Psicoterapia Cinematográfica
No final dos anos 1950 emerge a Escola Polonesa, oferecendo uma visão individualizada da realidade em contraposição ao realismo socialista que dominava o cenário das artes na Polônia do pós-guerra. Personificada por cineastas como Andrzej Wajda e seu romantismo expressionista, ou pelo grotesco e a ironia em Andrzej Munk, ou ainda pelo realismo de Kazimierz Kutz, a temática da Escola Polonesa focava a necessidade de revisitar uma experiência da Segunda Guerra Mundial que havia sido distorcida ou simplesmente suprimida no realismo socialista. De acordo com Tadeusz Lubelski, os filmes da Escola Polonesa representariam a estratégia de um psicoterapeuta, onde os cineastas tentariam “restaurar a saúde do público espectador” fornecendo autoconhecimento através da análise do passado recente (1). (imagem acima, Dorota a panfletária. Ao fundo, Stach; abaixo, à direita, Stach e sua mãe)
Até que ponto
está também presente,
na Escola Polonesa, uma
revisão da representação
do feminino no cinema
polonês do realismo
socialista?
Qual foi a representação da mulher polonesa por essa Escola? Em que medida a situação da mulher estava inserida nessa “psicoterapia cinematográfica” da identidade polonesa durante a Segunda Guerra Mundial, uma época em que o invasor nazista (e posteriormente comunista) dominou e impôs sua própria identidade? Foram as perguntas que Eliżbieta Ostrowska se fez. Wajda iniciou sua carreira por essa época, uma trajetória profundamente marcada por filmes que revistam questões chave da nacionalidade polonesa. Geração (Pokolenie, 1955), Kanal (1957) e Cinzas e Diamantes (Popiół i Diament 1958), os filmes da Trilogia da Guerra, traçam um panorama que vai do Levante de Varsóvia em 1944 (precedido pelo Levante do Gueto de Varsóvia pelos judeus e ao qual se faz referência nos filmes) até o imediato pós-guerra e as lutas pelo poder num país em ruínas.(imagem abaixo, à esquerda, Dorota maneja uma pistola com muito mais competência do que os homens; à direita, após esperar pelo filho noite adentro e cuidar de um ferimento no braço dele, a mãe de Stach cochila enquanto ele acompanha o som dos bombardeiros alemães com os olhos)
Uma mulher idealizada,
irreal. Uma mártir para servir
ao “partido stalinista”
Geração é uma adaptação da novela de propaganda stalinista de Bohdan Czeszko (1923-1988), acompanha o cotidiano de um grupo de jovens comunistas ligados a resistência armada que logo se organizou imediatamente após a derrota e a ocupação da Polônia pelos nazistas. Foi a estréia de Wajda como cineasta, ele próprio admite que o filme esteja repleto de referências neo-realistas da pobreza material reinante entre a população, a favela onde mora um dos protagonistas era real (2) - portanto, pode-se concluir que entre 1939 e 1955 pouco havia mudado, pelo menos para uma parcela da população. Ostrowska nos lembra que os historiadores do cinema polonês consideram Geração um híbrido entre o realismo socialista e um prenúncio das mudanças no cinema daquele país (3). Uma jovem apelidada de Dorota, membro experiente do Partido, chefia um grupo de quatro rapazes. De acordo com Ostrowska, Dorota é uma combinação da heroína romântica tipo mulher cavalheira e a figura da “Super Mulher” que emergiu da propaganda comunista. Isso fica aparente na cena da escola noturna aonde Stach irá pela primeira vez colocar os olhos em Dorota. Ela aparece uma noite para encorajar os alunos a entrar para a União da Juventude Lutadora. Inicialmente, ela surge numa imagem que a mostra de baixo para cima, imprimindo um aspecto monumental a sua figura. Efeito reforçado por sua mão levantada, Ostrowska notou, como na figura de Marianne em A Liberdade Guiando o Povo (Eugene Delacroix, 1830), ou nos cartazes de propaganda, ou ainda nas pinturas de realismo socialista. Dorota exalta o comunismo e a Polônia, desaparecendo a seguir.
A mãe de Stach
sofre antecipadamente,
porque ela sabe que a vida
de seu filho pertence à
luta pela Mãe Pátria
Stach, um dos alunos, fica muito interessado em se junta aos guerrilheiros – mas dá para notar que seu interesse é maior por aquela jovem mulher misteriosa e poderosa. Ele passa a procurá-la e até rouba uma arma para impressioná-la, embora Stach esconda sua intenção dizendo que fez isso para facilitar sua entrada na resistência. Já engajado no grupo como comandado dela, Stach a respeita como líder embora esteja secretamente apaixonado por ela. De acordo com Ostrowska, essa dificuldade dele em expressar seu sentimento à Dorota não seria apenas por causa da guerra e seus sacrifícios. Nas várias situações que permitiriam a Stach tocar no assunto com ela, o rapaz se intimida. Dorota percebe a “luta interna” dele e observa como uma mãe a seu filho. Ostrowska acredita que o fato de Stach ainda morar com a mãe demonstra a caráter infantil dele (4). Por outro lado, estamos no meio de uma guerra e não é tão simples “sair da casa dos pais e viver a vida”, valor burguês comum em tempo de paz. Ainda assim, Ostrowska insiste numa oposição entre imaturidade e maturidade, marcando a distância entre Dorota e Stach pelo fato dela morar sozinha e não haver referência a seus pais no filme. Ela é sempre apresentada como uma “mulher”, enquanto Stach e os três amigos que ele trás para a resistência são os “garotos”.
O Garoto e a Super Mulher
Em Geração, nenhum homem troca uma mulher por um cavalo (mesmo que seja uma égua, como em Lotna, filme que Wajda dirigiu em 1959), mas os comentários machistas estão presentes no filme. Logo no começo, quando Stach retorna para casa após a morte de um amigo (eles estavam roubando carvão de um trem nazista), sua mãe está assustada. Ele diz que vai ficar tudo bem, mas ela retruca dizendo que só vai ficar tudo bem quando ela estiver no túmulo. Nesses momentos iniciais, ouvimos a voz de Stach como narrador do filme: “Minha mãe era rígida e tentava me fazer trabalhar, mas para mim eram apenas resmungos de mulher”. Stach encontrou e roubou uma pistola em seu trabalho, mas tarde matará um oficial nazista que o havia surrado. O nazista está no bar passando a mão na perna de uma mulher (prostituta?) quando é morto com vários tiros – a mulher grita várias vezes. Mais tarde, os três amigos estão na casa de um deles e o pai acorda e diz: “a mulher gritou, você disse? Elas sempre gritam”. Também de acordo com Ostrowska, Mundek, interpretado por um jovem e futuramente muito famoso Roman Polański, marca a imaturidade do grupo pelo fato de ainda usar bermudas – embora, novamente se possa dizer que numa guerra é meio difícil usar o vestuário que a burguesia estabelece para cada faixa etária. (imagem acima, à esquerda, Stach e Dorota nem percebem onde foram parar!; abaixo, à direita, Stach teve de ficar no apartamento de Dorota por causa do toque de recolher...; à esquerda, a mãe de Stach o defende de pessoas que vieram buscar a pistola que ele roubou. São os dois homens que aparecem logo no início do vídeo abaixo)
A super mulher
é comunista-stalisnista,
enquanto a Polônia é
um rapaz infantil
Quando Stach apresenta Dorota (enquanto oficial da resistência polonesa) ao grupo de amigos que ele desejava trazer para a luta, percebe-se a falta de discrição quando ela pede para ver a arma. Um deles avisa para ela tomar cuidado, pois a pistola está carregada, e Mundek até dá uma risada. Dorota demonstra mais conhecimento que todos eles, pois desmonta a arma e avisa que está muito suja. Mais tarde, Stach fica preso no apartamento de Dorota, o toque de recolher o impede de voltar para a casa da mãe. Ela se mostra feliz porque Stach vai assumir o comando de um pelotão com novos jovens que se juntam à causa polonesa (no DVD lançado no Brasil as legendas dizem que é Dorota que assumirá o novo pelotão). Passam a noite juntos e finalmente Stach passa a ser “um homem”, a essa altura Dorota já havia revelado a ele seu nome verdadeiro – Eve. No dia seguinte, bem cedo, ele vai à mercearia. Ao voltar, assiste Eve sendo levada pela Gestapo. A seguir, Stach vai ao encontro dos novos recrutas da União da Juventude Lutadora. Entre eles há uma moça. Stach não se contém e chora. Na abertura do filme, há um homem tocando ocarina. Em Kanal, segunda parte da Trilogia da Guerra, um pianista fará o mesmo ao enlouquecer nos esgotos de Varsóvia.
Entre as certezas ideológicas
de Eve e a propensão para o
sacrifício da mãe de Stach, a
inexperiência dele poderia ser
uma metáfora da Polônia que
deseja a liberdade, mas
não sabe onde procurar
A feminilidade de Eve e a infantilidade de Stach são confrontadas e renegociadas na cena de seu último encontro no apartamento dela – que também é a única cena de amor no filme. Conversam sobre a necessidade dele se esconder, pois ele é conhecido pela Gestapo. Ela também avisa que ele irá comandar um grupo, o que o deixou espantado e com um olhar de agradecimento à Eve. Com um sorriso nos lábios, Eve diz que outros se referem a ele como brigão, mas que em sua opinião ele é só uma criança. Ao admitir que esteja com medo de levar um tiro e não vê-la novamente, Stach confirma sua vulnerabilidade e pela primeira vez revela seus sentimentos a Eve. Stach deita sua cabeça no braço de Eve de uma forma, sugere Ostrowska, usualmente associada à feminilidade, busca de proteção, ou consolo de uma figura masculina forte. A seguir, Stach a toma nos braços e se arqueia sobre ela, foi quando a moça revelou seu verdadeiro nome – e a também a feminilidade escondida por trás da guerrilheira comunista. Depois da prisão de Eve, quando Stach vai ao encontro do grupo que irá liderar, o que vê é quase uma cópia de seu passado recente – seu grupo era de três rapazes e uma moça, este tem dois “aspirantes a homem” a mais. “Logo eles serão iniciados no mundo do amor e morte, como ele experimentou. Sabendo disso, Stach chora em silêncio para a câmera e o espectador” (5). Como na seqüência de abertura de Geração, durante a cena final também ouvimos a melodia ao som da ocarina. Ostrowska esclareceu que o sacrifício é o aspecto mais constante da figura da Mãe Polonesa. Mas trata-se de um sacrifício que vai além sacrificar-se para os filhos. A Mãe Polonesa não apenas tem de sacrificar sua vida por seus filhos, mas também deverá sacrificar seus filhos pela liberdade da Pátria. Em outras palavras, conclui Ostrowska, ela deve inculcar em sua prole, independentemente de sexo, esta prontidão para o sacrifício (6). E essa representação da mãe ultrapassa a propaganda comunista, pois a luta da Polônia pela independência se estendeu por séculos. Os filmes da Trilogia da Guerra não podem ser interpretados a luz da posição atual da mulher na sociedade Ocidental.
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Notas:
1. OSTROWSKA, Eliżbieta. Caught Between Activity and Passivity: Women in The Polish School in MAZIERSKA, Eve; OSTROWSKA, Elżbieta. Women in Polish Cinema. New York: Berghahn Books, 2006. P. 75.
2. Afirmação de Wajda em Andrzej Wajda: Tornado-se um Cineasta (The Criterion Collection, 2005), nos extras do DVD de Geração, lançado no Brasil pela distribuidora Aurora DVD.
3. OSTROWSKA, Eliżbieta. Op. Cit., p. 77.
4. Idem, p. 78.
5. Ibidem, p. 79.
6. Ibidem, p. 38.