Algumas mulheres
vêem seus homens
como crianças, mas
nunca procuram os
homens adultos
As Heroínas e Seus Heróis
Se Geração (Pokolenie, 1955) acompanhava o início da organização de grupos insurgentes para lutar contra o invasor, com Kanal (1957) Wajda aborda o evento conhecido como Levante de Varsóvia. Na opinião de Eliżbieta Ostrowska, bem que o grupo de jovens na cena final de Geração poderia estar entre aqueles que participaram do Levante em agosto de 1944. Um dos primeiros a ser apresentado ao público é Halinka, uma jovem que ao sair de casa prometeu à mãe que se manteria aquecida. “Provavelmente todos prometeram coisas parecidas. Todas as mães são iguais”, explica o narrador. Chegando ao acampamento, um dos soldados se aproxima de uma jovem ferida deitada no chão. Ele diz que a reconhece e pergunta se a mãe dela sabe que ela se juntou à guerrilha. “Ela está morta”, responde a moça após um segundo de silêncio. Então o soldado pergunta se o ferimento é sério, ela diz que “não muito” – em seguida ele descobrirá que a moça teve a perna amputada (imagem abaixo, à direita). Nesta cena, explica Ostrowska, introduz-se o tipo de heroísmo silencioso que será a característica principal dos personagens femininos em Kanal, em contraste com a valentia algo histriônica dos homens. (imagem acima, Bússola e Margarida)
O heroísmo
de algumas mulheres é de
outra ordem, mas o mundo
é dos homens
Um soldado tenta atrair a atenção de Halinka dizendo que sonhou com ela. Halinka nem dá bola e vai procurar o soldado que lhe prometeu uma arma. Ela reclama da pistola minúscula que recebe – posteriormente a arma será utilizada de forma trágica. Sábio, que é o apelido do soldado, sugere que os dois deviam procurar um lugar para dormir. Momentos depois, Bússola entra no local que eles acharam e estão transando. Sábio pergunta por Margarida, Bússola não responde e vai fazer a barba. Ela chega logo em seguida. O narrador no início do filme caracterizou Bússola por sua preocupação em tomar banho – hábito que a guerra veio atrapalhar. Margarida é uma mensageira dos grupos poloneses insurgentes e utiliza os esgotos de Varsóvia para levar e trazer mensagens. Bússola e Margarida trocam algumas farpas, ela diz que tomou banho e passa o batom. Então ela descobre o ombro e Bússola começa a beijá-la. Nesse instante, bombas começam a cair e o idílio termina. Bússola salva o grupo, mas é ferido e a partir de então Margarida cuidará dele. Halinka corre para ver se Sábio está bem.
É mais fácil
morrer quando estamos
apaixonados
Bússola e Margarida (1) são os personagens principais, seu encontro acontece momentos antes da espetacular seqüência de heroísmo dele. Uma conversa entre os dois é interrompida por mais um bombardeio dos nazistas, o grupo será massacrado pelos tanques do inimigo quando Bússola (apenas depois de tirar sua camisa branca) se atira na direção deles e de forma quase suicida impede sua investida ao destruir um artefato automático. No processo, ele acaba ferido, mas sobrevive. Depois disso, a única saída é entrar pelos esgotos, o que revolta a todos, pois soa como uma derrota – Sábio se embriaga, enquanto Halinka tenta contê-lo. Um pianista também havia se juntado ao grupo, mas não o veremos pegar em armas. Ele pergunta a Halinka se o “soldado bonito” a ama. Ela confirma com balançar da cabeça e um olhar perdido. Também confirma que é seu primeiro homem.(imagem acima, à esquerda, Halinka e seu homem fardado bonito; abaixo, à direita, com Halinka a seu lado, o pianista recita Dante no esgoto)
O pianista
é o mais letrado
e sensível entre aqueles
homens, mas não tem mulher.
No que as mulheres polonesas são diferentes de todas
as outras?
O pianista fala do pressentimento de que eles todos não passarão daquela noite. “É mais fácil morrer quando estamos apaixonados”, comenta Halinka. “Nada disso. Melodrama. Não se deixe levar”, responde o pianista - ele começa a perder o contato com a realidade quando constata que sua família ficou do lado da cidade em poder dos nazistas. Como em Geração, aqui também aparece uma mãe. Ela está desesperada, procura sua filha no meio da confusão dos refugiados e das explosões. Na impossibilidade de destruir a resistência polonesa, os nazistas foram destruindo de forma sistemática prédio por prédio da capital polonesa. O conceito de guerra de guerrilha urbana em cidades tão grandes se desenvolveu justamente a partir da experiência adquirida nos dois meses do Levante de Varsóvia. O pior é que de nada adiantaria. Os soviéticos, que já se encontravam nas vizinhanças da cidade, nada fizeram para ajudar, permitindo que os nazistas esmagassem grande parte da resistência polonesa. Além do mais, conversações entre Churchill, Roosevelt e Stalin, garantiam que no pós-guerra a Polônia faria parte da esfera de influência soviética (2). Toda essa coisa de mergulhar no esgoto era muito diferente da idéia que os poloneses faziam de si mesmos, como um grupo de Davis em luta contra um Golias nazista.
A jovem virgem é que foi
seduzida pelo homem casado, ou
os casados é que são um alvo
preferido para seduzir?
Dentro dos labirintos dos esgotos de Varsóvia, o grupo acaba se dispersando. Halinka está com Sábio e o pianista. Lá pelas tantas, depois de uma avalanche de merda líquida, mais uma mulher começa a gritar em busca do filho. Sábio manda que ela se cale, pois os nazistas podem ouvir lá de fora. Mas a mulher continua a grita, chama todo mundo de assassino e acaba sendo esbofeteada por Sábio. Ao longe, Halinka assiste com uma expressão de confusão em seus olhos. No meio da confusão de pessoas procurando sair por um bueiro, o pianista começa a recitar Dante Alighieri: “Lá nas profundezas do inferno paramos, e... ei, vi o povo em um rio de excrementos de todas as latrinas do mundo”.
Os soviéticos traíram
os poloneses como Sábio
traiu a esposa com Halinka
e Halinka com a esposa
O pianista acaba pirando e sai pelos esgotos alheio a tudo tocando uma ocarina – a mesma que ele havia rejeitado quando ainda podia encontrar pianos. Halinka e seu “soldado bonito” acabam num beco sem saída. Quando ela está pronta a desistir de sua vida, presencia um discurso patético de seu amado. Ele diz que ainda tem pelo que viver, então mostra a fotografia de sua esposa e filho pequeno. Atordoada, Halinka se questiona pela ausência da aliança, mas o soldado retira do bolso e a coloca. Ele já está tentando reencontrar o caminho quando Halinka pede que ele apague a luz da lanterna, então ela pega a pequena pistola de ele havia lhe dado e dispara contra si mesma. (imagens acima, esquerda, e direita, Halinka com seu amado, que está entrando em desespero; Halinka e o pianista, que está quase se desligando da realidade)
Margarida, a Pietà Polonesa
Margarida e Bússola estão sozinhos no esgoto, mas ela conhece o caminho. Ele a elogia dizendo que ela é forte como uma operária – enquanto carrega o amado ferido naquele inferno, ela diz que nunca carregou peso de verdade. Então Margarida ironiza perguntando se ele vai querer saber da vida dela agora. “É uma história longa?”, ele pergunta. “Maior do que esses esgotos”, ela responde. Nos esgotos, a conversa entre Margarida e Bússola leva a uma reversão de papéis de gênero e ao questionamento do heroísmo masculino. Bússola está fraco e dependente, Margarida o está carregando. Ela é forte, protetora, pé no chão e competente. Quando ferido e delirante Bússola diz, “é calma e enevoada. Estamos andando por uma floresta escura e cheirosa”, Margarida responde, “estamos andando por uma merda fedida!”. E Bússola começa a falar sobre ela, “você é sempre tão objetiva, Margarida. Você nunca se apaixonaria, não é verdade?”. Ela deita o rosto no ombro dele (imagem abaixo). Margarida se recompõe e chama atenção para o caminho.
Quantas mulheres são
capazes de distinguir um guerreiro romântico de
um amante romântico?
Nos termos de Ostrowska, antes Bússola era uma guerreiro romântico, agora ele tenta ser um amante romântico. Agora ela acumula as funções de guia e mãe. Em certo ponto, ela chega a dizer que ele é uma criança – como Dorota/Ewa havia dito em relação à Stach, em Geração. Margarida reluta em admitir seu amor por Bússola, numa situação de vida e morte como a que eles estão vivendo se poderia esperar uma confissão de amor – novamente como aconteceu em Geração. Os dois chegam ao ponto procurado por todos, Margarida e Bússola entram num corredor que parece uma grande vagina. Mas ele escorrega e volta para o esgoto. Enquanto descansam, Bússola percebe que em frente à entrada (portanto, em frente da “vagina”) existe uma inscrição na parede – outros dois soldados do grupo haviam passado por ali, mas só avistaram a inscrição, não se viravam de costas para encontrar a saída. Inicialmente, Margarida reluta em dizer o que está escrito, mas explica que é uma declaração de amor: “Eu amo Janek”. Ele pergunta quem escreveria essa bobagem. “Não é uma bobagem”, responde Margarida.
Margarida olha
para o outro lado do
rio e diz que vê o paraíso.
Os espectadores poloneses
sabem que do outro lado
estavam tropas soviéticas
que nada fizeram para
ajudá-los enquanto
eram aniquilados
pelos nazistas
Ela expõe seu ponto de vista: “Os esgotos vazios. Os alemães lá em cima, o medo, entende? Alguém escreveu, e isso a fez sentir melhor. Eu costumava passar por aqui”. “E o que você escreveu?”, perguntou Bússola. “Tome no rabo. E outras coisas assim”, responde Margarida. Bússola quer saber quem era aquele homem. “Alguém que uma garota amava”, responde ela. “Muito?”, ele insiste. “Sim, muito mesmo, Jacek”, Margarida responde sussurrando próximo ao ouvido dele (imagem acima). Jacek é o verdadeiro nome de Bússola – como vimos, ela até tentou disfarçar dizendo que a frase se referia a alguém chamado Janek. Como não conseguiram subir pela passagem, Margarida decide que eles devem seguir até a saída do esgoto no rio Vístula. Um Jacek totalmente sem forças e cego tenta se desculpar por ter sido grosso com ela no passado, “resolveremos isso depois”, responde Margarida. Há alguns metros dali ela vê a saída, eles se beijam – por iniciativa dela. Então descobre que a saída está bloqueada por grades. Jacek não pode abrir os olhos, então ela mente dizendo que vê água e grama verde. Ele cai Margarida o acolhe numa posição que lembra a Pietà, de Michelangelo. Ostrowska conclui que Margarida adota até o fim uma atitude de auto sacrifício e auto negação, pelo constante favorecimento do “você” em detrimento do “eu” e pela compreensão racional de uma situação onde não há espaço para qualquer tipo de relacionamento individual (3).
Leia também:
As Mulheres de Andrzej Wajda (I), (III)
Rossellini e o Corpo do Herói Paisano
O Carteiro, o Poeta e a História
Roberto Rossellini, Cidadão Italiano
A Classe Operária Vai ao Paraíso
Breve Incursão na Guerra dos Sexos
Notas:
1. No DVD de Kanal lançado no Brasil pela Aurora DVD, os nomes são, respectivamente, Bússola e Margarida. Tanto num caso como noutro, certamente se trata de apelidos para esconder a identidade do inimigo. No livro de Mazierska e Ostrowska, Bússola se chama Korab e Margarida se chama Daisy. Stokrotka significa Margarida em polonês, é assim que ouvimos Jacek chamá-la. Daisy significa Margarida em inglês.
2. DESCHNER, Günther. O Levante de Varsóvia. Aniquilamento de uma Nação. Rio de Janeiro: Editora Renes Ltda, 1974. Pp. 18, 51 e 123.
3. OSTROWSKA, Eliżbieta. Caught Between Activity and Passivity: Women in The Polish School in MAZIERSKA, Ewa; OSTROWSKA, Elżbieta. Women in Polish Cinema. New York: Berghahn Books, 2006. P. 82.
Roberto Rossellini, Cidadão Italiano
A Classe Operária Vai ao Paraíso
Breve Incursão na Guerra dos Sexos
Notas:
1. No DVD de Kanal lançado no Brasil pela Aurora DVD, os nomes são, respectivamente, Bússola e Margarida. Tanto num caso como noutro, certamente se trata de apelidos para esconder a identidade do inimigo. No livro de Mazierska e Ostrowska, Bússola se chama Korab e Margarida se chama Daisy. Stokrotka significa Margarida em polonês, é assim que ouvimos Jacek chamá-la. Daisy significa Margarida em inglês.
2. DESCHNER, Günther. O Levante de Varsóvia. Aniquilamento de uma Nação. Rio de Janeiro: Editora Renes Ltda, 1974. Pp. 18, 51 e 123.
3. OSTROWSKA, Eliżbieta. Caught Between Activity and Passivity: Women in The Polish School in MAZIERSKA, Ewa; OSTROWSKA, Elżbieta. Women in Polish Cinema. New York: Berghahn Books, 2006. P. 82.