Orfeu em Alphaville
Na opinião de Chris Darke, Lemmy Caution é mais uma reencarnação de Orfeu, bardo da Trácia, que vem salvar Natasha, sua Eurídice. Darke explica que a versão de Godard para o mito inspira-se fortemente no filme de Jean Cocteau, Orfeu (Orphée, 1949). Além de fazer uma revisão do mito readaptando-o aos tempos modernos, o filme de Cocteau era por sua vez uma adaptação de uma peça teatral que havia montado em 1926. O Orfeu de Cocteau sai do Café des Poètes, é conduzido à terra dos mortos numa limusine, passa por uma paisagem com a imagem em negativo (como algumas cenas de Alphaville) e recebe mensagens de gente morta pelo rádio do carro. As cenas de Alphaville em que vemos pessoas tateando a parede dos corredores também é uma citação do Orfeu de Cocteau. Durante uma viagem de táxi, ouvimos a voz de Lemmy: “enquanto o radio tramite um programa de tráfego, Natasha fala comigo com sua voz de bela esfinge...”. Essa fala por cima da emissão de rádio e a referência à esfinge parecem uma referência as misteriosas comunicações em Orfeu. Paul Éluard, acredita Darke, surge como a figura do poeta morto no mito órfico de Godard, cujas palavras são trazidas de vota à vida por seu mensageiro-substituto Lemmy Caution (1).
Essa fixação no poder das palavras também pode ser
encontrada em Fahrenheit
451, de François Truffaut
A mais poderosa arma de luz do arsenal de Lemmy foi dada a ele pelo ex-agente secreto Henry Dickson antes de morrer. É um livro! E tudo parece indicar que se trata de Capital da Dor, de autoria do poeta Paul Éluard (1895-1952). Lemmy se torna o guardião das palavras proibidas – amor, consciência, ternura – que os habitantes de Alphaville estão esquecendo. Mas Natasha vai se “curar” disso, o que já não se pode esperar do futuro de uma das sedutoras que acompanhava Lemmy no corredor do hotel – quando ela pronuncia uma palavra proibida (“por quê?”), logo se ouve uma reprimenda do onisciente Alfa 60. Chris Darke lembra que o livro de Éluard foi escrito na época em que ele fazia parte do movimento surrealista. E tudo que o Surrealismo representa – o poder criativo do amor, o irracional como força libertadora, a descoberta do “maravilhoso” no cotidiano – é hostil a uma sociedade como a de Alphaville, dedicada à lógica, ordem e a prudência. Mas Chris Darke conhece o trabalho de Adrian Martin e Julien d’Abrigeon e sabe que em Alphaville nem tudo é o que parece (2).
Paul Éluard em Alphaville
A capa de Capital da Dor serviu a Godard pela ressonância desse título para a visão de ficção científica distópica do filme. Mas a novidade não deve parar por aí, sob pena de deixar escapar toda a dimensão da associação com Éluard. Para começar os últimos poemas dele no começo dos anos 50 do século passado não são manifestações de um jovem bêbado com o devaneio do amor louco surrealista – e a articulação com o Surrealismo é a primeira ligação que os comentadores costumam fazer entre o Godard de Alphaville e a citação de Éluard. A descoberta recente da existência do amor do poeta por Dominique Laure dá outro tom ao casal Lemmy/Natasha. Martin aponta ainda a identificação de Godard com poetas românticos modernos (Éluard e Aragon), que enalteciam suas esposas/musas – incluindo aqui a diferença de idade (dez anos) entre o cineasta e Anna Karina. Martin ressaltou também uma dimensão política na articulação do nome de Éluard com o filme, já que ele rompeu com o Surrealismo e foi ser um ativista-poeta na Resistência francesa durante a guerra. De acordo com Adrian Martin, todas essas associações – amor e surrealismo, rebelião e resistência política – estão presentes nas colagens da obra de Éluard em Alphaville.
De acordo com Adrian Martin, a utilização da poesia de Paul Éluard em Alphaville vai além da citação e da colagem, ela é recriada por Godard (3). Além disso, dispara Martin, é um erro pensar que o fato de Lemmy dar a Natasha um livro com a capa de Capital da Dor significa que o livro que está dentro da capa é este. Tudo acontece durante uma seqüência de 15 minutos no quarto de hotel onde se hospedou Lemmy. O texto que Natasha começa a ler (“sua voz, seus olhos, suas mãos, seus lábios. Nossos silêncios, nossas palavras...”) não é de Capital da Dor. Um engano compreensível, já que sua pose na janela com o livro aberto funciona como uma espécie de atribuição bibliográfica. Martin concorda com Julien d’Abrigeon, para quem “esse poema” é uma grande colagem feita por Godard a partir de versos de Éluard retirados de vários poemas diferentes. Além disso, muitas frases e poemas podem ter sido divididos entre a voz de Natasha e o desfile de claro-escuro das imagens. Re-trabalhada de uma maneira singular na carreira de Godard, a obra completa de Éluard é a verdadeira assinatura poética de Alphaville.
As Deusas de François Truffaut
Godard e a Distopia de Alphaville (I)
A Chinesa e o Cinema Político de Godard
O Rosto no Cinema (V)
O Rosto no Cinema (VII), (VIII), (IX)
François Truffaut e Seus Livros
Contestadores Integrados Franceses (I), (II), (epílogo)
Hiroshima Meu Amor (I), (II), (final)
Religião e Cinema na França
O Que Sobrou da Nouvelle Vague
O Silêncio de Jacques Tati
Nouvelle Vague: Ascensão e Queda
Jean-Luc Godard o Pierrô?
Jacques Tati e Seus Duplos (I), (II), (final)
A Mulher de Jean-Luc Godard
As Mulheres de François Truffaut (I)
Notas:
1. DARKE, Chris. Alphaville. New York: I.B. Tauris, 2005. Pp. 94-5.
2. Idem, pp. 49, 54, 55.
3. MARTIN, Adrian. Recital: Three Lyrical Interludes in Godard. In: TEMPLE, Michael; WILLIANS, James S.; WITT, Michael (eds.). For Ever Godard. London: Black Dog Publishing, 2004. Pp. 252, 262-7.
O Rosto no Cinema (V)
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François Truffaut e Seus Livros
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Notas:
1. DARKE, Chris. Alphaville. New York: I.B. Tauris, 2005. Pp. 94-5.
2. Idem, pp. 49, 54, 55.
3. MARTIN, Adrian. Recital: Three Lyrical Interludes in Godard. In: TEMPLE, Michael; WILLIANS, James S.; WITT, Michael (eds.). For Ever Godard. London: Black Dog Publishing, 2004. Pp. 252, 262-7.