“O que me diverte
é pensar no que o guarda
pode estar dizendo, lá, a um
motorista que cruzou com o sinal
vermelho. Não é o diálogo que me
faz rir, mas precisamente o fato de
nada ouvir. Meu método apenas
supõe um pouco mais de
imaginação da parte
do espectador”
Jacques Tati (1)
Os Ruídos e o Francês François
Ao contrário dos filmes de muitos humoristas, não existe hierarquia entre os personagens de Tati, Hulot não chega a ser o centro das atenções como Carlitos é nos filmes de Chaplin. Muitos seriam os exemplos, mas pode ser citada a cena em Playtime em que Hulot passa para um segundo plano enquanto nós e ele assistimos ao desempenho do personagem do homem de negócios norte-americano, que pontua todos os seus gestos mecânicos com ruídos inesperados (última imagem do artigo). Aliás, como ressalta Goudet, as palavras geralmente não levam a lugar algum nos filmes de Tati. O cineasta acreditava, ele que era basicamente um mímico, que se dava excessiva importância às palavras, em detrimento do som e da linguagem corporal. Portanto, seus filmes constituem também uma trincheira na luta contra o logocentrismo. Seguindo a fórmula de Georges Sadoul (a palavra é um ruído entre outros), de fato a obra de Tati sugere que a palavra é na verdade (ou pelo menos na maioria das vezes) sinal de falta de comunicação! (2) Na obra de Jacques Tati, conclui Michel Chion, a linguagem é relativizada (3) - o que é característico de certos cineastas franceses (4). Chion chama atenção para o efeito alucinatório na cena dos apartamentos-vitrines com parece de vidro em Playtime quando cortamos o som das coisas. Acompanhamos a vida das pessoas nos dois apartamentos contíguos com ações paralelas. O efeito alucinatório de cenas mudas vem precisamente do fato de que sabemos que não estamos no cinema mudo (imagem abaixo, à direita). Outro exemplo no mesmo filme, quando no salão de utilidades domésticas é apresentada uma porta que bate sem fazer barulho. De uma maneira ou de outra, tendemos a preencher o silêncio “ouvindo” o som da porta batendo (5). (imagem acima, podemos ver também, à direita da cena, um dos sósias do Monsieur Hulot)
Além do exibicionismo
social, a seqüência dos apartamentos-vitrines testemunha também o voyeurismo sexual e o
fim da vida privada (6)
social, a seqüência dos apartamentos-vitrines testemunha também o voyeurismo sexual e o
fim da vida privada (6)
Nos filmes de Jacques Tati, todos os ruídos do cotidiano retomam a palavra que lhes foi roubada e se mostram capazes de arrancar sorrisos do espectador. A cena do saguão em Playtime ilustra bem como a um plano de conjunto que domina a imagem (onde muitas ações independentes ocorrem simultaneamente) correspondem “closes sonoros” que acabam atraindo nossa atenção para ações acontecendo no plano de fundo, fora do foco e independentemente de uma eventual ação principal que justificasse a existência da cena (imagem abaixo, à esquerda). Também é característica desta tendência a cena em As Férias de Monsieur Hulot onde o ruído da bola na partida de ping-pong que ele está jogando incomoda aos jogadores de cartas da sala ao lado – como esses últimos, nós também apenas ouvimos o som repetitivo e insistente; apenas eventualmente vemos Monsieur Hulot, a não ser quando ele adentra a sala onde estão essas pessoas para procurar a bola, que sumiu naquela direção.
Ao não hesitar em colocar várias piadas na tela ao mesmo tempo, Tati faz o espectador escolher ele próprio o percurso de seu olhar. Fazendo-nos com isso perceber que nossa percepção do filme será apenas parcial, somos lembrados da lição de Hulot, um personagem que vive parcialmente a vida. Ele não sofre com isso porque não percebe nada. Mas nós, ao contrário, sofreremos no futuro porque, como acreditamos estar no controle de nosso destino, não nos damos conta de que na maior parte da vida o que vemos mais claramente é a vida dos outros e não a nossa. Assim como muitas coisas independentes acontecem na tela durante os filmes de Tati, é vã nossa tendência a acreditar que controlamos nosso destino completamente. O máximo que conseguimos fazer é apontar para aquilo que conseguimos finalmente ver. Como nos lembra Goudet a propósito dos filmes quase mudos (ou “Quasimodos” [7]) de Jacques Tati. Ele nos devolve a palavra justamente ao fazer com que o espectador fale durante a projeção (e até aponte com o dedo) para indicar uma das muitas ações simultâneas que outros talvez não estejam percebendo (8).
Um pouco antes de Monsieur Hulot nascer, François o carteiro francês vai ao cinema em Dia de Festa (Jour de Fête, 1949), assiste a um documentário sobre o correio norte-americano e se impõe o desafio de superá-los (imagem acima, à direita). Goudet sugere que François e Don Quixote têm muito em comum. A obsessão do primeiro era o correio, do segundo os romances de cavalaria. A ingenuidade de ambos é visível. Don Quixote carrega o nome de sua pátria (a região espanhola de La Mancha), enquanto François tem um nome foneticamente próximo daquele de sua terra natal (a França). Tati não teria utilizado essa referência literária, mas houve um momento em que o produtor do filme chegou a sugerir que o cineasta atuasse num filme sobre Don Quixote – mas que seria dirigido pelo cineasta italiano Federico Fellini. Embora admirasse o italiano, Tati não aceitou o projeto, por achar que uma adaptação do livro não seria de interesse do público, pois a obra é muito conhecida. De acordo com Goudet, para além de uma fisionomia quixotesca, chama mais atenção em François uma tendência à verticalidade (10).
As aspirações
profissionais de François
o distanciam da comunidade,
que vive a temporalidade
das estações
Mais especificamente, uma verticalidade no comportamento dele - talvez como forma de resposta aos seus rivais norte-americanos. Apesar de posteriormente Tati conseguir montar o personagem de Hulot em função de sua altura, admitiu acreditar que a comicidade de alguém com baixa estatura é bem mais fácil! Portanto, desde François o carteiro Tati procura nos roteiros explorar seus 1 metro e 87 centímetros de altura. Afinal de contas, os rivais norte-americanos de François são capazes de alçar os ares através de aviões, enquanto ele fica preso ao solo em sua bicicleta. Como quando em Escola de Carteiros (L’école des Facteurs, 1947) François entra nula igreja para entregar a correspondência e encontra um homem tocando o sino – ele sobe e desce na corda. François estende o braço mostrando a carta, o homem dá a corda para o carteiro para poder pegar a carta e François é puxado pelo sino até sumir (imagem abaixo, à direita). No mesmo curta-metragem, François está pedalando na estrada quando se depara com um grupo de ciclistas disputando uma corrida, ultrapassando a todos. Quando ele desce da bicicleta para esperar a passagem de um trem, seu instrumento de trabalho fica preso na barreira, que sobe elevando a bicicleta aos céus.
Mon Oncle
mostra como a
sociedade francesa
da década de 50 estava contaminada pelo exibicionismo
burguês
O que distingue François e Hulot são as relações de cada um com a comunidade e o tempo. Por sua busca pela velocidade, François está sempre à frente de seu tempo - marcado pelo suave rolar da água do rio e o ritmo das estações, sensação forte no início de Dia de Festa. Já Hulot vive na temporalidade de onde estiver – em férias, pratica esportes como todos em volta. Hulot se torna escravo das atividades, como quando responde ao sino do almoço no hotel. O comportamento de François desafia o espírito francês interiorano, colocando em causa o funcionamento da sociedade ao pautar seu comportamento segundo os métodos de trabalho dos rivais norte-americanos. No caso de Monsieur Hulot, é toda a sociedade francesa que é posta contra a parede. Toda a ideologia norte-americana da produtividade, aparente no comportamento de Smith, o capitalista que está em férias mais não larga o telefone pra saber a cotação da Bolsa de Valores (As Férias de Monsieur Hulot), ou ainda a obsessão dos Arpel com a última moda tecnológica e a imagem de ascensão social (Mon Oncle). Também em Playtime, quando o senhor Giffard deixa que um cliente mais importante passe a frente de Hulot. Se antes François alegrava aos espectadores com sua lógica de concorrência, na década de 50 do século passado a França inteira estava contaminada. A preocupação principal de cada um era vestir mais chique do que o vizinho, ter um carro mais potente e uma casa mais cara e mais moderna.
Notas:
1. GOUDET, Stéphane. Jacques Tati, de François le Facteur à Monsieur Hulot. Paris : Cahiers du Cinéma, 2002. P. 82.
2. Idem, p. 25.
3. CHION, Michel. La Toile Trouée. La Parole au Cinema. Paris : Cahiers du Cinéma, 1988. P. 100.
4. ---------------------. La Voix au Cinéma. Paris : Cahiers du Cinéma, 1993. P. 83.
5. ---------------------. Le Son au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1994 (?). Pp. 17-8.
6. GOUDET, Stéphane. Op. Cit., p. 83.
7. Para quem conhece o nome do corcunda de Notre Dame e a carga metafórica do livro escrito por Victor Hugo, publicado em 1831.
8. GOUDET, Stéphane. Op. Cit., p. 29.
9. Idem, p. 31.
10. Ibidem, p. 36.
11. Ibidem, pp. 39-41.