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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

23 de dez. de 2009

As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (V)




Desejamos
os  desejos
dos outros

 

Jacques Lacan




A Identificação Com Uma Mulher

Alice A. Kuzniar traça um paralelo entre algumas personagens femininas de Fassbinder e a atriz e cantora Zarah Leander (1). Um timbre masculino de voz, o corpo e as roupas de Leander faziam dela uma espécie de travesti. A mais famosa atriz na Alemanha durante o regime nazista, seu grande sucesso com o público homossexual seria devido a uma identificação com a tela (2). Na medida em que envelheceu, buscou sua aparência quando jovem, seu visual foi ficando parecido com o dos travestis que a imitavam nos palcos dos cabarés alemães.

Apesar de uma aparência masculina, seus papéis no cinema eram bastante femininos. Ela dizia que foi seu operador de câmera (além do diretor Detlef Sierk, posteriormente Douglas Sirk) que fizeram milagres com sua imagem. Desta forma, mesmo antes de tornar-se cantora, Leander já vivia se disfarçando desde a década de 30 do século passado (3). O visual das roupas, a voz, feições deprimidas e gestos, compensam as personagens de Leander apesar das privações de perdas. É como se Zarah Leander fosse como um ventríloquo, exteriorizando os sentimentos de seus fãs.

Onde está Zarah Leander nos filmes de Fassbinder?



Mulheres que
imitam mulh
eres:
O feminino como
construção




Kuzniar não entende porque ele apontou como preferidos apenas os filmes dirigidos por Douglas Sirk após 1945. Entretanto, Harry Baer, ator/amigo/seu biógrafo, lista A Novas Praias (Zu neuen Ufern) e La Habanera (ambos de 1937) - ambos estrelados por Leander - entre os favoritos do cineasta. Em sua peça O Lixo, a Cidade e a Morte (Der Müll, die Stadt und der Tod, 1975), Müller é um ex-nazista que se traveste de Zarah Leander – como se estivesse ainda, afirma Kuzniar, fascinado com os nazistas. Assim como O Medo Devora a Alma (Angst essen Seele auf, 1974) é uma reprodução de Tudo que o Céu Permite (All That Heaven Allows, direção Douglas Sirk, 1956 – cineasta muito admirado por Fassbinder), assim também Leander reaparece disfarçada em Num Ano de 13 Luas (In einem Jahr mit 13 Monden, 1978), Lili Marlene (Lili Marleen, 1980), O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1981) e Querelle (1982). (as duas imagens acima mostram Elvira, em Num Ano com 13 Luas)

Quando os personagens ecoam Zarah Leander, ventilam uma questão em torno de sua figura: homossexualidade, imitação feminina, camp (4). Espelhando-se em Leander, revelam o quanto a identidade se constitui através da identificação com a tela. Segundo Kuzniar, Leander é a chave para afirmar como a feminilidade é disfarçada na obra de Fassbinder. Filmes como Lili Marlene e O Desespero de Veronika Voss, seguem o destino de Leander. Kuzniar sabe que os modelos aqui são duas mulheres reais: Lale Andersen e Sybille Schmitz. Entretanto, Kuzniar afirma que Leander perpassa as duas, já que é sua carreira que ajuda a criar as imagens associadas à “diva nazista” - que Fassbinder não apenas utiliza, mas desconstrói (5).

Fassbinder sabia que o III Reich tinha muito de espetáculo em sua auto-imagem, e Lili Marlene demonstrava como a mulher enquanto imagem é cooptada por esse espetáculo (imagem acima). A mulher da canção que dá nome ao filme é Willie, que é apenas a cantora da música. Assim, a identidade dela é apagada em nome de uma ilusão (Lili Marlene). A desconexão vai além, pois quem está em primeira pessoa (quem estaria cantando) é um homem, que fala de uma mulher ausente. Portanto, Willie “é” Lili, que por sua vez está ausente. Em O Desespero de Veronika Voss (na imagem abaixo, em seus últimos momentos), a protagonista, uma grande atriz durante o nazismo, e agora decadente, acredita que deve manter uma fachada elegante. Quer adequar-se às expectativas que imagina que as pessoas têm dela. Deseja ser reconhecida em função da imagem de diva das telas que teve no passado.

É curioso que o
suicídio    dela    ocorra
quando    está    longe    das
vistas, onde não há mais um
olhar   para   confirmar   sua existência    –   quando    sua
auto-imagem narcisista
perde   o   apoio


Na cena em que canta para os amigos, a imitação Veronika/Leander/Dietrich se aproxima do camp, que sempre sublinha essa pitada de diferença entre o ídolo da tela e suas imitações. Se Willie e Veronika imitam a feminilidade, o que as distingue do travesti homem-para-mulher que faz isso? (6) As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Träunen der Petra Von Kant, 1972), por exemplo, poderia ser composta por homossexuais ou pelas lésbicas que lá estão.

Em Querelle (1982) (imagem ao lado), argumenta Kuzniar, é possível pensar uma reversibilidade entre o masculino e o feminino. Neste que foi o último filme de Fassbinder, Lysiane é o único personagem feminino, e pode ser enquadrada neste padrão de reversibilidade: Mario comenta sobre o sexo entre Robert e ela: “(...) quando eles fazem amor, é como dois homossexuais”. Robert e Querelle são irmãos, mais representam o maior laço homossexual do filme. Lysiane, que vai para a cama com os dois, funcionaria como a substituta da homossexualidade deles. Em outras palavras, conclui Kuzniar, por conta da proibição do incesto, é como eles transassem através da mulher (7).

Em Berlin Alexanderplatz (1980, a hipótese também poderia se aplicada a Franz Biberkopf e Reinhold – que manda todas as mulheres com quem transa para Franz. Lysiane seria mais uma manifestação de Zarah Leander. No bar de seu marido, cantando “Cada homem mata aquilo que ama”, sua voz grossa aponta direto para a mistura masculino-feminino. A feminilidade exagerada, Lysiane lembra uma drag queen – como Leander. Alem disso, nesse mundo de parceiros do mesmo sexo, o que intriga Kuzniar são as “rachaduras no espelho” que inserem discrepâncias de gênero: “da mesma forma que o espelho apresenta a imagem invertida, assim também o rosto masculino reflete seu oposto, a feminilidade” (8).

Veronika Voss “atuava” a feminilidade para confirmar sua identidade como alguém desejável. Em Querelle, contudo, a identificação com a mulher é um risco, ainda que essa situação seja rica, já que a atração está em ver a alteridade (da feminilidade) inscrita num corpo de homem. Kuzniar chama atenção para o fato de que Querelle mostra que se a feminilidade pode ser manipulada é porque ela é uma construção.

A Identidade e Seus Disfarces 
 
“O  que  é
ser   feliz?   É   claro, 
eu  não  sou  feliz.  Não
 existe algo como a felicidade. 
Nós  procuramos, o  processo
  é   o   que   é   excitante, 
não     o    resultado,
felicidade”



Num Ano de 13 Luas e O Desespero de Veronika Voss demonstram que o disfarce dos gêneros não se sustenta. Embora o segundo filme, como Lili Marlene, demonstre como a feminilidade é uma construção, não mergulha no desespero da impossibilidade de assumir uma identidade a partir do gênero, como acontece em Num Ano de 13 Luas. Aqui Fassbinder mostra como a transgressão de gêneros é condenada pela sociedade, o que levará alguns anos depois à Querelle e o interessa na afirmação de um espaço onde desejos contraditórios passam se expressar. (imagem acima, Elvira e sua filha)

Em Num Ano de 13 Luas, Elvira foi Erwin, que mudou de sexo para agradar Anton - e não por interesse próprio. Fica evidente a dependência que Erwin tem dos outros (como Veronika) – e sua perda de identidade. Antes de mudar de sexo, Erwin era casado e tinha uma filha – ele nunca se divorciou ou perdeu o contato. Quando o filme começa, já como Elvira, namora Christoph, a quem sustenta se prostituindo.

A mudança de sexo de Erwin foi uma maneira de devolver a imagem que acreditava que Anton tinha dele. Kuzniar lembra que foi Lacan quem disse que desejamos o desejo do outro (imagem ao lado, Willie dá o autógrafo como Lili Marlene). Cada tentativa de Elvira seguir códigos e normas, cumprir aquilo que acreditava se esperar dela, as tentativas de decodificar seu corpo, só o tornou mais incompreensível. Entre indivíduo e sociedade, o primeiro nunca chega a conquistar uma identidade independente. Elvira percebe isso, argumenta Kuzniar, e talvez não esteja buscando a si ou uma identidade sexual. Como afirmou Thomas Elsaesser, este é um filme sobre a dissociação do eu, a destruição da identidade. Da mesma forma, Kaja Silverman conclui:

“O filme critica nosso sistema de diferenciação sexual existente por sua inabilidade em acomodar uma figura que não pode ser assimilada nem ao masculino nem ao feminino, enquanto ao mesmo tempo maximiza a intransigência dessas categorias de tal forma a minar totalmente qualquer gesto da parte do protagonista em direção ao restabelecimento de uma identificação fálica” (9)

Silverman afirmou também que a perda anatômica de Elvira dramatiza um abandono masoquista de seu eu. Felicidade masoquista intensificada com a identificação de Elvira com o gado que morre em sua visita ao matadouro. Elvira repercute uma dor que não é mais a sua. Elvira também visita Anton após anos de separação. Ela se veste como Astrée, a personagem de Zarah Leander em La Habanera (imagem abaixo, à direita). No final deste filme, Astrée diz que não sente remorso por sua vida em Porto Rico. De acordo com Kuzniar, a recusa dela ao remorso permite compreender as últimas palavras de Elvira. Ela cita uma frase do Tasso, de Goethe: “E se, como homem, eu sou silenciado em minha agonia, dê-me um deus para falar de como eu sofro”. A necessidade de ser autêntico se mostra também numa frase escrita no apartamento do homossexual chamado Soul Frieda:



“O que eu mais temo
é se um dia eu conseguir

colocar meus sentimentos
em      palavras
,      porque
 quando  o  fizer...(10)



Com o suicídio de Elvira, ouvimos sua voz em narração. Diz que sua autenticidade e integridade não residem num gênero ou afiliação sexual, mas na articulação de um desejo sem definição: “O que é ser feliz? É claro, eu não sou feliz. Não existe tal coisa como a felicidade. Nós procuramos, o processo é o que é excitante, não o resultado, felicidade” (imagem acima, Veronika Voss em seus últmos momentos). Kuzniar sugere que, como Astrée, Elvira percebeu que não foi vítima passiva dos outros, que fez escolhas baseadas em seu desejo sexual, curiosidade e esperança: “A vida é, ou foi, algum tipo de esperança. De certo modo, isso significa conforto, ou, como disse antes, desejo, ou talvez estivesse apenas curiosa para experimentar essas coisas”. A partir daqui ela, como Astrée, afirma o passado e seus desejos: “Talvez gostasse de... Eu não sei, talvez gostasse com Anton. Ou talvez gostasse com Irene. Ou talvez...” (11)

Portanto, conclui Kuzniar, a “vida entre” identidades fixas não tortura Elvira, pois é uma exploração de diferentes e ricos canais do desejo. Ainda segundo Kuzniar, ao invés de concluir que a identidade de Elvira era negativa (não era mulher, homem, homo ou hetero) poderíamos reconhecer que ela amou Irene, Anton e Christoph como bissexual - e que sua mudança de sexo tinha relação apenas própria curiosidade. A saga de Elvira continua, de qualquer forma, ainda “algum tipo de esperança”, posto que Num Ano de 13 Luas retrate a conformidade sexual e social como prisão inescapável. Concluindo, Kuzniar considera que neste filme e em Querelle os personagens são extraordinariamente abertos em relação à própria sexualidade.


“(...) Ao indiretamente imitar Leander, vários personagens [de Fassbinder] mostram como a identificação com a tela racha a imagem, nunca a replicando de forma idêntica. Enquanto Lili Marlene e O Desespero de Veronika Voss ensaiam esta imitação em termos de feminilidade como espetáculo (e revelam sua fundação reacionária e fascista), Querelle e Num Ano de 13 Luas radicalizam essa rachadura para mostrar refletido em seguida um desejo subversivo – o desejo fundamental não apenas de ser o outro, mas de ser o outro sexo. Contudo, por breves que sejam as alusões a Leander em Querelle ou em Num Ano de 13 Luas, oferecem um ponto de entrada para desvendar uma complexa e fascinante impermanência dos gêneros” (12)

Notas:


1. KUZNIAR, Alice A. The Queer German Cinema. California: Stanford University Press, 2000.
2. Idem, p. 61.
3. Ibidem, p. 64.
4. “A essência de Camp é esse amor pelo não natural: de artifício e exagero” (Susan Sontag). “(...) A desestabilização da correspondência entre o interior e o exterior, que a burguesia policia e deseja manter, é de fato o que define camp (...)”. “(...) Camp não é apenas a imitação excessiva da feminilidade, mas a consciência dessa falha da imitação: esta diferença – a inscrição homossexual [queer] de masculinidade – é o que constitui o camp (...)”. Camp é a tendência que procura desnaturalizar a norma e contradizer o olhar. Ibidem, pp. 7, 12, 34, 74 e 187.
5. KUZNIAR, Alice A. Op. Cit., p. 70.
6. Idem, p. 73.
7. Ibidem, p .75.
8. Ibidem, p. 76.
9. Ibidem, p, 83.
10. Ibidem, p. 84.
11. Ibidem, p. 85.
12. Ibidem, p. 87. 


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