“(...) O clichê da arte
burguesa no século 19
foi que ela denunciava
a burguesia; no final do
século 20, equivalente
gesto é criar um belo
bem de consumo
que denuncie o
consumismo” (1)
Ferdinand está fugindo de uma existência burguesa estúpida ao lado de sua amante de espírito livre. Marianne o acompanha em sua fuga pelo sul da França, a caminho de uma utopia que eles nunca encontram. No começo do filme vemos Ferdinand está lendo para sua filha. A seguir ele está se vestindo para uma festa onde, como ressalta sua esposa, ele deve se comportar apropriadamente para impressionar potenciais empregadores – já que Ferdinand recentemente foi demitido ou se demitiu de seu emprego na televisão. A babá, supostamente a sobrinha de amigos que acompanham Ferdinand e sua esposa à festa, é Marianne. O clima da festa evidencia a esterilidade da existência de Ferdinand, o que precipita sua partida. Ele oferece carona para Marianne, mas na verdade ambos já estão envolvidos. É o ponto de ruptura na vida de Ferdinand e o ponto de partida para o que será um vôo permanente em relação à sua vida em Paris, a Família, a Lei, aos inimigos... Terminando apenas com a morte dos dois.
Ferdinand não sabe o que
quer ou para onde ir, ele
conseguiu fugir de sua vida
burguesa, mas não consegue
preencher o vazio com vida
No relacionamento com Ferdinand, que ela prefere chamar (para descontentamento dele) de Pierrô, Marianne parece continuamente aumentar as apostas em termos de suas expectativas em relação a ele. Mas Pierrô nunca parece saber o que realmente deseja e parece impotente para buscar seja o que for. Desde o começo ele estava à deriva até ser arrastado para a esfera e influência de Marianne, uma coisa que aconteceu basicamente por acaso – a realidade simplesmente se apresentou a ele. Com o tempo, as coisas vão mudando de rumo. Ao demonstrar sua frustração pela incapacidade de segurar aquela mulher (e sob o pretexto da infidelidade), Pierrô mata Marianne - liga para a esposa em Paris, mas não consegue nada. Então pinta seu rosto de azul, amarra dinamite na cabeça. Naquilo que poderia ser considerado como seu primeiro e último ato decisivo, ele tenta apagar o pavio. Acaba explodindo numa bola de fogo.
Todo o Godard, Entre o Bandido e o Pierrô
O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965) é o resultado da adaptação de Obsession, romance de Lionel White. Em seu lançamento, a censura o interditou para menores de 18 anos devido a seu “anarquismo intelectual e moral”. O título original em francês refere-se ao mesmo tempo a dois personagens. Primeiramente, ao bandido Pierre Loutrel, cujo fim foi tão patético quanto o de Ferdinand. Em segundo lugar Pierrô, o personagem lunar da comedia dell’arte, que aqui representa a inocência violada e o amor traído. Essa dualidade caracteriza (além da forma como Godard se situa em relação a seu caso com a atriz/esposa Anna Karina) um filme onde o desdobramento é um dos motivos principais. Duplo nome do personagem interpretado por Jean-Paul Belmondo (Ferdinand/Pierrô); duplo gênero (a fuga dos amantes criminosos/romantismo tipo Robinson Crusoé); vida dupla (comum/sonhada); dupla linguagem (publicitária/poética); lógica dupla (homem/mulher); dupla cor (azul/vermelho) (2).
O Demônio
das Onze Horas foi
feito durante os “anos
Anna Karina”
das Onze Horas foi
feito durante os “anos
Anna Karina”
Na opinião de Jacques Mandelbaum, O Demônio das Onze Horas recapitula todos os filmes anteriores de Godard, da traição feminina em Acossado (A Bout de Souffle, 1960), até ao isolamento de O Desprezo (Le Mépris, 1963), passando por Uma Mulher é Uma Mulher (Une Femme Est Une Femme, 1961), Viver a Vida (Vivre sa Vie, 1962), Alphaville (1965), assim como prefigura aqueles que ainda estão por vir – como Masculino-Feminino (Masculin Féminin: 15 Faits Précis, 1966), A Chinesa (La Chinoise, 1967), etc. A periodização do filme (o abandono da criança, a ruptura com a sociedade, o isolamento na ilha, a seguir o retorno ao palco para celebrar o sol negro da melancolia e a estrela morta do cinema) parece oferecer a esse respeito uma visão fulgurante das modalidades ao mesmo tempo existenciais e estéticas que em breve Godard irá empregar. O período de O Demônio também é referido como os “anos Anna Karina”, por conta da presença da atriz/esposa dinamarquesa. Uma relação que irá estruturar a obra de Godard de 1960 a 1967, fase também de maior êxito comercial do cineasta (3).
O cineasta norte-americano Samuel Fuller, mestre dos filmes de baixo orçamento, aparece na festa surpresa de Monsieur e Madame Espresso. Nesta cena ficamos sabendo por que Ferdinand resolve abandonar sua família e ir para a estrada com uma mulher com que tivera um caso no passado. A presença do cineasta aqui não está articulada a nenhuma função narrativa, ele serve apenas para contrastar as pessoas na festa. Enquanto Fuller se refere ao cinema como “um campo de batalha”, repetem slogans comerciais ao seu lado. Segundo Willians, a oposição nesta cena se dá entre o cinema de Fuller (cineasta um tanto individualista e marginal) e a sociedade de consumo (4).
Marianne chama seu amante de Pierrô, ao que ele sempre retruca, “meu nome é Ferdinand”. Quem sabe ela insiste nisso porque Ferdinand é o nome de um touro selvagem covarde da literatura infantil. Noutra oportunidade ela comenta sobre um autor quase homônimo, Louis-Ferdinand Céline. Entretanto este foi um modernista de direita notório, cuja política era similar (embora mais extrema do que) a Sam Fuller e que contava estórias de outsiders solitários fazendo uma “jornada para o final da noite”. No caso de Marianne, ela aparece justaposta com Retrato de Uma Garotinha, de Auguste Renoir – Marianne... Renoir”. A outra referência é a Marianne, o mítico espírito da Liberdade durante a Revolução Francesa. Nesse último caso, seu nome significa o fora-da-lei revolucionário. Mas Ferdinand prefere vê-la como modelo de Renoir, o objeto de contemplação de um artista-intelectual. Essa articulação entre um (revolucionário) fora-da-lei e um (covarde) intelectual, já existia em seu primeiro longa-metragem, Acossado. Uma referência a isso está no diálogo entre Ferdinand e Marianne. Ele diz, “devem ser quatro anos” [desde que nos vimos]. Ela questiona, “não, cinco anos e meio” (5).
Exatamente em outubro de 1959, esclareceu Willians, cinco anos e meio antes da filmagem de O Demônio das Onze Horas, começaram os trabalhos com Acossado. Belmondo atuou como o primeiro dos foras-da-lei de Godard, em oposição à atriz Jean Seberg, que fazia a primeira das intelectuais dele. Outras ligações existem entre os dois filmes, como se fossem duas metades de um todo maior. Como no caso da primeira linha de diálogo em Acossado, dita por Belmondo, começa “après tout, je suis con”, e a última linha de O Demônio começa “après tout, je suis idiot”. No apartamento de Patrícia em Acossado encontramos reproduções de obras de Renoir e Picasso, os mesmos artistas que reencontramos no apartamento de Marianne, no início de O Demônio. Willians encontra relações até mesmo entre as iniciais dos nomes: Patrícia e Michel (Acossado), Piero e Marianne (O Demônio) – mas os sexos são invertidos, assim como as funções de fora-da-lei e intelectual (6).
O Demônio das Onze
Horas é para o cinema
do século 20 o que os Ensaios
de Montaigne foram para a literatura da Renascença (7)
Horas é para o cinema
do século 20 o que os Ensaios
de Montaigne foram para a literatura da Renascença (7)
Nos primeiros filmes de Godard, o fora-da-lei e o intelectual compartilhavam uma enorme antipatia ou, pelo menos indiferença, em relação à cultura do consumo. Willians explica que essa foi uma atitude bastante difundida na década de 60 do século passado. Em Godard, essa atitude repercutiu de outra forma. Pode-se dizer desses personagens de Godard que eles são mais ou menos entediados e tenham mais ou menos coragem. Juntamente com os situacionistas e outras pessoas que se opõem ao status quo do pós-guerra, o cineasta assume que a vida moderna é desumana e alienada. O tédio é a principal variável que distingue seus personagens, especialmente as mulheres. Marianne se entedia facilmente, Nana, em Viver a Vida, é menos. Mas para aqueles cuja autoconsciência empurra para níveis intoleráveis de tédio, a questão que se coloca é: o que fazer? Willians então nos apresenta uma segunda variável: a coragem ou a falta dela. A grande passagem entre Acossado e O Demônio das Onze Horas é a inversão de gênero dessa oposição. No primeiro, Michel é corajoso e Patrícia a covarde. No segundo, Ferdinand é o covarde, Marianne é corajosa.
De acordo com os
situacionistas, Godard não
era mais do que um esteta
covarde que roubava idéias
dos corajosos
situacionistas, Godard não
era mais do que um esteta
covarde que roubava idéias
dos corajosos
Na opinião de Willians, Marianne poderia ser considerada uma proto-situacionista. Os situacionistas ajudam as organizar (e depois refletiram) as energias que desembocaram em Maio de 68. Muitas das frases pichadas nos muros eram de origem situacionista – como, por exemplo, “o tédio é contra-revolucionário”. Eles se viam como os herdeiros de Karl Marx, embora se opusessem às doutrinas dos marxistas do pós-guerra, os quais supostamente não entenderiam que a sociedade alcançou outro nível de desenvolvimento. Como disse Guy Debord em 1967, se antes todas as coisas eram reificadas como mercadorias, agora são transformadas em espetáculo. Os situacionistas eram hostis em relação aos filmes de Godard – a quem consideravam um “esteta covarde”, ladrão de pensamentos e práticas de pessoas mais corajosas. Eles denunciavam especialmente dois de seus filmes: Acossado e O Demônio das Onze Horas.
Entre a mulher
corajosa e o homem covarde
- ou vice versa...
É melhor ser Patrícia em Acossado, ou Ferdinand em O Demônio? Muita covardia, e seremos como os convidados na festa dos Espresso. Coragem demais, e nos tornarmos assassinos em massa ou um canibais como os revolucionários em A Chinesa e Week End (1967). Na medida em que as alternativas emergem em Godard, o padrão ideal é o meio-termo tão caro à burguesia na França moderna. Entretanto, sugere Willians, Godard é um burguês com uma diferença, porque esse meio-termo implícito em filmes como O Demônio é doloroso e inatingível. Alguém está sempre se inclinando (ou sendo puxado) para um lado ou para o outro - os extremos são ocupados mais facilmente. Willians conclui que, se na década de 60 Godard foi, como diziam os situacionistas, um burguês irremediável, ele era pelo menos um burguês pós-moderno – cheio de nostalgia por um meio (-termo) que podia apenas imaginar, mas nunca encontrar (8).
Notas:
Leia também:
O Mundo Infantil de Picasso (I), (II), (final)
1. WILLIANS, Alan. Pierrot in Context(s) in WILLS, David (ed.) Jean-Luc Godards Pierrot le Fou. New York: Cambridge University Press, 2000. P. 60.
2. MANDELBAUM, Jacques. Jean-Luc Godard. Paris: Le Monde/Cahiers du Cinéma, 2007. Pp. 34-5.
3. WILLS, David. Oui, bien sûr... Oui, bien sûr In WILLS, David (ed.) Jean-Luc Godard’s Pierrot le Fou. New York: Cambridge University Press, 2000. P 3.
4. WILLIANS, Alan. Op. Cit., p. 49.
5. Idem, p. 50.
6. Ibidem, p. 51.
7. MANDELBAUM, Jacques. Op. Cit., p. 41.
8. WILLIANS, Alan. Op. Cit., p. 58.
1. WILLIANS, Alan. Pierrot in Context(s) in WILLS, David (ed.) Jean-Luc Godards Pierrot le Fou. New York: Cambridge University Press, 2000. P. 60.
2. MANDELBAUM, Jacques. Jean-Luc Godard. Paris: Le Monde/Cahiers du Cinéma, 2007. Pp. 34-5.
3. WILLS, David. Oui, bien sûr... Oui, bien sûr In WILLS, David (ed.) Jean-Luc Godard’s Pierrot le Fou. New York: Cambridge University Press, 2000. P 3.
4. WILLIANS, Alan. Op. Cit., p. 49.
5. Idem, p. 50.
6. Ibidem, p. 51.
7. MANDELBAUM, Jacques. Op. Cit., p. 41.
8. WILLIANS, Alan. Op. Cit., p. 58.