“Margot procura
em vão explicar sua
condição ao marido
dizendo, ‘eu estou
com medo de...’, sem
conseguir completar
a frase. Certa noite
ela consegue apenas
dizer, ‘você parece
tão longe de mim’”(1)
Oprimidas Opressoras
Na opinião de Yann Lardeau, em filmes de Fassbinder como O Amor é Mais Frio que a Morte (Liebe ist kälter als der Tod, 1969), Os Deuses da Peste (Götter der Pest, 1969), Recrutas em Ingolstadt (Pioniere in Ingolstadt, 1970) e Cuidado com a Puta Sagrada (Warnung vor einer heilingen Nutte, 1970), a mulher é “inexistente”. Elas são totalmente apagadas pelos personagens masculinos e seus desejos são muito convencionais. Ou melhor, elas não tinham desejos senão pelas convenções (2).
A partir de certo momento, entretanto, é como se a mulher se tornasse para Fassbinder o arquétipo do oprimido: de Martha (1973) a Nora Helmer (1974), de O Medo Devora a Alma (Angst essen Seele auf, 1973) a Mamãe Kuster Vai ao Céu (Mutter Küsters Fahrt zum Himmel, 1975), de Uma Mulher de Negócios (Bremer Freiheit, 1972) a A Mulher do Chefe da Estação (Bolwieser, 1977), de Medo do Medo (Angst vor der Angst, 1975) a O Assado de Satã (1976). Sem esquecer a opressão silenciosa da mulher em Effi Briest (Fontane Effi Briest, 1974) como modelo (todas as imagens deste artigo são de Medo do Medo). Fassbinder admitir inclusive que as mulheres o interessem mais do que outros de seus personagens, como as crianças e os trabalhadores imigrantes:
“Quando nos confrontamos concretamente com a sociedade, descobrimos o problema das mulheres... Apesar de tudo, acho as mulheres mais apaixonantes [que as crianças ou os trabalhadores emigrantes]. As mulheres não me interessam apenas porque são oprimidas, não é tão simples. Os conflitos no interior da sociedade são mais apaixonantes de observar através das mulheres. Porque as mulheres, por um lado, são oprimidas, mas, segundo eu, elas também provocam essa opressão em função de sua situação na sociedade. Por sua vez, elas se servem disso como um instrumento de terror. São as figuras mais apaixonantes da sociedade, os conflitos são mais evidentes com delas” (3)
Uma Mulher Com Medo
Negligenciada pelo
marido, hostilizada pela
sogra e a cunhada, só
resta o Valium para fazer
companhia a Margot
O roteiro de Medo do Medo foi desenvolvido por Fassbinder a partir das notas autobiográficas de Asta Scheib, uma jovem dona de casa do norte da Alemanha que mais tarde se tornaria escritora. Margot é uma tensa dona de casa da classe média alta às portas da insanidade. Em Martha, filme do qual de acordo com Wallace Steadman Watson Medo do Medo parece uma seqüência, havia um marido controlador, mas as razões de Margot para os recorrentes ataques de ansiedade são pouco evidentes. Lardeau também sugeriu que a revanche em Nora Helmer contra Helmut Solomon parece com a revanche que Martha não é capaz de realizar contra seu marido opressor (4).
Kurt, o marido de Margot, fica confuso com o comportamento neurótico da esposa. Mas não está particularmente preocupado, pois passa horas estudando para algum tipo de prova. Watson chama atenção para o comportamento dele, que parece repetir a atitude de Anna, a irmã do suicida Hans Epp em O Mercador das Quatro Estações (Der Händler der vier Jahreszeiten, 1971). Sendo assim, ela é deixada só, lendo, escutando música e olhando pela janela, temendo pelo próximo ataque de medo – assinalado na tela pela imagem ondulante; como bem lembrou Steadman, típico elemento hollywoodiano que indica perda de contato com a realidade.
Dr. Merck troca Valiumpor sexo com Margot. Merck
também é o nome de um
laboratório farmacêutico. Em se
tratando de Fassbinder, é difícil
falar em coincidências
Os especialistas que o marido de Margot leva a esposa são, no dizer de Steadman, muito confiantes em sua própria competência, discordando entre si quanto ao diagnóstico. O clínico não encontra nada errado no organismo dela e receita Valium. Um psiquiatra diz a Kurt que ela é esquizofrênica. Outro diagnostica depressão, que acredita poder ser curada mantendo-se a mente dela ocupada. Seja como for, Margot está praticamente sozinha e alienada. Seu marido a negligencia. Sua sogra e sua cunhada desaprovam o que chamam de comportamento anormal de Margot.
Até Bibi, a filha de quatro anos de Margot, se distancia da mãe. Sua única companhia é Bauer, nas palavras de Watson, “um vizinho maluco”. Margot também aprecia a gentileza do marido de sua cunhada. Margot até estimula uma ligação sexual com Dr. Merck, o farmacêutico da esquina, em troca de doses extras de Valium. Curiosa esta última ligação dela, já que existe um grande laboratório alemão chamado Merck – estaria Fassbinder passando aqui mais uma de suas mensagens subliminares?
Margot parece só
conseguir se comunicar
com Edda, sua companheira de quarto silenciosa numa
clínica psiquiátrica
Quando Margot volta da clínica psiquiátrica, ela descobre que Bauer se enforcou. Ela acompanha pela janela o caixão sendo levado para a ambulância – uma cena que se prefigura quando Edda olhava pela janela enquanto Margot ia embora da clínica. Mais uma vez a imagem ondulante, acompanhada de um som de flauta, sugere que os problemas não acabaram. Ou talvez, conjectura Watson, sob medicação ela será capaz de controlar os sintomas de sua ansiedade, mesmo que nunca venha a alcançar as causas de tudo aquilo.
Angústias e Hipóteses
Embora a vida de Margot seja solitária e monótona, ela paradoxalmente jamais está só. Seja porque a câmera a surpreende acompanhando a vida na rua pela janela, ou sua sogra e cunhada que vem lhe dizer o que fazer, ou os vizinhos que a espionam de suas janelas, ou Bauer o vizinho maluco (ou que se passa por) que lhe espera todo dia na rua quando ela traz sua filha da escola. São olhares que se sucedem e se encaixam uns nos outros, rodeando e cercando a solidão desta mulher (5).
De acordo com Steadman, Medo do Medo antecipa alguns outros filmes de Fassbinder. O medo inexplicável de Margot anteciparia a angústia existencial generalizada em personagens dos filmes dos próximos dois anos. Como o jovem recém casado e muito problemático em Eu Quero Apenas que Vocês me Amem (Ich will doch nur, dass ihr mich liebt, 1976), a criança irada e sádica de Roleta Chinesa (Chinesisches Roulette, 1976) e a insanidade sutil de Hermann Hermann em Despair (1977).
O carro
blindado é o
equivalente do
Valium
O carro
blindado é o
equivalente do
Valium
Outra hipótese para a ansiedade de Margot estaria visível numa cena rápida. Vemos a rua através da janela do apartamento dela. De repente, bem próximo ao parapeito, percebe-se parte de um carro militar que passa (imagem acima). Uma imagem rápida e quase imperceptível, mas talvez remeta a hostilidade das autoridades e do público em geral as ações terroristas da esquerda (especialmente do grupo Baader-Meinhof) e a reação “contundente” a esse estado de coisas – um tema ao qual Fassbinder voltará.
“John Sandford indicou suas implicações políticas: a imagem sugere ‘a grande ansiedade agarrando esta sociedade toda... a repressão necessária para engarrafar as frustrações que ela criou. O carro blindado é o equivalente policial do Valium de Margot: uma tentativa de sufocar os sintomas, para aqueles que são muito míopes para curar a doença’” (6)
Notas:
Leia também:
Fassbinder e a Psicanálise
As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (VII)
Berlin Alexanderplatz (I), (II), (final)
1. WATSON, Wallace Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. P. 145.
2. LARDEAU, Yann. Rainer Werner Fassbinder. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1990. P. 231.
3. Idem, pp. 153-4.
4. Ibidem, p. 163.
5. Ibidem, pp. 179-80.
6. WATSON, Wallace Steadman. Op. Cit., p. 146.