“Estou terrivelmente velho, muitas centenas de anos. Agora entendi
que a única coisa que você pode fazer a respeito do mundo é rir dele.
Nos velhos tempos eu tentava ser muito sério e levar as coisas
muito a sério, porque eu achava que era possível mudar o mundo”
Miklós Jancsó desabafa em entrevista no início dos anos 2000 (1)
Censura e Cinema na Hungria
John Cunningham assinalou que muitos talentos se perderam na esteira do levante de 1956 contra a presença soviética na Hungria. Embora o cineasta húngaro Miklós Jancsó (1921-2014) já realizasse curtas-metragens desde 1950, talvez por este motivo seu primeiro longa-metragem, Os Sinos Foram para Roma (A harangok Rómába mentek), tenha sumido das telas desde sua estreia em 1959. O filme foi repudiado pelo próprio cineasta. Mas essa atitude, naquela época e lugar (a Europa Oriental), talvez signifique uma questão de sobrevivência: até que o governo compreendesse que não poderia continuar a repressão indefinidamente, entre os anos de 1956 e 1959, 35,000 pessoas foram investigadas, 13,000 presas e 350 executadas. Apenas em março de 1963 os últimos prisioneiros políticos foram anistiados. De acordo com Cunningham, comparado a outros casos, a repressão na Hungria foi curta – o tempo máximo de prisão para os insurgentes foi de seis anos: os prisioneiros de Franco na guerra civil espanhola nunca foram anistiados; os comunistas gregos encarcerados pelos generais durante a guerra civil na Grécia teriam de esperar vinte anos; os prisioneiros que Stalin enviou para o Gulag durante a década de 1930 teriam de esperar até Nikita Khrushchov em 1956. Evidentemente, isso não ameniza a truculência do comunismo húngaro, mas talvez explique o início de um longo e complexo processo que transformaria a Hungria no menos opressor dentre os países da esfera soviética na Europa Oriental durante a Guerra Fria – novos ares que oxigenaram o cinema daquele país (2). (imagem acima, Vermelhos e Brancos, 1967; imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
Jancsó foi o mais importante representante
do cinema húngaro entre 1960 e 1970 (3)
Em 1973, o cineasta húngaro Péter Forgács conta que foi banido das universidades húngaras e não receberia suporte institucional porque participava de atividades culturais esquerdistas que buscavam construir um comunismo melhor e mais puro – o que parece uma ironia, mas não é, basta nos lembramos de Serguei Eisenstein e Lev Kulechov na União Soviética, apoiadores da revolução comunista cujas obras que contestavam as arbitrariedades do poder e a massificação da propaganda não eram mais úteis depois que os bolcheviques tomaram o poder do Czar. Forgács menciona o estúdio Béla Balázs como o único em que os cineastas gozavam de certa autonomia – o que não quer dizer que não fossem financiados pelo Estado. Ele conta que...
“Todos os outros cineastas em todos os outros estúdios húngaros (existiam cinco), mais o estúdio de animação, mais o estúdio de documentário, tinham de mostrar seus roteiros para os administradores e, claro, existia também uma grande dose de autocensura. Existia um discurso de duplo sentido generalizado na cultura cinematográfica húngara durante essa era: você podia compreender o que eu queria dizer, mas também compreendia aquilo que eu não podia dizer por causa daqueles caras ali – mas ambos sabíamos o que sabíamos! Eu acho que foi Miklós Jancsó que originalmente rompeu com esse discurso de duplo sentido” (4) (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)
Juntamente com Akira Kurosawa, Jean-Luc Godard e Nagisa Oshima,
Jancsó é reconhecido como um daqueles que utilizou o Cinemascope
Jancsó é reconhecido como um daqueles que utilizou o Cinemascope
de forma a romper com o classicismo emanado de Hollywood (5)
Jancsó já estava realizando seus curtas quando o famoso cineasta soviético Vsevolod Pudovkin desembarcou na Hungria em 1950. Nomeado conselheiro especial, sua função era aconselhar os cineastas húngaros a conhecer melhor o marxismo-leninismo e pedir conselhos aos representantes do Partido Comunista. Em seu retornou no ano seguinte, avaliou toda a produção ainda não distribuída e sugeriu mudanças em todos os filmes. Pudovkin insiste na importância maior do roteiro em relação à encenação (o que, na verdade, se pode concluir que facilita a avaliação de cada filme, e talvez explique o desinteresse de cineastas russos como Andrei Tarkovski em relação ao enredo (6)), e encoraja todos a seguir a influência soviética. Um “degelo cultural” se produz no início dos anos 1960, permitindo a eclosão de Jancsó e István Szabó, entre outros, que se debruçam sobre temas até então tabus (incluindo a revolta de 1956) (7). Há um distanciamento em relação ao estilo em voga nos anos 1950 e o acolhimento da Nouvelle Vague e do cinema de arte europeu de cineastas como Federico Fellini, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. (imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
Histórias da Hungria
O ápice da utilização do plano longo bem estruturado
(como em Orson Welles e Ingmar Bergman) é visível
nos filmes de Miklós Jancsó, por volta de 1970 (8)
(como em Orson Welles e Ingmar Bergman) é visível
nos filmes de Miklós Jancsó, por volta de 1970 (8)
Após vinte e oito curtas-metragens desde 1950 e três longas, realiza Meu Caminho (Így jöttem, 1965) – Cunningham chama atenção para a presença da futura cineasta e roteirista Judit Elek enquanto ainda era estudante de cinema nos créditos, o que agregava valiosa experiência antes mesmo do final do curso de cinema. Ambientado próximo ao final da Segunda Guerra Mundial quando Joska, um húngaro com dezessete asnos de idade, é capturado pelos russos e desenvolve uma amizade com Kolja, o guarda soviético responsável por ele, o qual morrerá por uma enfermidade que o acompanha durante todo o filme. Joska é bem tratado pelos russos, enquanto seus encontros com outros húngaros não é tão harmonioso – será confundido com o inimigo por duas vezes. Embora admita que pareça uma simplificação excessiva, Cunningham sugere que o filme afirme o argumento de certa compreensão ou aproximação de algum tipo entre húngaros e russos. Meu Caminho já apresenta algumas das características que se tornarão marcas registradas do estilo de Jancsó: figuras isoladas em contraste com grandes espaços vazios a céu aberto, tomadas a partir de ângulos altos (com gruas ou guindastes), plano aberto e travellings melancólicos. Os primeiros trabalhos de Jancsó e Szabó são frequentemente classificados como manifestações do Cinema Novo húngaro – Jancsó se antecipou ao colega conterrâneo no que diz respeito a coproduções no estrangeiro. Cunningham sugere cautela, já que muitos daqueles que são reunidos sob esse rótulo partilham pouco em comum além de certo temperamento (9). (imagem abaixo, Os sem Esperança, 1966)
Na primeira parte da obra de Jancsó, a nudez dos corpos
simboliza a humilhação do vencido diante do poder
simboliza a humilhação do vencido diante do poder
Jancsó realiza então aquela que será considerada sua obra-prima magistral, Os sem Esperança (Szegénylegények, 1966) (imagem acima). Em 1967, com Vermelhos e Brancos (Csillagosok, katonák), outro filme histórico, o assunto é a participação de húngaros no exército soviético (os vermelhos), contra as forças do Czar (os brancos), durante a guerra civil que se seguiu à revolução bolchevique de 1917. Coprodução de húngaros e soviéticos rodado próximo à cidade russa de Kostrona, as margens do rio Volga, ao norte de Moscou. Feitos prisioneiros de guerra pelos brancos, um grupo de húngaros e de outras nacionalidades é “solto” para ser caçado – há muita morte em Vermelhos e Brancos; prisioneiros de ambos os lados são humilhados ao serem forçados a se despir. Chegam a ser socorridos por outros húngaros do exercito vermelho, mas os brancos triunfam naquela hora. Antonin e Mira Liehm explicam que em Vermelhos e Brancos a maior parte das figuras é filmada em profundidade de campo (deep focus) contra uma paisagem imutável, indiferente e de uma beleza lírica, levando Andrew Horton a concluir que Jancsó se esforça para evitar uma psicologia simples de causa e efeito:
“As semelhanças entre Jancsó e [o cineasta grego Theo] Angelopoulos em termos de orientação histórica e foco estilístico são ainda maiores do que possa inicialmente parecer. A descrição a seguir do cinema de Jancsó por Mira e Antonin J. Liehm pode igualmente ser aplicada a Angelopoulos: ‘Todos os sistemas políticos, todas as épocas históricas, podem ser acomodadas nesse balé cinematográfico de violência e opressão, desenvolvidos a partir da tensão entre a ‘beleza’ da estilização artística e a ‘feiura’ do testemunho’. O que os Liehms enfatizam é que a forma estética oferece um contraponto à ‘violência’ da autoridade/política/poder que consegue elevar o momento para além de seu contexto histórico na direção de um plano mais universal” (10) (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)
Vermelhos e Brancos celebra o 50º aniversário da revolução russa,
mas as autoridades soviéticas não gostaram do retrato ambíguo e não
heroico e fizeram mudanças. Felizmente, Jancsó podia escolher
a versão a ser levada para a Hungria e distribuída mundialmente (11)
mas as autoridades soviéticas não gostaram do retrato ambíguo e não
heroico e fizeram mudanças. Felizmente, Jancsó podia escolher
a versão a ser levada para a Hungria e distribuída mundialmente (11)
Ao aproximar Angelopoulos de Jancsó, Horton também está se referindo a certa característica que une os dois e os distingue dos cineastas ocidentais. Segundo Horton, os cineastas que trabalhavam na União Soviética e na Europa Oriental (então sob a influência do comunismo soviético) geralmente não separavam a arte e a política, sempre conectando forma, conteúdo e finalidade. Durante uma entrevista em 1993, perguntaram a Angelopoulos porque seus filmes são tão não hollywoodianos. O grego respondeu que quase não existem filmes que traduzam verdadeiramente o que acontece naquela parte da Europa, e que ele pretendia capturar algo da melancolia de um povo com aqueles problemas políticos e institucionais. Na hora de mostrar isso é que muitos verificam a similaridade entre os travellings longos de Angelopoulos e Jancsó. Como o húngaro, em filmes como Os sem Esperança e Vermelhos e Brancos, o grego rejeita a montagem em favor de uma tomada contínua acoplada a uma câmera com movimentos circulares ou em linha reta (12). Presente durante as filmagens, em 1968 o cineasta e roteirista Gyula Maár falou a respeito das tomadas extremamente longas (a maior com quatro minutos) típicas de Jancsó como se a câmera (muito móvel) fosse um observador caminhando de um lado a outro (notam-se composições geométricas), parando para prestar atenção em alguma coisa até que outra chame sua atenção. Maár destacou também a quantidade de instruções que Jancsó passava em voz alta durante as filmagens, razão pela qual preferia a dublagem na pós-produção ao invés da filmagem com som direto:
“Existem outras razões do por que ele prefere dublar depois. Naturalmente também porque som construído é o que ele deseja para seu mundo construído, e apenas dublagem posterior pode liberar do som indesejado na locação. Também é verdade que a leve e portátil câmera Arriflex, importante para ele, é imprópria para gravação simultânea. Contudo, o fator decisivo – estou certo disso – é que ele quer ser capaz de dirigir uma cena enquanto ela está acontecendo...” (13) (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
Miklós Jancsó rompeu com o discurso de duplo sentido utilizado por
todos que pretendiam sobreviver na Hungria do regime comunista (14)
todos que pretendiam sobreviver na Hungria do regime comunista (14)
Jancsó manterá seu foco em datas chave da história húngara em Silêncio e Grito (Csend és kiáltás, 1968), novamente com poucos diálogos, pouca informação sobre o enredo e ligações apenas sugeridas entre os personagens. Ambientado nos últimos dias da República dos Conselhos em 1919, um soldado do agora derrotado exercito vermelho húngaro está fugindo e se abriga numa fazenda. O chefe de polícia local fecha os olhos para sua presença, mas ele acaba se revelando ao denunciar a mulher do fazendeiro (que o estaria envenenando) para as autoridades. O fazendeiro dá uma arma para o soldado cometer suicídio, mas ele mata o chefe de polícia. A seguir, em Ventos Brilhantes (Fényes szelek, 1969), com 31 tomadas em 82 minutos de filme, acompanhamos um grupo de estudantes do Nékosz logo após o final da Segunda Guerra Mundial, quando invadem uma escola religiosa – reconhecida por seu sectarismo, Nékosz (Népi Kollégiumok Országos Szövetsége, Associação Nacional dos Colégios do Povo) foi uma organização comunista de escolas e colégios com educação alternativa para filhos de trabalhadores da agricultura e da indústria; será fechada em 1949, quando seus líderes são apanhados e presos no julgamento-espetáculo de László Rajk. No filme de Jancsó os estudantes do Nékosz se dividem em dois grupos, aqueles que pretendem debater com os religiosos e aqueles que pretendem forçá-los a aceitar seu ponto de vista. Para seu ensaio de 2001 a respeito do Nékosz, Dini Metro-Roland relacionou o processo de stalinização da Hungria do imediato pós-guerra e os Colégios do Povo, em 1999 havia perguntado a uma entrevistada que ela achou do filme:
“Eu não queria ver aquilo. Mas aí passou na televisão então assisti. Achei que era muito infantil e simplesmente não era verdadeiro. Mas pensei sobre isso meia hora mais tarde e ele me atingiu. Ocorreu-me que quando me disseram que aquilo era democracia, não era exatamente. Não sei se você está familiarizado com o filme, mas havia uma cena em que estudantes estavam cantando, dançando e jogando todo tipo de jogos ao ar livre e, enquanto isso, a liderança determinava como seriam as coisas. Ocorreu-me cerca de uma hora mais tarde, com meu marido, que isso foi verdade. Realmente. Foi verdade porque muitas vezes quando pensávamos que ‘agora, estamos decidindo’, e ‘isso é verdadeiramente democracia’, o mais provável é que foi a liderança quem decidiu. Apenas foi disfarçado. Por isso, foi uma sensação terrível então. Não sei se era isso que Jancsó tinha em mente quando fez o filme, mas, para mim, anos após [o Nékosz], com esse filme, ocorreu-me que não era democracia de verdade e que, talvez, nem sequer tenha existido ali a democracia real que imaginavamos (Hungarian Studies, 2001, p.70)” (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
Da Narrativa à Parábola dos Fatos
A visão que Jancsó tem do poder é fundamentalmente kafkiana
Críticos e historiadores do cinema localizam a parte essencial da obra de Jancsó entre as décadas de 1960 e 1970. Mais especificamente, Os sem Esperança e Vermelhos e Brancos são os dois filmes considerados suas criações mais refinadas – no primeiro, finalmente todas as características mais importantes de seu estilo estão reunidas; no segundo, este estilo alcança reconhecimento internacional. András Bálint Kovács ecoa as declarações de Horton ao afirmar que o cinema moderno da Europa central e oriental aponta seu foco em temas históricos e políticos. A carreira de Jancsó foi dominada pela investigação da natureza do poder político, foi a pressão da censura em seu país que o levou a trabalhar a questão através de temas históricos. Disfarçado de história, a crítica social e política era mais aceitável para as autoridades do que a crítica direta. Neste sentido, Os sem Esperança pôde ser lançado na Hungria em 1966 sob a condição de que Jancsó afirmasse explicitamente numa entrevista de que o filme não falava de retaliações pela repressão à revolta de 1956, mas sobre as retaliações à revolução de 1848. Estava claro para todo mundo, explicou Kovács, que o cenário histórico era apenas um disfarce, para acalmar os censores. Os sem Esperança torna-se o primeiro representante de todo um gênero no cinema húngaro, a parábola histórica, que virou moda no país, especialmente no início dos anos 1970 (15). (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)
Jancsó assumiu a influência de Michelangelo Antonioni,
particularmente em função de A Noite. Mas ele ultrapassa
o modernismo do mestre e desenvolve um estilo próprio (16)
particularmente em função de A Noite. Mas ele ultrapassa
o modernismo do mestre e desenvolve um estilo próprio (16)
Vale lembrar que naquela época a Hungria ainda era um satélite soviético no auge da Guerra Fria. Os sem Esperança aborda a fracassada revolução de 1848, quando justamente os russos (então muito antes da revolução bolchevique e sob o comando do Czar Nicolau I) vieram em socorro da monarquia Habsburgo para derrotar os húngaros e restabelecer a unidade do Império Austro-Húngaro (que seguiu se arrastando até finalmente se esfacelar ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918). Aprisionados numa fortaleza perdida na vastidão da planície húngara os rebeldes, que aos olhos dos donos do poder eram apenas criminosos comuns (embora fossem retratados como libertadores nas músicas folclóricas), convivem com a rotina de brutalidades em busca dos líderes. Quase sem trilha sonora e com poucos diálogos, o filme apresenta os rebeldes privados de sua humanidade e de heroísmo. Na opinião de Robert Vas, Jancsó convida o espectador a jogar fora o sonho aconchegante e confortável de uma história húngara romântica e heroica para encarar a realidade, onde o oprimido se confunde com o opressor e vice-versa (17). Para Kovács, entretanto, uma sinopse como está talvez não acalme os ânimos dos muitos espectadores que não conseguem compreender a lógica da narrativa de Jancsó. Muito poucos detalhes são revelados, sabemos apenas que existe uma investigação que pretende encontrar o assassino de dois pastores. O interrogatório do suspeito é parte de um jogo desconhecido, já que se sabe quando ele está mentindo ou não. Portanto, conclui Kovács, o espectador está vendo uma versão ritualizada de investigação. (imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
“Ele foi meu mestre”
Miklós Jancsó a respeito da influência de Michelangelo Antonioni em sua obra (18)
Segundo Kovács, o que fica evidente em Os sem Esperança é que o estilo narrativo de Jancsó não encadeia uma serie de eventos que leva a um resultado necessário. Os eventos, que guardam pouca coerência lógica entre si, são parte de um ritual simbólico que varia de forma durante a história, mas que em sua essência e resultados se mantém o mesmo sempre: opressão e humilhação – aquilo que no filme parece ser uma investigação não possui outro sentido senão quebrar a moral e confundir os presos. A narrativa sugere que nenhuma iniciativa individual controla os eventos. Todos executam um elemento particular de uma ordem, mas a totalidade do sistema é fundamentalmente desconhecida de todos. Jancsó esboça assim sua visão basicamente kafkiana do poder. Contudo, Kovács nos lembra de que a seriedade e o mistério metafísico dos tempos em que Kafka escreveu. Ou melhor, depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial e da experiência das ditaduras nazista e comunista na Hungria (e boa parte da Europa), o “segredo do poder” se assemelha para Jancsó com nada mais do que um ritual cruel, cujo principal objetivo é assegurar a sobrevivência do próprio sistema hierarquizado de poder. (imagem abaixo, Os sem Esperança, 1966)
Jancsó radicalizou a proposta de Antonioni, modificando
a forma como a alienação dos personagens é representada
a forma como a alienação dos personagens é representada
Kovács acredita que o estilo extremamente minimalista e simbólico de Jancsó é a maneira adequada para expressar tais ideias. Para sua concepção de relações humanas alienadas, o cineasta escolheu Antonioni como seu modelo, cujo estilo parece a Kovács o mais adequado para representar pessoas cuja relação com os outros e com o ambiente está basicamente quebrada, comprometida. Vagueando sem rumo num ambiente com o qual não tem contatos, os personagens de Antonioni produzem um sentimento de vazio que foi uma das novidades do cinema moderno na época. Ainda segundo Kovács, essa busca dos personagens do cineasta italiano pelo contato perdido com o ambiente produz a ilusão da presença de um enredo linear, mas o fato é que as histórias nunca levam a nada. Jancsó radicalizou o projeto de Antonioni de duas maneiras:
“Embora ele ainda mantenha a ilusão do desenvolvimento de um enredo linear em Os sem Esperança, deixa claro que isso não irá levar para fora da situação na qual a história se inicia: uma vez que os homens são capturados, serão todos liquidados um a um sem nenhum outro argumento adicional. Sendo assim, o desenvolvimento do enredo linear é basicamente circular. Segundo, o movimento constante dos personagens motivados por uma busca típica de filmes de Antonioni, se torna nos filmes de Jancsó no elemento central de expressão, e são inteiramente autônomos, assim como o ponto inicial e o resultado final são essencialmente o mesmo. O movimento de um personagem possivelmente não irá levá-lo para fora da situação na qual começou. Portanto, o movimento da câmera e dos personagens se torna cada vez mais ritualizado e ornamental. A natureza ornamental desses movimentos torna necessário que a câmera os siga o tempo todo, como uma dança ou balé, levando Jancsó a criar um estilo baseado na tomada extremamente longa. Tudo está subordinado à ritualização do movimento, é por isso que os cenários do filme são muito abstratos e minimalistas. Jancsó utiliza muito poucos ingredientes, de modo que nada pode bloquear o caminho dos personagens e da câmera. O espaço de Antonioni é a cidade grande, onde o labirinto de ruas determina o movimento aleatório dos personagens. Em Os sem Esperança, o espaço estruturando os movimentos dos personagens é absolutamente aberto e nenhuma limitação exterior controla a direção e coreografia de seu movimento. A representação da alienação por Jancsó é radical também de outra maneira. Enquanto a novidade de Antonioni foi quebrar o contato entre o ambiente e os personagens, Jancsó eliminou a diferença entre os personagens e o ambiente, mas de uma maneira que resulta numa representação mais radical da alienação. Os personagens perdem sua autonomia e por seus movimentos ritualizados tornam-se meros elementos do ambiente. Enquanto os heróis de Antonioni são individuais que sofrem psicologicamente por sua solidão e perda de contato com o mundo externo, os heróis de Jancsó também são privados de sua individualidade. Eles não possuem nenhuma vida privada, nenhuma emoção, e a única coisa que os determina é sua posição na hierarquia do poder (...)” (19) (imagens abaixo, Vícios Privados, Virtudes Públicas, 1976)
Anos 1970 e 1980
“Para Jancsó, os anos 1970 foram uma década desigual,
e poucos de seus filmes deste período não tiveram problemas” (20)
e poucos de seus filmes deste período não tiveram problemas” (20)
Antes de István Szabó, Jancsó já havia aderido a coproduções com outros países, como no caso do franco-hungaro Vento de Inverno (Sirokkó, 1969). Depois de Agnus Dei (Égi bárány, 1971), que, como Silêncio e Grito, também é ambientado nos dias da República dos Conselhos em 1919, o cineasta passaria a trabalhar fora da Hungria por consideráveis períodos de tempo, principalmente na Itália. Sua produção daquela época no estrangeiro inclui três filmes na Itália, A Pacifista (La pacifista - Smetti di piovere, 1970), La Tecnica e il Rito (1972) e Roma Rivuole Cesare (1974); o ítalo-iugoslavo Vícios Privados, Virtudes Públicas (Vizi privati, pubbliche virtù, também conhecido no Brasil pelo título Vícios e Prazeres, 1976) – de acordo com Cunningham, todos estes filmes tiveram apenas uma distribuição limitada e foram muito pouco vistos na Hungria e, quando apresentados, causaram pouco impacto; alguns deles podem ter tido uma distribuição bastante limitada; Vícios Privados, Virtudes Públicas foi o único que causou certo impacto na Grã-Bretanha, mas é preciso observar que aí o filme seria comercializado como um pornô leve. Realiza ainda em 1981 a coprodução ítalo-húngara O Coração do Tirano (A zsarnok szíve, avagy Boccaccio Magyarországon) e Bocca di Leone, que foi totalmente filmado na Hungria, com equipe e técnicos húngaros. (21). (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
Na opinião de John Cunningham, Salmo Vermelho é datado, “peça
de museu do final dos anos 1960 e cinema agitprop dos anos 1970” (22)
de museu do final dos anos 1960 e cinema agitprop dos anos 1970” (22)
Além da repercussão limitada de seu trabalho na Itália, a década de 1970 foi problemática para Jancsó. Salmo Vermelho (Még kér a nép, 1972) e Querida Electra (Szerelmem, Elektra, 1974) se destacaram (embora o primeiro não tenha sido uma grande bilheteria na Hungria), mas Rapsódia Húngara (Magyar rapszódia) e Allegro Barbaro (Allegro barbaro - Magyar rapszódia 2), ambos de 1979, não foram muito bem compreendidos e aceitos pelo público, tanto em seu pais quanto no estrangeiro. Estes dois últimos foram concebidos como parte de uma trilogia, que deveria se chamar Vitam et Sanguinem (latim para “Nossa Vida e Nosso Sangue”; acredita-se que foi o grito dos nobres húngaros em setembro de 1741, diante da futura monarca Habsburgo, Maria Teresa, na cidade de Pozsony, nome húngaro da cidade de Bratislava, que atualmente é a capital da Eslováquia), mas a terceira parte, Concerto, nunca seria concluída. Salmo Vermelho aborda o movimento agrário na virada do século XIX para o XX, um tempo de agitação no campo e dos centros de ação numa greve de trabalhadores rurais, que serão suprimidos pelos militares no final do filme. Música e dança, elementos já presentes noutros filmes de Jancsó, estão em primeiro plano e grande parte do filme se entrega a interpretações de várias canções, algumas radicais e revolucionárias, muitas vezes com uma nova letra (como as Marseilles, A garota de Varsóvia, da revolução russa de 1905, e a norte-americana Johnny is my Darling). Encontramos também hinos e preces com novas letras radicais feitas pelos camponeses, incluindo uma oração ao Senhor socialista, o que explica a razão de ser do título em inglês do filme – o título húngaro é retirado de um poema de Sándor Petofi, O Povo Ainda Exige. (imagem abaixo, Vermelhos e Brancos, 1967)
Entre 1990 e 1999, Jancsó aparece em
seus filmes e aposta no poder do riso (23)
Querida Electra revisita a lenda grega transposta para a planície húngara. Baseado numa peça de László Gyurkó, o filme mistura elementos da história original com um cenário moderno de opressão e resistência, além de uma elaborada coreografia com luzes de velas, planos abertos e travellings. Depois que Electra se junta a seu irmão Orestes para expulsar o tirano Egisto, o filme termina de forma triunfal com o povo celebrando a vitoria e um helicóptero vermelho desce do céu. Embora Rapsódia Húngara seja focado demais em referências históricas específicas para agradar a um público não húngaro, Cunningham o considera muito interessante do ponto de vista estilístico, com seus camponeses se movendo em massa e suas velas acesas. Proprietário de terras, responsável pela morte de líder camponês, acaba simpatizando com a causa dele e termina o filme na linha de frente de uma manifestação. A alegoria segue em Allegro Barbaro, quando um proprietário de terras abandona seus companheiros que colaboram com os nazistas e se torna um guerrilheiro contra o exercito alemão. Durante a década de 1980, Jancsó está mudando. Em O Coração do Tirano, abandona muito do zelo revolucionário, idealismo e otimismo de Salmo Vermelho e Querida Electra, e explora um universo problemático, pessoalmente comprometido e perturbador. Entre outros, além de uma versão do texto de Goethe, Doutor Fausto (Faustus doktor boldogságos pokoljárása, 1982) e a filmagem da banda Omega (Omega, Omega, Omega, 1984), em Amanhecer (A Hajnal, 1986), adaptação do livro de Eli Wiesel (A Noite), um sobrevivente do Holocausto avesso a assassinato é obrigado a matar um soldado. Depois da queda do Muro de Berlim em 1989, tudo mudou (nem sempre para melhor) na Europa Oriental. Na década de 1990, os dilemas da “nova” Hungria fazem Jancsó se aproximar do riso em Lanterna do Senhor em Budapeste (Nekem lámpást adott kezembe az Úr Pesten, 1999). (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
Nudez no Cinema: Miklós Jancsó
Na obra de Jancsó, quando ideias de liberdade e revolução
encarnam na mulher, a nudez dos corpos passa de imagem
da humilhação à beleza de uma liberdade a conquistar
encarnam na mulher, a nudez dos corpos passa de imagem
da humilhação à beleza de uma liberdade a conquistar
Quando imaginávamos que John Cunningham havia deixado claro que e estética de Jancsó se caracteriza “apenas” por seus planos abertos e altos, seus longos travellings melancólicos, Michel Estève afirma que o tema central do cineasta húngaro, o esforço do homem para sair do círculo traçado pela prisão da História, se articula a um elemento que particulariza ainda mais sua obra – o qual Cunningham cita muito rapidamente. Para Estève, desde Os sem Esperança (1966) até Querida Electra (1974), dois ciclos se opõem na obra de Jancsó. De um lado, o fracasso de uma tentativa de libertação através da revolta nacionalista (Os sem Esperança), a revolução ferida (Vermelhos e Brancos, 1967) ou esmagada (Silêncio e Grito, 1968; Agnus Dei, 1971). Do outro lado, a exaltação de um projeto revolucionário baseado na defesa da dignidade do homem, a busca da liberdade, a aspiração pela vitória de uma Revolução ao serviço do homem (Os Ventos da História, Fényes Szelek, 1969; Salmo Vermelho, 1972; Querida Electra,1974). Nesta oposição entre os dois ciclos, concluiu Estève, juntamente com o tratamento das cores (a policromia substituindo o preto e branco), é a dramaturgia do nu que desempenha papel simbólico decisivo (24). (imagem abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
Na opinião de Jancsó, pelo menos em certa nudez existia uma
conexão entre a sexualidade e a violência, a guerra e o erotismo
conexão entre a sexualidade e a violência, a guerra e o erotismo
Explorando o destino trágico do indivíduo no interior do grupo, no primeiro ciclo fervilha o desnudamento de homens e mulheres. Independente de qualquer registro realmente erótico, a nudez corporal, muitas vezes associada ao tema da água, explorada pelo poder político ou militar, sugere primeiramente o caráter intercambiável das pessoas, vencidas, cativas, desprovidas das roupas através das quais exprimem sua condição ou seu ser interior. Para Estève, essa nudez implicitamente empurra o espectador às relações mais ou menos existentes entre a sexualidade e a violência, a guerra e o erotismo. Mais objetivamente, essa temática do nu serve, sobretudo, em Jancsó, para exprimir a humilhação e a submissão da pessoa aos caprichos dos carrascos, à fantasia cruel do opressor. Em Os sem Esperança, uma mulher nua corre de um lado para o outro numa linha reta enquanto é chicoteada até a morte. Em Agnus Dei, um violinista toca música enquanto as pessoas são mortas pelos homens do militar húngaro Miklós Horthy – uma estranha antecipação da prática nos campos de extermínio nazistas. Em Vermelhos e Brancos, Jancsó contrapõe numa longa sequência o corpo nu de uma mulher aos corpos mortos de soldados vermelhos. É Jancsó que diz: “Todos os nus possuem sua própria dramaturgia, tanto em Vermelhos e Brancos quanto em Silêncio e Grito. (...) A ausência de vestimentas (...) exprime sempre a servidão extrema: em Vermelhos e Brancos, é da servidão ao poder que se trata e, igualmente, em Silêncio e Grito, mas com essa amplificação de que estar nu é também uma doação feita àqueles que detêm o poder” (25). (imagens abaixo, Salmo Vermelho, 1972)
No início da carreira de Jancsó, a nudez feminina
representava a humilhação da condição de objeto.
Em Salmo Vermelho, representa a alegria de viver
representava a humilhação da condição de objeto.
Em Salmo Vermelho, representa a alegria de viver
Cunningham faz referências às linhas retas na encenação em Jancsó. Estève percebeu a posição dominante e função ambivalente do círculo. No primeiro ciclo de inspiração de Jancsó citado acima, encontram-se rodas de vítimas e carrascos, galopes de cavalos, longos movimentos de câmera (em travellings e panorâmicas). Círculos encerram os personagens na prisão da violência. A partir de Salmo Vermelho, círculos se transformam no símbolo da fraternidade revolucionária. Círculos de moças, círculos protegendo a nudez de três meninas, círculos com fitas vermelhas e na reunião entre camponeses e camponesas. Em Salmo Vermelho, o círculo se abre e aponta um impulso lírico de comunhão em grupo na revolta contra o totalitarismo. A dramaturgia se torna, aqui, como em Querida Electra, o símbolo da exaltação da liberdade. No início de Salmo Vermelho, três mulheres caminham de seios nus entre os soldados falando da opressão do poder e depois tiram as roupas. Querida Electra exalta a beleza dos corpos nus das moças, a luminosidade da dança entre homem e mulher nus: a representação do nu se insere na realidade de um espetáculo e simboliza a beleza da liberdade a conquistar. Neste filme, assim como em Salmo Vermelho, desaparecem o sadismo e a crueldade que marcam certas sequências dos primeiros filmes: quando uma panorâmica passa sobre o corpo de uma mulher nua, antes do segundo massacre dos socialistas, é para exprimir a nostalgia da beleza do corpo feminino condenado à morte, à decomposição. Pela primeira vez em Jancsó, ideias de liberdade e revolução humanista encarnam na mulher: “anteriormente, disse o cineasta, mostrava a nudez das mulheres como uma imagem de humilhação. Elas eram apenas objetos nas mãos dos opressores; em Silêncio e Grito, por exemplo: peões sobre um tabuleiro de xadrez. Em Salmo Vermelho, a nudez é a alegria de viver. E a mulher representa também a ternura” (26).
Leia também:
Lev Kulechov: O Ilustre e Desconhecido Homem do Efeito
O Prado de Bejin: Eisenstein e a Censura Stalinista
Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I)O Prado de Bejin: Eisenstein e a Censura Stalinista
Notas:
1. CUNNINGHAM, John. Hungarian Cinema. From Coffe House to Multiplex. London/New York: Wallflower Press, 2004. P. 147.
2. Idem, pp. 93, 95, 98, 219n24.
3. KOVÁCS, András Bálint. Szegénylegények/The Round Up. In: HAMES, Peter (Ed.). The Cinema of Central Europe. London/New York: Wallflower Press, 2004. P. 107.
4. MACDONALD, Scott. Péter Forgács: an Interview. In: NICHOLS, Bill; RENOV, Michael (Eds.). Cinema’s Alchemist. The Films of Péter Forgács. London/Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011. P. 11.
5. AUMONT, Jacques. Du Visage au Cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 1992. P. 156.
6. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 244.
7. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Paris: Quadrige/Puf, 2001. P. 245.
8. AUMONT, Jacques. O Cinema e a Encenação. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2008. P. 106n159.
9. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., pp. 100-1, 110-5, 123, 220-1n15, 222n26.
10. HORTON, Andrew. Theo Angelopoulos. A Cinema of Contemplation. New Jersey/USA: Princeton University Press, 1997. P. 83.
11. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., p. 112.
12. HORTON, Andrew. Op. Cit.
13. CUNNINGHAM, John. Op. Cit.
14. MACDONALD, Scott. Op. Cit., p. 11.
15. KOVÁCS, András Bálint. Op. Cit., pp. 107-14.
16. Idem, p. 107.
17. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., pp. 110-1.
18. TASSONE, Aldo. Antonioni. Paris: Flammarion, 2007. P. 393.
19. KOVÁCS, András Bálint. Op. Cit., pp. 113-4.
20. CUNNINGHAM, John. Op. Cit., p. 123.
21. Idem, pp. 123-4, 146, 223n8-9.
22. Ibidem, p. 123.
23. Ibidem, p. 146.
24. ESTÈVES, Michel. Jancsó (Miklós). In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. 1991. Pp. 208-9.
25. Idem, p. 208.
26. Ibidem, p. 209.