“O medo
não é bom. O
medo devora
a alma”
Ali cita um ditado árabe ao
comentar sobre as apreensões
de Emmi na manhã seguinte à
primeira noite de amor deles
O Romance Está no Ar
Emmi é uma arrumadeira na casa dos 60 anos, Ali é um imigrante marroquino na ex-Alemanha Ocidental e 20 anos mais jovem. Eles se conhecem num bar de imigrantes e em pouco tempo se casam, apesar da desaprovação dos filhos dela e dos vizinhos. O elo entre os dois parece ser forte enquanto eles se sentem pressionados. Contudo, as coisas começam a mudar, na medida em que são aceitos. Se no primeiro momento as vizinhas de Emmi se juntam para fofocar e demonstrar explicitamente o preconceito daquela geração em relação às pessoas de outras culturas, em pouco tempo uma delas pede ajuda a Ali para mover algumas coisas pesadas. O filho de Emmi e sua esposa, que inicialmente o rejeitaram (especialmente ele, que chegou a chutar a televisão), agora precisam do casal para cuidar de sua filha. O quitandeiro, que foi particularmente estúpido com Ali (parecia que estávamos assistindo um filme que se passava na Alemanha nazista), é convencido pela esposa de que deve aceitá-lo com um sorriso nos lábios, por questões puramente financeiras. (imagem acima, ao sairem do bar, o casal conversa na entrada do prédio de Emmi, antes de subir e acabar na primeira noite de amor)
Enquanto ninguém
aceitava o casamento,
tudo ia bem. Quando
a pressão acabou, os
problemas sugiram
Mas as coisas também começam a mudar entre o próprio casal. Emmi mostra os músculos de Ali para suas amigas, tratando-o como uma propriedade exótica. Isso faz com que ele procure sua antiga amante, uma garçonete que sabe como preparar sua comida favorita – couscous. Quando Ali vai para o hospital em função de uma úlcera de estômago, Emmi se junta a ele.(imagem acima, Emmi está confusa com a primeira noite de amor, Ali diz que ela não deve ter medo, o medo devora a alma; imagem abaixo, as coisas começam a se complicar, Emmi exibe os músculos de seu homem como se fosse um animal exótico)
Os Melodramas de Nossas Vidas
O Medo Devora a Alma (Angst essen Seele auf, 1973), décimo nono trabalho de Fassbinder, segue um padrão melodramático e fala de um caso de amor entre uma mulher e um homem separados por barreiras sociais e etárias. De acordo com Wallace Steadman Watson, é o filme onde mais claramente se pode perceber a influência do cinema de Douglas Sirk sobre o de Fassbinder. O modelo cinematográfico em questão é o filme Tudo que o Céu Permite (All That Heaven Allows, 1955), onde uma viúva rica se apaixona por seu jardineiro, um homem mais jovem e sem dinheiro. Ela é pressionada emocionalmente por seu círculo de amizades da alta burguesia e por seus filhos, mas um acidente com seu amado une os dois e o final feliz é inevitável.
O filme articula a estética holliwoodiana e a critica social, um exemplo que Fassbinder queria seguir. O estilo irônico com o qual Sirk retrata a mente obtusa dos amigos e dos filhos da viúva é muito próximo daquele que encontramos nos filmes de Fassbinder. Mas Watson chama atenção para o fato de que Fassbinder vai bem mais longe que Sirk ao expor as falhas do mundo onde o melodrama acontece, assim como também destrói as expectativas dos espectadores em relação a esse gênero de filme (1). (imagem abaixo, à esquerda, Emmi começa a ser evitada pelas velhas amigas)
Conformismo e Sociedade
O Medo Devora a Alma é mais um dos filmes de Fassbinder que desnuda os mecanismos psicológicos, suas maquinações e suas fraquezas que os tornam manipuláveis por outras pessoas. É neste sentido que se pode resgatar a afirmação de Thomas Elsaesser de que os personagens de Fassbinder não se mostram como são, mas como se vêem ou gostariam que os outros os vissem. Filmes como Eu Quero Apenas que Vocês me Amem (Ich will doch nur, dass ihr mich liebt, 1976) poderiam se chamar Eu Quero Apenas que Vocês me Vejam. Não é por acaso que em inúmeros filmes do cineasta alemão encontramos espelhos. Como disse Lacan, é o outro que confirma minha identidade! (2) (imagem abaixo, à direita, Emmi, depois do primeiro desentendimento com Ali)
De acordo com Elsaesser, seria um tanto simplista a hipótese de que O Medo Devora a Alma formula uma crítica ao encontro da pressão do conformismo e a pouca margem de manobra que se impõe quando preconceitos culturais ou racistas obstruem a alteridade do outro. Sobretudo se o conformismo não for tomado como um atributo exclusivamente negativo, mas como fundador da comunidade - o desejo de ser visto para ser considerado, as duas facetas do reconhecimento pelo outro (4). (as duas imagens abaixo, à esquerda, Ali vai procurar sua ex-companheira do bar dos imigrantes, pois ela sabe agradá-lo; abaixo, à direita, Ali sendo rejeitado pelo quitandeiro com discurso nazista xenófobo)
O nó da ação é justamente o momento onde Emmi e Ali sofrem por serem marginalizados, pelo fato de sua ligação ser julgada contrária à decência e aos bons costumes. Entretanto é ao próprio casal, enfatiza Elsaesser, que a situação se apresenta como uma contradição insolúvel: eles não podem ser vistos “juntos”, porque não existe espaço social (trabalho, lazer, família) no qual não sejam objeto de olhares hostis.
“O amor entre quatro
paredes ou as férias no estrangeiro não parecem capazes de compensar o
prazer (masoquista) de ser observado pelos outros” (6)
O casal descobre que não podem viver sem os olhares dos outros, porque é ele que cria a solidariedade. Quando os dois estão sós... Ou melhor, um com o outro, suas trocas de olhar se mostram insuficientes para dotar o casal de uma identidade – um equilíbrio sutil é quebrado entre os “eus” sociais, sexuais e éticos, entre a igualdade e a diferença, entre si e o outro. “Existe, portanto, ressalta Elsaesser, paralelamente à pressão do conformismo, uma felicidade do conformismo no campo do visível. A tragédia do casal reside em sua incapacidade de promover e sustentar continuamente o consentimento ou a reprovação do ‘olho social’ colocado sobre eles” (7).
sentem necessidade de serem vistos. Mas, ao mesmo tempo, tem medo de se mostrar (8)
As Mulheres de Rainer Werner Fassbinder (VII)Fassbinder e a Psicanálise
1. WATSON, Wallace Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. Pp. 123-5.
2. ELSAESSER, Thomas. R.W. Fassbinder. Un Cinéaste D’allemagne. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005. Pp. 32 e 98.
3. Idem, p. 99.
4. Ibidem, pp. 103-5.
5. Ibidem, p. 100.
6. Ibidem, p. 104.
7. Ibidem.
8. Ibidem, p. 99.