“(...) De uns anos para cá,
assisti ao desaparecimento
progressivo, mesmo em sonho,
do meu instinto sexual. Me alegro
com isso, pois é como se tivesse me
livrado de um tirano. Se Mefistófeles
aparecesse e me oferecesse de volta o
que chamam de virilidade, eu lhe diria:
‘Não, obrigado, isso eu não quero,
mas fortaleça meu fígado e meus
pulmões para que eu possa
continuar bebendo e fumando’”
Luis Buñuel (1)
Uma Loura e Seu Tédio
Séverine Serizy é uma dona de casa burguesa vivendo na França da década de 60 do século passado. Esposa virginal, ela não quer ter filhos (e sexo) com o marido, afirmando que isso poderia arruinar a preciosidade daquela união. Ela tem fantasias sexuais masoquistas que não se encaixam em seu casamento com Pierre, um marido afetuoso e romântico. Na cena inicial quase somos levados a pensar o contrário, já que ele arranca a loura esposa de um passeio romântico repleto de palavras gentis numa charrete em meio a um bosque, para entregá-la aos dois cocheiros, que rasgam sua roupa, a amarram, chicoteiam e estupram – inicialmente ela protesta, mas logo percebemos sua expressão de prazer (imagens abaixo, à direita e esquerda). Entretanto, logo a seguir descobrimos que se trata de mais um delírio de Séverine, enquanto se deita para dormir em sua cama burguesa. Podemos então concluir que aquela violência não foi forçada sobre ela, mas se tratava de uma fantasia de Séverine. Uma amiga comenta sobre Henriette (uma burguesa como elas), uma conhecida de ambas que estava trabalhando num bordel. Séverine acha que transar com estranhos deve ser horrível, mas fica tão curiosa que pergunta a Pierre sobre como são as coisas num bordel. Certo dia, ela acaba procurando a satisfação de seus desejos se empregando como prostituta num bordel. Sem o conhecimento do marido, a vida dupla de Séverine emergirá do sonho para a realidade. Suas fantasias envolvem ser açoitada, amarrada, estuprada, e assumir uma posição passiva diante dos homens, pelos quais irá sentir maior atração na medida em que eles forem autoritários com ela (na imagem acima, seu primeiro cliente).
“(...) A Bela
da Tarde talvez
tenha sido o maior
sucesso comercial de
minha vida, sucesso que
atribuo mais às putas
do filme do que a
meu trabalho”
Luis Buñuel (2)
da Tarde talvez
tenha sido o maior
sucesso comercial de
minha vida, sucesso que
atribuo mais às putas
do filme do que a
meu trabalho”
Luis Buñuel (2)
Marcel é um cliente violento de Séverine no bordel onde ela arrumou um emprego. Certa vez, com uma fotografia de Pierre na mão, se refere a ele como um obstáculo. A seguir, Pierre leva um tiro, aparentemente disparado por Marcel - que será perseguido e morto pela polícia. Em conseqüência, Pierre ficou cego e paralisado numa cadeira de rodas - coincidentemente, dias antes ele passeava com Séverine quando se deparou com uma cadeira de rodas vazia na calçada em seu caminho. Séverine comenta com Pierre que não sonhou mais desde o acidente dele - no final da primeira fantasia, no início do filme, quando ela volta para o mundo "real", Pierre demonstra saber a respeito desses sonhos dela com carruagens... Henri Husson, um amigo dele que deseja Séverine (que por sua vez o detesta), ameaça contar tudo sobre a vida dupla dela para o marido - o endereço do bordel onde ela trabalha foi indicado por Henri, que chegou a encontrá-la por lá, mas não transou com ela alegando que o que o atraia era a pureza que acreditava existir na esposa do amigo. Vemos Henri se retirando do cômodo onde está Pierre e deixando o apartamento do casal. Séverine vai até o marido, que está imóvel. Esperando pelo pior, quando ela chega perto dele o tique-taque do relógio é substituído pelo som de sinos de ovelhas. Séverine sorri e vemos Pierre se levantar da cadeira de rodas como se tudo fosse uma encenação. Séverine agora escuta o som dos guizos da charrete de sua fantasia inicial. Na imagem final, acompanhamos a charrete seguindo pelo mesmo longo e reto caminho do bosque.
A Perversão é Desejar
O Diário de Uma Camareira, minha vida praticamente se confunde com os filmes
que realizei”
que realizei”
Luis Buñuel (3)
A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967) é uma adaptação para cinema do romance de Joseph Kessel realizada pela cineasta espanhol Luis Buñuel, com a parceria de Jean-Claude Carrière no roteiro. Ao delinear o perfil de uma jovem burguesa masoquista, Buñuel explica que pretendia dar vazão a seu interesse pelo fetichismo, que já era patente desde O Alucinado (Él, 1953) (a primeira cena) e O Diario de Uma Camareira (Le Journal d’une Femme de Chambre, 1964) (a cena das botinas). Contudo, o cineasta adverte que seu interesse pela perversão é puramente teórico. “Ela me diverte”, disse ele, que afirmou não ter nada de perverso em seu comportamento sexual. Além disso, completou Buñuel, um verdadeiro perverso não mostra em público suas perversões. Uma dessas perversões, ou diversões, de Buñuel foi cortada pela censura. É na cena em que Séverine, já como prostituta, é contratada para deitar-se num caixão enquanto um homem chama pela filha dele e aparentemente se masturba. Isso acontece numa capela, e o cineasta lamentou que a missa que veio antes (provavelmente da filha morta) tenha sido cortada. Segundo Buñuel, esse corte altera o clima da cena (4). (imagens abaixo, a expressão prostrada de Séverine é sempre a mesma: à direita, na primeira vez que ouve falar de alguém de sua classe social que foi trabalhar num bordel; à esquerda, após voltar da fantasia das chicotadas)
“[Luis] Buñuel
e Nelson [Rodrigues]
partilham uma obsessão
pelos extremos de castidade
e de depravação que podem
coexistir na mesma pessoa;
basta fazer uma comparação
entre A Bela da Tarde e A
Dama do Lotação (5) (...)”
e Nelson [Rodrigues]
partilham uma obsessão
pelos extremos de castidade
e de depravação que podem
coexistir na mesma pessoa;
basta fazer uma comparação
entre A Bela da Tarde e A
Dama do Lotação (5) (...)”
Braulio Tavares (6)
Ao contrário do que possa parecer, quando Buñuel afirmou que a partir de 1964 sua vida praticamente se confunde com seus filmes, o cineasta não seria Séverine! Se considerarmos as declarações de sua esposa, por traz daquela máscara de surrealista risonho havia um tirano nas relações familiares. Portanto, se algum personagem de A Bela da Tarde representa Buñuel, seriam os clientes – de quem Séverine vai gostar mais na medida em que forem mais autoritários. No que diz respeito à representação do desejo feminino neste filme, Peter Evans sugere a questão é muito mais complexa do que a dicotomia entre a “boa” e a “má” representação das mulheres. Para uma feminista radical, afirma Evans, A Bela da Tarde seria apenas mais um exemplo da exploração estereotipada em relação à mulher, já que a exibição erótica do corpo feminino estará sempre ligada à violência e coerção masculinas. Por outro lado, conclui Evans, aquela que ele chamou de “feminista libertária”, consideraria a libertação e a exploração da sexualidade feminina como algo mais importante do que uma imposição masculina. Algo que teria o potencial não apenas de interrogar a sexualidade em geral, mas também de explorar situações e comportamentos extremos, ultrapassar o realismo e expandir as fronteiras da consciência.
Dividida entre o
sentimento do pecado e
a angústia da punição, Séverine
é a melhor representante de uma
longa linha de personagens
neuróticas na obra
de Buñuel (7)
sentimento do pecado e
a angústia da punição, Séverine
é a melhor representante de uma
longa linha de personagens
neuróticas na obra
de Buñuel (7)
Entretanto, Harmony H. Wu esclarece que as conclusões de Evans se baseiam mais no livro de Joseph Kessel do que no filme de Buñuel. Ao contrário do filme, com poucas referências à infância de Séverine, o livro a detalha bastante, levando Evans a construir explicações freudianas para o comportamento de Séverine que acabarão por validar a conclusão de que o comportamento dela é mais uma aberração no interior da heterossexualidade patriarcal – é verdade que Buñuel ancora a suposta frigidez de Séverine numa cena primitiva traumatizante: ainda criança ela se deixa beija por um trabalhador; escutamos a voz em off da mãe dela, que pergunta se a menina já vem; não há resposta (8). De acordo com Wu, não existe nada de perverso nas fantasias e desejos de Séverine, embora a efetivação deles no mundo real talvez possa aponta para a sujeição do desejo feminino ao masculino. Mas a própria Wu Tania Modelski, para quem a fantasia masoquista de ser levava à força poderia conter, paradoxalmente, um desejo de poder e vingança. Na lógica da sexualidade feminina “normal” do ponto de vista do patriarcado, Wu sugere que a verdadeira “perversão” de Séverine é o fato de ela conseguir prazer, mesmo vivendo num sistema que tende a apagar o prazer feminino da equação sexual (9).
Após sua primeira
experiência no bordel,
Séverine joga suas roupas
íntimas na lareira. No início
de Esse Obscuro Objeto do
Desejo (1977), Faber ordena
a seu empregado faça o
mesmo com a calcinha
que achou na sala
experiência no bordel,
Séverine joga suas roupas
íntimas na lareira. No início
de Esse Obscuro Objeto do
Desejo (1977), Faber ordena
a seu empregado faça o
mesmo com a calcinha
que achou na sala
Sendo assim, conclui Wu, se A Bela da Tarde não aponta para uma alternativa feminista à sexualidade feminina sob o jugo patriarcal, o filme dispara um mecanismo do desejo a partir do interior do sistema que tem o potencial de desmantelar todo o sistema – algo que, segundo Wu, acontece no final do filme. De acordo com Wu, mesmo o bordel constitui uma avenida institucionalizada desses desejos sexuais irrecuperáveis no sistema burguês da sexualidade – sob o patriarcado, os bordéis servem apenas para os homens buscarem prazer. É por esse motivo que o eventual uso do bordel para seu próprio prazer sugere um caminho subversivo no interior do sistema. É um mecanismo perfeitamente buñueliano, diria Wu: o próprio mecanismo de repressão criando as condições de erupção do desejo que irá atacá-lo. Como disse o próprio Buñuel, a grande repressão sexual na Espanha católica tornou o próprio desejo que pretendia reprimir numa força avassaladora na psicologia dos espanhóis (10). (imagem acima, à direita, Séverine é a única dentre as prostitutas que se interessa pelo conteúdo da caixinha do cliente chinês; muitas pessoas perguntaram a Buñuel o que havia ali dentro, irritado ele respondia: "o que você quiser")
Real-Fantasia-Vida
A profunda cisão
da subjetividade de
Séverine, exacerbada por
contraditórias imposições
patriarcais (virgem-esposa-
mãe-prostituta), se reflete
na estrutura narrativa
fraturada do filme (11)
Wu afirma também que, ao nível da forma, A Bela da Tarde trabalha no sentido de libertar o olhar e a narrativa da pressão da autoridade patriarcal. Parte do “jogo” de assistir a este filme estaria na frustração ao tentar separar o “real” da fantasia. Na medida em que as fantasias de Séverine começam a tomar uma dimensão real através do bordel, aumenta nossa dificuldade em distingui-las da realidade. Essa lógica tão comum em nossa prática cotidiana (distinguir entre o sonho e a realidade) acaba se revelando um esforço totalmente fútil. As incertezas do final do filme não apenas tornam ambíguo seu desfecho, mas acabam por comprometer todo o castelo de cartas de dicotomias que possamos eventualmente ter construído em torno da narrativa. Cada segmento do filme que estabelecemos como sendo uma seqüência de sonho se dispersa. Essa é a hipótese de Paul Sandro, que Harmony Wu endossa, lembra que esse raciocínio leva também ao envolvimento da própria subjetividade do espectador, além de minar a própria estrutura da narrativa patriarcal da narrativa: “Esse ‘rompimento’ de categorizações produz uma indeterminação que subverte completamente uma lógica narrativa que seja dependente de uma temporalidade causal estrita; porque as contradições e auto-anulações não podem ser racionalmente explicadas fora de um universo ficcional ordenado e puro” (12). (imagens acima e abaixo: à esquerda, no começo do filme ele faz juras de amor enquanto ela não permite que ele a beije; à direita, no final do filme, depois do acidente ele se torna, pelo menos por alguns momentos, o marido totalmente dependente)
A cena em que
Séverine bisbilhota
a prostituta e seu cliente
é um momento de reflexão
sobre o espectador
em relação à
Bela da Tarde (13)
Wu acredita que o caráter subversivo de A Bela da Tarde é que, como O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972) e ao contrário de Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929), o filme age contra as convenções sem se recusar a interagir com elas. As cenas “reais” de Séverine, Wu observa, são marcadas acusticamente pelo som dos relógios, que sublinham a “realidade” com uma progressão “real” do tempo – a obsessão com o tempo marca ao mesmo tempo o mundo estruturado da burguesia e a progressão estruturada do tempo na narrativa convencional. Porém, essa distinção entre fantasia e realidade cairá por terra na conclusão do filme – o trabalho de Buñuel com a trilha sonora des constrói a narrativa tradicional e desafia o elemento visual como o aspecto mais importante num filme. Na opinião de Wu, essa utilização convencional do tempo torna ainda mais inquietante a ilegibilidade da seqüência final.
Leia também:
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
O Marcello de Mastroianni
Casanova de Fellini e o Infantilismo Italiano
O Peplum e a Indústria do Espétáculo
Notas:
1. BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009. P. 75.
2. Idem, p. 337.
3. Ibidem.
4. Ibidem, pp. 336-7.
5. Adaptação de uma história do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980), o filme foi dirigido pelo também brasileiro Neville d’Almeida em 1978.
6. TAVARES, Bráulio. O Anjo Exterminador. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. P. 128.
7. TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995. P. 186.
8. Idem, p. 234.
9. WU, Harmony H. Unraveling Entanglements of Sex, Narrative, Sound, and Gender: The Discreet Charm of Belle de Jour In: KINDER, Marsha (Ed.). Luis Buñuel The Discreet Charm of Bourgeoisie. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. Pp. 123-4, 125.
10. BUÑUEL, Luis. Op. Cit., p.337.
11. WU, Harmony H. Op. Cit., pp. 131-2.
12. Idem, pp.127-8, 132.
13. Ibidem, p. 134.