“(...) Playtime
talvez seja a Europa
de 1968 filmada pelo
primeiro cineasta marciano,
o Louis Lumière ‘deles’? Então,
ele vê aquilo que não vemos
mais, escuta aquilo que
não escutamos mais e
filma diferente (...)”
François Truffaut, 1967 (1)
Por ocasião de uma entrevista para Cahiers du Cinéma, Jacques Tati (nascido Jacques Tatischeff) se referiu à importância da linha reta em Playtime. Tativille foi uma “cidade” modelo da arquitetura moderna, cujo aspecto mais importante para o cineasta francês é o ângulo reto. Os personagens, explicou Tati, são prisioneiros da arquitetura moderna, os arquitetos os obrigaram a circular sempre em linha reta. Na cena da boate inacabada que abre mesmo assim, e talvez por isso mesmo, a personalidade das pessoas aflora. Mesmo assim, logo na entrada o que vemos é um sinal luminoso de neon (com defeito) que indica a direção a ser seguida (a seta indica a direção da porta com uma linha reta que se afasta de um círculo em espiral) (imagem acima). Tati pediu a personagens e figurantes que sempre caminhassem em linha reta, reproduzindo o padrão arquitetônico moderno nas ruas, nos escritórios e nas residências (2). Como numa aula de antropologia, Playtime mostra como as pessoas são (ou naquilo em que estão a se transformar) através das formas dos lugares onde vivem (a linha reta) e pelos materiais de que são construídos (aço, concreto, vidro, plástico, material sintético).
Para Truffaut,
o problema de Tati,
aquilo que pode fazer a
platéia parar de rir de seus
filmes, é que ele é muito
lógico. A questão é que
a “vida real” que Tati
pretende retratar
não é lógica
o problema de Tati,
aquilo que pode fazer a
platéia parar de rir de seus
filmes, é que ele é muito
lógico. A questão é que
a “vida real” que Tati
pretende retratar
não é lógica
Referindo-se à Meu Tio (Mon Oncle, 1958), François Truffaut assinalou alguns pontos desse filme que chamou de “documentário do amanhã”, detalhes que o aproximam dos padrões de comportamento em Playtime. De acordo com Truffaut, o fato de Tati não suportar elipses faz com que muitas situações que poderiam ser subentendidas somem-se ao tempo do filme e causem uma sobrecarga. Por exemplo, a cozinha ultramoderna da casa Arpel e o peixe do jardim, que cospe água sempre que alguém passa pelo portão (imagem acima, à direita). Truffaut acha que a repetição da cozinha faz o riso ir embora, enquanto o cenário do peixe “não precisaria” ser reapresentado tantas vezes. Entretanto, Truffaut explica que retirar essas coisas do caminho não seria lógico para Tati. Para escamotear o peixe seria preciso um close, mas “na vida” isso não acontece dessa forma! Segundo o argumento francês de Tati explicado por Truffaut, “ninguém chega tão perto do nariz das pessoas” – essa observação é curiosa, pois em países como o Brasil é justamente assim que as coisas acontecem; algo que certamente deixa muitos visitantes europeus desconcertados. Sendo assim, conclui Truffaut, Tati leva às últimas conseqüências a presença de elementos aos quais não mais prestamos atenção, ou sequer ouvimos: o barulho dos saltos da senhora Arpel em Meu Tio, e de outros tantos personagens em Playtime, sons de equipamentos eletrônicos e do ar saindo do forro da poltrona (segunda imagem abaixo, à esquerda), etc (3).
Encarregada do
elenco de Playtime,
Marie-France Siegler
convenceu esposas de
militares americanos
morando na Europa
a interpretarem o
grupo de turistas (4)
Para Serge Daney, os seis longas-metragens de Tati são os filmes que melhor analisam a história da França e do cinema francês do pós-guerra. Dia de Festa (originalmente lançado no Brasil como Carrossel da Esperança, Jour de Fête, 1949) aponta para o otimismo numa Europa arrasada, As Férias do Senhor Hulot (Les Vacances de Monsieur Hulot, 1953) e Meu Tio apontam para a sátira social francesa e se enquadram num “cinema de qualidade”. O caso de Playtime é particular, pois antecipa o bairro parisiense de La Défense e ao mesmo tempo sugere que o cinema francês não seria mais capaz de tratar das transformações na realidade do país, “degradando-se” em co-produções internacionais da mesma forma que o estilo arquitetônico internacional (onipresente neste filme) e a americanização da vida (elemento que já esbarrava na vida do carteiro em Dia de Festa). Situação que deságua em As Aventuras de M. Hulot no Tráfego Louco (Trafic, 1971) e Parada (Parade, 1974), respectivamente, uma co-produção com a Holanda e uma encomenda da televisão sueca. Além disso, as acusações de que Tati fosse um homem voltado para o passado são infundadas (5).
Desde Dia de Festa o cineasta já havia começado a fazer experimentos com a sonorização no cinema. Daney também nos esclarece que, com trinta anos de antecedência, Parada é uma extraordinária sondagem no mundo do vídeo. De fato, Daney nos abre os olhos e mostra que o grande tema dos filmes de Tati são as mídias, no sentido que lhes deu Marshall McLuhan: os meios de informação como extensões das faculdades mentais ou psíquicas do homem e prolongamentos de seu corpo. Em Dia de Festa, entregar a carta é um problema, mas verdadeira mensagem é o meio (o carteiro). As mídias são os fogos de artifício, sugere Daney, lançados cedo demais em As Férias do Senhor Hulot, que prenunciam o final de Parada, onde qualquer um pode se tornar rastro luminoso numa paisagem eletrônica. Em Meu Tio, não vemos a televisão do casal moderno, apenas a luz que emana dela e “ilumina” suas vidas e seu jardim e sua casa eletrônica. Tais exemplos mostram na opinião de Daney, como Tati prova que o mundo antigo é melhor (economia e calor humano) sem condenar o mundo moderno (o malfeito e o desperdício).
“(...) É preciso se dar conta
de que trabalhamos durante dois
anos em Playtime: foi muito tempo!
Neste filme, estiveram milhares de
pessoas. Pessoas que morreram,
algumas se casaram, outras se
divorciaram. Tati não mudou!”
Eugène Roman,
Cenógrafo em Playtime (7)
De acordo com Daney, com a exceção de Meu Tio, não se pode dizer que a obra de Tati elogia o antigo. O cineasta está com o olho na modernização assim, como os caminhos campestres de Dia de Festa e as auto-estradas de As Aventuras de M. Hulot no Tráfego Louco levam os homens cada vez mais do campo para as cidades. Daney também chama nossa atenção para a maneira como Tati escapa das catástrofes burlescas típicas de certos humorismos. Quando vemos Playtime, afirmou Daney, tendemos a esquecer que todas as ações realizadas são razoavelmente coroadas de sucesso: “Somos tão habituados pelo cinema a rir do fracasso, a nos divertir com a insignificância, que terminamos por acreditar que, diante de Playtime, também rimos contra alguma coisa, embora não haja nada (...)” (8). Daney insiste uma vez mais e afirma que Tati é diferente dos outros cômicos porque nele não existe queda. Não se pode rir em seus filmes daquele que cai já isso quase não existe, eis porque Daney gosta tanto da cena do restaurante em Playtime, quando uma mulher cai no chão por acreditar que o garçom lhe oferecia uma cadeira: “humano” não é rir daquele que cai; para Tati, manter-se de pé é o mais engraçado; e o fato de balançar, diria Daney em relação à passada de Hulot, é que é humano.
“(...) A mensagem é
clara: em Playtime, a
vedete, é o cenário”(9)
clara: em Playtime, a
vedete, é o cenário”(9)
Notas:
Leia também:
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
O Silêncio de Jacques Tati
Arte do Corpo: Natacha Merritt e o Diário Digital
Fassbinder em Petra von Kant
A Ideologia, a Mulher e o Cinema na Itália
O Marcello de Mastroianni
1. EDE, François ; GOUDET, Stéphane. Playtime. Paris: Cahiers du Cinéma, 2002. P. 15.
2. GOUDET, Stéphane. Jacques Tati, de François le Facteur à Monsieur Hulot. Paris: Cahiers du Cinéma, 2002. Pp. 80-1.
3. TRUFFAUT. François. Os Filmes de Minha Vida. Tradução Vera Adami. São Paulo: Nova Fronteira, 1989. P. 273.
4. DONDEY, Marc. Tati. Paris: Éditions Ramsay, 2009. P. 194.
5. DANEY, Serge. A Rampa. Cahiers du Cinéma 1970-1982. Tradução Marcelo Rezende. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Pp. 157-162.
6. DONDEY, M. Op. Cit.
7. GOUDET, S. Op. Cit., p. 79.
8. DANEY, S. Op. Cit., p. 161.
9. DONDEY, M. Op. Cit., p. 196.