguma hesitação, é o próprio Alexander que entra no automóvel. Na cena inicial do filme, encontramos Alexander e seu filho em torno da árvore estéril. Alexander não para de falar, e diz para a criança, “No início era o Verbo, mas você está silencioso como um salmão mudo”. Na cena final, vemos seu pequeno filho sozinho, regando a árvore. Deitado debaixo dela, olhando para sua copa nua, e como que substituindo o pai que fez voto de silêncio, a criança começa a falar. Ela repete a frase de Alexander, que inicia o evangelho de João: “no princípio era o Verbo”. Em seguida, pergunta: “por que papai?”
O Homem Moderno
O Homem Moderno
“Aprender a amar a solidão. Ficar mais
sozinho consigo mesmo. O problema com
os jovens é a preocupação com as turbulentas
e agressivas ações para não se sentirem sozinhos
e isso é uma coisa triste. O indivíduo deve
aprender a ser como uma criança, o que não
significa estar sozinho. Significa não se
aborrecer consigo mesmo. O que é um
indício muito perigoso, quase uma doença” (1)
sozinho consigo mesmo. O problema com
os jovens é a preocupação com as turbulentas
e agressivas ações para não se sentirem sozinhos
e isso é uma coisa triste. O indivíduo deve
aprender a ser como uma criança, o que não
significa estar sozinho. Significa não se
aborrecer consigo mesmo. O que é um
indício muito perigoso, quase uma doença” (1)
Por que esta necessidade de nos afastar absolutamente dos momentos de introspecção? Por que silêncio se tornou sinônimo de incomunicabilidade e sofrimento? Em O Sacrifício (Offret, 1985), Andrei Tarkovski, nos dá algumas pistas. O núcleo deveria ser a história de como o herói, Alexander, iria se curar de um câncer fatal graças a uma noite passada com uma feiticeira. Tarkovski estava preocupado com o tema da harmonia que nasce apenas do sacrifício, da dupla dependência do amor.
Entretanto, sua concepção sobre o assunto é um pouco diferente da média. Não se trata de amor mútuo, segundo Tarkovski, o amor só pode ser unilateral! “Se não houver entrega total, não é amor” (2). Tarkovski está preocupado em saber se o indivíduo pode ultrapassar interesses egoístas e uma visão de mundo materialista. Seu filme mostra sua busca por um indivíduo capaz de sacrificar a si mesmo e seu modo de vida, sem se importar em nome de que esse sacrifício é realizado.
Alguém que, enfim, estivesse para além dos conceitos utilitários que passaram a dominar nossas vidas. Para além do consumismo cego, em direção a uma responsabilidade espiritual. Um caminho que, além da salvação pessoal, aponte para a salvação da sociedade. “Em outras palavras: voltar-se para Deus” (3). Somente numa vida espiritual equilibrada, sugere Tarkovski, o indivíduo poderá se aproximar do estado em que pode ser responsável pela sociedade. “Este é o passo que se transforma num sacrifício, no sentido cristão de auto-sacrifício”. O Sacrifício conta a história de alguém cuja dependência em relação aos outros o leva à independência e para quem o amor é simultaneamente a suprema servidão e a máxima liberdade.
Mas Tarkovski reconhece que, em sua maior parte, a humanidade não está preparada para negar a si mesma e seus interesses pelo em de outras pessoas ou em nome de algo Maior. “Reconheço que a idéia de sacrifício, o ideal cristão do amor ao próximo, não desfruta de popularidade – e que ninguém pede auto-sacrifício. Este é encarado como idealista e pouco prático”.
Tarkovski insiste em chamar atenção para o que ele chama de erosão da individualidade pelo egoísmo e dá um exemplo do excesso de importância que se dá aos interesses materiais. Quando sentimos ansiedade, depressão ou desespero procuramos um psiquiatra ou um sexólogo. Eles assumiram o lugar do confessor. Pagamos por seus serviços. Quando sentimos necessidade de sexo, pagamos por isso também. De acordo com Tarkovski, fazemos isso mesmo sabendo que o dinheiro poderá comprar aquilo que precisamos.
O filme não é apenas uma parábola sobre o sacrifício, mostra também a historia de alguém que foi salvo. De alguém que se curou num sentido mais amplo, não apenas de uma doença física fatal, mas que também alcançou uma regeneração espiritual. O filme, afirmou Tarkovski, se transformou numa parábola poética e sua estrutura se tornou mais complexa. Alexander, um ator que abandonou os palcos, está esmagado pela depressão. Tudo o cansa: as pressões da mudança, a discórdia na família, sua percepção da ameaça que representa o progresso da tecnologia. Alexander passou a odiar o vazio do discurso humano, adotando um voto de silêncio.
O Voto de Silêncio
O Voto de Silêncio
“Quando o homem nasce ele
é fraco e flexível, quando morre
é forte e rígido. (...) A fraqueza e a
flexibilidade exprimem o frescor
da existência. Aquele que
endureceu não vencerá”
Lao Tse
é fraco e flexível, quando morre
é forte e rígido. (...) A fraqueza e a
flexibilidade exprimem o frescor
da existência. Aquele que
endureceu não vencerá”
Lao Tse
Não é possível saber se a ameaça de guerra nuclear não passa de uma alucinação de Alexander. Tarkovski força o público a procurar as conclusões dentro de si. Alexander volta-se para Deus em oração, rompe com sua vida passada, destruindo sua casa e separando-se do filho que tanto ama. Fecha-se em silêncio, constatando a desvalorização das palavras no mundo moderno. Para religiosos, a resposta de Deus à pergunta, “o que fazer para evitar um desastre nuclear?”, seria volta-se para Deus. Outros enxergariam Maria como o centro do filme. De acordo com Tarkovski, “nenhuma dessas reações tem qualquer relação com a realidade apresentada no filme” (4).
Em relação à religiosidade de Tarkovski, Michel Chion chama atenção para a surpreendente superposição (mas não uma fusão) entre cristianismo e o pensamento mágico. Uma superposição “perfeitamente ambígua” entre a concepção cristã e um fundo de feitiçaria pagã – em vários momentos de sua obra Tarkovski mostra corpos levitando, mas isso ocorre tanto no paganismo quanto no cristianismo. Por um lado, Alexander se dirige ao Deus Pai para afastar a guerra. Por outro, seguindo um conselho, ele passa a noite com uma feiticeira (duas precauções valem mais do que uma!). Entretanto, quando Tarkovski fala de seu filme, ele usa o discurso cristão, espiritualista, calando-se em relação à magia e as forças obscuras (5).
Mas a fé para Tarkovski é uma aventura, um risco. Em Tarkovski, ainda de acordo com Chion, a fé não leva ao pertencimento a nenhuma comunidade ou a participação em rituais (missas, comunhão, etc.). Ela não é uma segurança, mas um compromisso solitário, uma aposta “louca”. Mas “loucura” aqui tem um sentido muito específico. Alexander alcança a liberdade, mas demonstra isso através de um ato considerado “louco”: se calar e queimar sua casa (a cena foi filmada duas vezes devido a problemas técnicos). Segundo Chion, o final de O Sacrifício sugere também que a paternidade tornou-se impossível. Se a palavra do pai não conta mais, então que contém com seu silêncio.
A última frase pronunciada no último filme de Tarkovski sai da boca do pequeno filho de Alexander, que, falando com dificuldade repete a frase: “no começo era o Verbo, a Palavra”. Ela é seguida de uma das mais tocantes perguntas que uma criança pode fazer: “por que, papai?” Essa pergunta, sugere Chion, é fruto de uma fórmula que Alexander jogou ao vento enquanto acreditava falar no vazio. Uma das perguntas mais importantes do cristianismo e da cultura Ocidental, ela abre o Evangelho de João. A criança pergunta, mas o pai não está mais lá para responder, e mesmo que estivesse seu voto de silêncio o calaria. É como se Alexander tivesse decidido assumir ele mesmo o silêncio de Deus diante do filho.
Para todo cristão, existe um momento particularmente doloroso nos Evangelhos, quando Cristo está só no Monte das Oliveiras. Ele pergunta ao Pai se o cálice não pode ser afastado dele. Nos Evangelhos de Marcos e Mateus, o Pai não responde. Tarkovski se apóia no silêncio e deixa o espectador na mesma situação dos personagens: na dúvida (6).
No final, Alexander prova que está certo, mas demonstra que está preparado para uma elevação. O médico, que a princípio era bastante simplista e dedicado à família de Alexander, passa a compreender a atmosfera venenosa letal que domina a família. Adelaide, a esposa de Alexander, estabelece uma nova intimidade com Julia, a criada. Isso é novo para a patroa da casa. Durante todo o filme ela sufoca tudo que aspira à individuação, à afirmação da personalidade, esmagando a tudo e todos, inclusive o marido.
Praticamente incapaz de refletir, Adelaide sofre em função dessa falta de espiritualidade. Entretanto, afirma Tarkovski, é justamente esse sofrimento que lhe confere o poder destrutivo. Ela é uma das causas da tragédia de Alexander. “Sua capacidade de apreender a verdade é limitada demais para lhe permitir entender um outro mundo, o mundo do próximo. Além disso, mesmo que pudesse perceber esse mundo, ela não teria capacidade ou disposição para entrar nele” (7). Maria é a antítese de Adelaide, modesta, tímida, insegura. Mas o impossível acontece, o amor dessa mulher simples se torna visível para Alexander.
A Mordaça Mercadológica
A Mordaça Mercadológica
“A primeira e a última cena –
o ato de regar a árvore infrutífera,
que, para mim, é um símbolo de fé – são
os pontos altos entre acontecimentos
que se desenrolam com
intensidade cada vez maior”
Tarkovski,
Esculpir o Tempo, p. 269
o ato de regar a árvore infrutífera,
que, para mim, é um símbolo de fé – são
os pontos altos entre acontecimentos
que se desenrolam com
intensidade cada vez maior”
Tarkovski,
Esculpir o Tempo, p. 269
Tarkovski desejava concentrar os sentimentos do espectador no comportamento aparentemente absurdo de Alexander. Horrorizado pelas notícias do desastre nuclear iminente, Alexander faz um voto de silêncio: “emudecerei, nunca mais direi nenhuma palavra a ninguém, renunciarei a todos os laços que me ligam à minha vida. Senhor me ajude a cumprir esta promessa”. Segundo Tarkovski, Alexander foi escolhido por Deus. Ele rompe com o mundo e sua lei, afasta-se de sua família, e torna-se capaz de pressentir a força destrutiva que impele a sociedade moderna rumo ao abismo apocalíptico do silêncio. Por outro lado, lembra Tarkovski, todos os outros também podem ser encarados como escolhidos de Deus:
“Não estou interessado pelo desenvolvimento do enredo, pela mudança de eventos. A cada filme eu sinto cada vez menos necessidade deles. Sempre me interessei mais pelo universo das pessoas e, para mim, era muito mais natural fazer uma viagem dentro da psicologia que dera forma à atitude do herói para com a vida, dentro das tradições literárias e culturais que são a fundação de seu mundo espiritual. Estou interessado no homem que contém o universo dentro de si mesmo. E a fim de encontrar a expressão para a idéia, para o significado da vida humana, não há necessidade de um pano de fundo repleto de acontecimentos” (8)
O cineasta acreditava que o homem contemporâneo não é capaz de enxergar o mundo, porque está preso dentro de um vazio espiritual que o afasta de Deus. Mais de uma vez ouve-se uma flauta, que tomamos como trilha sonora do filme. Mais de uma vez, Alexander abre um móvel e desliga o gravador que tocava a fita cassete com a flauta. É como se Tarkovski desejasse nos mostrar como a realidade escorre facilmente entre nossos dedos. Mesmo assim, é em direção a ela que ele acha que devemos seguir. Tarkovski se ressente de que os problemas morais e éticos estão fora de moda, e o cinema, que poderia ser um veículo para sua resolução, foi atirado pelos produtores na vala comum da mercadoria:
“Nesse sentido, O Sacrifício é, entre outras coisas, um repúdio ao cinema comercial. Meu filme não pretende sustentar ou refutar idéias específicas ou defender este ou aquele modo de vida. O que eu quis foi propor questões e demonstrar problemas que vão diretamente ao núcleo das nossas vidas e, desse modo, levar o espectador de volta às fontes dormentes e ressequidas da nossa existência. Figuras, imagens visuais, estão muito mais capacitadas para realizar essa finalidade do que quaisquer palavras, particularmente hoje, quando o mundo perdeu todo o mistério e magia, e falar tornou-se mero palavrório – vazio de significado, como observa Alexander” (9)
Leia também:
As Crianças de Andrei Tarkovski
Notas:
1. Comentário de Tarkovski quando questionado sobre o que gostaria de dizer aos jovens. Extraído do documentário O Poeta do Cinema, no volume I da série Dossiê Tarkovski. Continental Home Vídeo, 2004. O grifo é meu.
2. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 260.
3. Idem, p. 261.
4. Ibidem, p. 269.
5. CHION, Michel. Andreï Tarkovski. Paris: Cahiers du Cinéma/Le Monde, 2007. P. 88.
6. Idem, p. 87.
7. Ibidem, p. 270-1.
8. Citação do livro Esculpir o Tempo, extraída do documentário Dirigido por Andrei Tarkovski (1988), no volume IV da série Dossiê Tarkovski. Continental Home Vídeo, 2004.
9. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Op. Cit., p. 274.