Ele chegou a
ser preso em Paris
durante os protestos
em 1968, mas não está
claro se estava mesmo
participando ou era
um observador
ser preso em Paris
durante os protestos
em 1968, mas não está
claro se estava mesmo
participando ou era
um observador
Wallace S. Watson,
referindo-se a
Fassbinder (1)
referindo-se a
Fassbinder (1)
Um Contexto
Como ocorreu em muitos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos, durante a década de 60 do século passado a antiga República Federal da Alemanha (também conhecida como Alemanha Ocidental) foi sacudida por uma série de dramáticos eventos. A multidão protestava contra o “complexo industrial-militar’, a Guerra Fria, a corrida de armas nucleares, a intervenção norte-americana no Vietnã, preconceito racial e opressão, poluição ambiental e sistemas educacionais que pareciam perpetuar e racionalizar o poder das classes privilegiadas. O ano de 1968 foi o mais famoso, especialmente porque estudantes universitários e trabalhadores praticamente paralisaram a França por algumas semanas de maio. Nos Estados Unidos, além de várias rebeliões em muitos campi universitários, houve uma série de confrontos entre estudantes e a polícia durante a convenção do partido Democrata em Chicago, além do assassinato de dois Kennedys e de Martin Luther King, entre outros. Enquanto isso, na Alemanha Federal alguns velhos esquerdistas e muitos da geração do pós-guerra começaram a se desiludir com a Grande Coalizão no governo. Eles chegaram à conclusão que o Partido social Democrata, originalmente fundado no século 19 como um partido marxista-socialista, renegou suas raízes em nome de uma maior participação na administração do Milagre Econômico Alemão do pós-guerra. (imagem acima, A Terceira Geração; abaixo, à direita, Fassbinder, à esquerda, ao lado de um cineasta confuso, seu alter ego em Cuidado com a Puta Sagrada)
“Eu não jogo
bombas, eu
faço filmes”
bombas, eu
faço filmes”
Rainer Werner
Fassbinder
Estudantes esquerdistas romperam com os Social-Democratas em 1959, formando os Estudantes Alemães por Uma Sociedade Democrática para fazer oposição. Alegando que o espaço para oposição política havia sido eliminado, uma oposição marxista-anarquista extra-parlamentar surge no final dos anos 60, tornando-se uma força maior por trás das manifestações contra o governo. Os estudantes universitários, que inicialmente se manifestavam contra o sistema educacional hierarquizado foram se radicalizando em relação a temas políticos. Enquanto Fassbinder era novamente recusado na escola de cinema em Berlim em 67, irromperam confrontos entre cada vez mais violentos entre estudantes universitários e a polícia. No ano seguinte a coisa se generalizou por todo o país. Em abril, Rudi Dutschke, teórico do movimento estudantil, levou um tiro na cabeça. Supostamente disparado a mando do governo e do grupo Springer, editores do tablóide Bild. Na seqüência, bombas incendiárias explodem duas lojas de departamento em Frankfurt. Algumas bombas teriam sido feitas no apartamento de um homem, em cujo teatro de Munique Fassbinder e seu grupo teatral ensaiavam e atuavam em peças que criticavam as instituições (2).
Milagre Econômico, Mas Não Político
Os estudantes
alemães tinham uma
retórica marxista, mas não demonstrariam interesse
em atrair os trabalhadores
para suas causas (3). Pasolini
criticou essa hipocrisia
burguesa na Itália
alemães tinham uma
retórica marxista, mas não demonstrariam interesse
em atrair os trabalhadores
para suas causas (3). Pasolini
criticou essa hipocrisia
burguesa na Itália
Nessa altura com 23 anos de idade, o cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder chegou a ser preso em Paris durante os protestos em maio de 68. Como tantos, ele gostava de se incluir entre a geração radical de 68. Mas seu radicalismo não incluía o confronto direto com a polícia nas ruas, substituindo essa tarefa pelo trabalho no teatro e no cinema. Além disso, ele mesmo teria dito em 1969 estar mais interessado em fomentar uma “revolução interna” do que ação política direta. Dez anos mais tarde Fassbinder diria, “eu não jogo bombas, eu faço filmes”. Esta frase teria sido feita durante as filmagens de A Terceira Geração (Die Dritte Generation, 1979), e foi utilizada na promoção desse filme que aborda justamente a questão do terrorismo na Alemanha. Um pouco antes, em 1973, Fassbinder explicou que seu interesse em teatro coletivo no começo da carreira não significa que almejasse um “teatro político”, mas “obras artisticamente exigentes” (4). (imagem acima, à esquerda, Fassbinder como um imigrante turco em O Machão; abaixo, Roleta Chinesa)
O teatro ação que
Fassbinder encenava
era direto tributário
do Living Theater (5)
Fassbinder encenava
era direto tributário
do Living Theater (5)
A Terceira Geração fala dos herdeiros do grupo terrorista Baader-Meinhof, ou pelo menos do que Fassbinder acha que eles estavam realmente fazendo enquanto achavam que estavam fazendo alguma coisa. As raízes do Baader-Meinhof poderiam ter sido plantadas justamente em 1968, quando houve uma ruptura que colocou os estudantes de um lado e de outro o governo e os sindicatos. Estes dois últimos concordaram com uma série de decretos que limitavam as liberdades civis, cujo objetivo seria proteger o país dos “subversivos”. Harry Baer foi um desses estudantes-ativistas políticos cujo futuro estava no grupo teatral de Fassbinder. Mas outros ativistas não conseguiam tolerar o que consideravam uma postura reacionária do governo e partiram para ações terroristas. Muitos na esquerda, incluindo Fassbinder, estavam convencidos de que a reação do governo era mais perigosa do que os próprios terroristas. Eles chegaram à conclusão de que os instintos políticos do governo social-liberal supostamente progressista eram muito próximos do fascismo. Fassbinder estava familiarizado com Baader e Meinhof, simpatizava com sua posição ideológica, mas tinha reservas em relação a suas táticas. Na opinião de Wallace Steadman Watson, essa ambivalência do cineasta em relação aos terroristas e sua aversão às medidas autoritárias do governo em relação aos esquerdistas na década de 70 foram os principais ingredientes na crise que marcou o começo da fase final da carreira de Fassbinder (6).
Um Indivíduo Nu e Perdido
Mesmo quem
assiste aos filmes de
Fassbinder pela primeira
vez percebe que ele não disse
nenhuma grande novidade:
vivemos representando
um personagem
assiste aos filmes de
Fassbinder pela primeira
vez percebe que ele não disse
nenhuma grande novidade:
vivemos representando
um personagem
Na opinião de Cédric Anger, Fassbinder foi o cineasta mais radical, rápido e raivoso do pós 68 (7). Ainda que Fassbinder tenha se distanciado das utopias políticas daquela época, Anger acredita que o imaginário dele foi tocado por elas de maneira essencial. Todo o sistema da ação em seu teatro, cuja companhia se chamava Antiteatro, consistia em revisitar e atualizar textos clássicos ou contemporâneos em função dos acontecimentos políticos do momento. Como, por exemplo, o espetáculo montado em abril de 1968, uma reação ao atentado contra Dutschke – assistida por Andreas Baader. Quando montou uma adaptação do Ajax de Sófocles em dezembro de 1968, Fassbinder disse que “o que é importante é criar uma doença no interior das instituições da burguesia”. A montagem contemporânea ao seu primeiro longa-metragem O Amor é Mais Frio que a Morte (Liebe ist Kälter als der Tod, lançado em abril de 1969), um filme que oscila entre duas preferências cinéfilas de Fassbinder, Jean-Luc Godard e o cinema norte-americano clássico (8). Anger explica que se o teatro de Fassbinder carrega todas as crenças políticas de 68, seu cinema irá progressivamente desfazê-las de maneira desencantada. (imagem acima, a prostituta que se finge de santa para conquistar um apaixonado e ingênuo figurão da cidade, Lola, 1981)
“(...) Todo o desafio da
encenação de Fassbinder
consiste em fazer sentir
essa perda de identidade do
personagem e sua dificuldade
numa sociedade de puro
espetáculo que o impede
de ser ele mesmo”(9)
encenação de Fassbinder
consiste em fazer sentir
essa perda de identidade do
personagem e sua dificuldade
numa sociedade de puro
espetáculo que o impede
de ser ele mesmo”(9)
O tema de Fassbinder são as maneiras de impor ao indivíduo uma representação forçada, um espetáculo (a sociedade do espetáculo) onde ele deve encontrar seu lugar ou ser destruído. Todos os seus personagens atuam, pois nunca são eles mesmos. Não aspiram outra coisa senão entrar no espetáculo ditado pelo mundo, mas não encontram nem seu lugar nem sua identidade. Em Fassbinder, a crítica da realidade passa pela crítica da ilusão no coração dessa realidade. Sua obra está sempre dividida entre um forte desejo de acreditar nas utopias daquela época (minoritária, comunitária) e a constatação lúcida da crueldade de sua aplicação no real. Das mulheres aos homossexuais, dos imigrantes aos bandidos, nenhuma minoria pode se mostrar tal como realmente é, enquadrando-se num comportamento não-natural que agrade à maioria que a persegue. Anger cita como exemplo o imigrante turco (papel em que atua o próprio Fassbinder) de O Machão (Katzelmacher, 1969) e do norte da África em O Medo Devora a Alma (Angst essen Seele auf, 1973). Talvez por essa razão, sugere Anger, os filmes do cineasta são cheios de espelhos. (imagem acima, à direita, Berlin Alexanderplatz, epílogo; abaixo, As Lágrima Amargas de Petra von Kant)
“Uma tristeza profunda
absorve uma obra em que a
renúncia a si mesmo é a única
solução de sobrevivência”(10)
absorve uma obra em que a
renúncia a si mesmo é a única
solução de sobrevivência”(10)
Desde seus primeiros filmes Fassbinder mergulha numa análise crítica e política de uma realidade alemã pesada e angustiante. Tudo é encarado sob o ponto de vista da relação de classe e da relação de forças que surge daí. Regras e rituais sadomasoquistas marcam todas as relações. O ser tem necessidade de amor, mas nele não pratica jamais o princípio de igualdade ou reciprocidade – o mais forte explora os sentimentos do mais fraco. O dinheiro permite a exploração dos sentimentos, estabelecendo o padrão dominante/dominado. Os oprimidos não podem se defender ou morrem como Geesche em Uma Mulher de Negócios (Bremer Freiheit, 1972) e Withy em Whity (1970). Nem mesmo os gangsters se revoltam (O Amor é Mais Frio que a Morte). Em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972), Marlene é tão oprimida e explorada que a liberdade a assusta. O sonho comunitário e as utopias de 68 se perderam pelo caminho. Na opinião de Anger, Cuidado com a Puta Sagrada (Warnung vor einer heilingen Nutte, 1970) é a obra chave dessa desilusão, sendo a histeria a única forma possível de coexistência. A partir daí, toda solidariedade será suspeita (Mamãe Kusters Vai ao Céu, Mutter Küsters Fahrt zum Himmel, 1975), todo casamento devastador (Roleta Chinesa, Chinesisches Roulette, 1976) e toda amizade destruidora (Berlin Alexanderplatz, 1980). A Partir de Cuidado com a Puta Sagrada, os personagens de Fassbinder estão em guerra entre si, tornando-se dependentes dessa relação e de seus efeitos (medo, opressão, culpabilidade e exploração). Na conclusão de Anger, a obra de Fassbinder vai deixando pouco a pouco as histórias das revoltas utópicas para encarar uma sociedade que se arrasta para o pior dos mundos possíveis.
Notas:
Leia também:
Berlin Alexanderplatz (I), (II), (final)
Rossellini e Sócrates em Atenas
Fassbinder: Anti-Semita ou Ingênuo?
As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (I), (II),
(III), (IV), (V), (VI), (VII), (VIII), (IX), (X), (XI)
Ettore Scola e o Milagre em Roma
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)
Catolicismo e Neo-Realismo Na Itália
Ettore Scola e o Cinema Dentro do Filme
2. Idem, pp. 22-3.
3. Ibidem, pp. 23-4.
4. Ibidem, pp. 23, 38n58.
5. Ibidem, p. 27.
6. Ibidem, p. 25.
7. ANGER, Cédric. Rainer Werner Fassbinder: Théorie du Groupe. In BAECQUE, Antoine de; BOUQUET, Stéphane; BURDEAU, Emmanuel (orgs.). Cinéma 68. Paris: Cahiers du Cinéma, 2008. Pp. 270-3.
8. Idem, p. 270.
9. Ibidem, p. 271.
10. Ibidem, p. 273.
3. Ibidem, pp. 23-4.
4. Ibidem, pp. 23, 38n58.
5. Ibidem, p. 27.
6. Ibidem, p. 25.
7. ANGER, Cédric. Rainer Werner Fassbinder: Théorie du Groupe. In BAECQUE, Antoine de; BOUQUET, Stéphane; BURDEAU, Emmanuel (orgs.). Cinéma 68. Paris: Cahiers du Cinéma, 2008. Pp. 270-3.
8. Idem, p. 270.
9. Ibidem, p. 271.
10. Ibidem, p. 273.