Talvez suas comédias tivessem capacidade de promover uma catarse
coletiva na plateia finlandesa (ou, pelo menos, no público masculino)
coletiva na plateia finlandesa (ou, pelo menos, no público masculino)
Risada Nórdica e Imagem Contraditória
A independência da Finlândia é recente, no passado pertenceu à Suécia, até 1917 era um satélite (oficialmente um grão-ducado) do Império Russo e, posteriormente, da União Soviética – depois veio uma guerra civil e a adesão aos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, aparentemente por ser a única maneira de se proteger do interesse soviético em reconquistá-la. Para manter boas relações com Stalin, a censura na Finlândia sempre foi mais direcionada aos temas políticos (1) (embora na época também banisse filmes em função de álcool, violência e sexo, mesmo que sua mera insinuação; isso mudará durante a década de 1960). Pode-se dizer que a comédia passou relativamente ilesa pelo crivo da censura, o que acabou por incentivar a representação do engajamento social e da autocrítica dos finlandeses através da indústria cinematográfica. Tytti Soila explica que a partir de meados dos anos 1960 houve um fluxo constante de comédias, basicamente realizadas pelo produtor, roteirista e comediante Pertti “Spede” Pasanen. Em 1967 ele fundou sua produtora, Filmituotanto Spede Pasanen, através da qual produzia e protagonizava suas próprias comédias, repletas de gags e situações absurdas. Seus filmes eram muito populares e lucrativos, mas impossíveis de serem compreendidos por plateias estrangeiras, já que fazem referência apenas a personagens da vida política e cultural da Finlândia. Através de uma produção de baixo orçamento durante os anos 1970, Pasanen apresentou Uuno Turhapuro, personagem que na opinião de Soila transgrediria todos os limites, com sua vulgaridade estudada e mau gosto. Estrelando o ator Vesa-Matti Loiri, Uuno gosta de cerveja, arrota, peida e fica deitado no sofá discutindo com a esposa (que o sustenta). Ainda segundo Soila, ele é tão ultrajante que, na tentativa de compreender seu sucesso de bilheteria, podemos talvez considerar que sirva como gatilho para um efeito catártico entre os finlandeses (2). (imagem acima, Uuno Turhapuro, o Presidente da República da Finlândia, Uuno Turhapuro, Suomen Tasavallan Presidentti, 1992; abaixo, Uuno Turhapuro no Exército, 1984)
Explorando um gênero antigo e popular, a farsa militar,
Uuno Turhapuro no Exército é o mais popular dos filmes
com o personagem. Entre 1984 e 1992 na Finlândia, os filmes
Uuno contavam oito em dez dos filmes mais populares
Uuno Turhapuro no Exército é o mais popular dos filmes
com o personagem. Entre 1984 e 1992 na Finlândia, os filmes
Uuno contavam oito em dez dos filmes mais populares
Uuno Turhapuro vive desarrumado, desalinhado, cabelo despenteado e barba por fazer, sujo, vestindo roupas rasgadas, esfarrapado, poucos dentes e bem separados, possui um rosto bizarro (porém conquistador irresistível para as mulheres), é comilão, preguiçoso, bêbado, fanfarrão, excessivo, engraçado, trapalhão. Hedonista e racional ao mesmo tempo, Uuno é contra a ética luterana finlandesa do trabalho. Mas quando deseja conquistar a vizinha loura ele vai se arrumar, à sua moda: óculos escuros, cabelos alisados e calção apertado. Quando Uuno deseja, pode milagrosamente se transformar num campeão de golfe, num toureio, especialista em borboletas raras ou rei da discoteca. Extremamente popular com as mulheres, Uuno mantém um casamento estável. Possui apenas a escola primária, mas pode se transformar em oficial do exército ou professor universitário. Se por um lado Turhapuro contribui para manter o mundo burguês (ao dedicar-se aos rituais, normas e valores que formatam esse mundo), pois ele não conhece nada diferente, por outro, seu comportamento o afasta de tais valores. Trai a lógica luterana finlandesa do trabalho, suor e lágrimas ao preferir o dinheiro da esposa, uma futura herança, loteria e se imiscuindo nos negócios do pai. Por outro lado, apesar de ser um garoto do interior que se mudou para a cidade e formou uma família burguesa, seus melhores amigos vêm da classe trabalhadora. Uuno transita num mundo sem fronteiras hierárquicas, seja de classe, de gênero, entre as gerações, assim como o mundo humano e o animal. Em Uuno Turhapuro Perde sua Memória (Uuno Turhapuro Menettää Muistinsa, 1982), ele acredita ser uma mulher. Em A Crise Marital de Uuno Turhapuro (Uuno Turhapuro Aviokriisi, 1981) ele se adapta ao mundo animal, desenvolvendo o olfato (3).
“(...) O mundo de Uuno pertence ao imaginário cultural da classe média finlandesa dos anos 1970 e 1980, e Uuno é finlandês somente na medida em que esse espaço imaginário pode ser visto como culturalmente específico. Nesse mundo imaginário de fantasia, sempre houve posições utópicas para heróis míticos cujo principal objetivo é questionar e incorporar os elementos básicos da masculinidade finlandesa, branca, de meia idade, tal como resistência, obstinação, timidez, incapacidade de demonstrar emoções, agressividade reprimida, inibição para falar e bebida alcoólica em excesso (que será substituída por comilança nos filmes de Uuno) (...)” (4) (imagem abaixo, Uuno vai à ginecologista, em Uuno Turhapuro Perde sua Memória, 1982)
“(...) Os filmes de Uuno seguem normas discursivas do corpo
grotesco [rabelaisiano]: aberto, múltiplo, comum, fragmentado
e desordenado. Inclusive, para caracterizá-los, as resenhas
dos filmes fazem referências a excremento e lixo” (5)
grotesco [rabelaisiano]: aberto, múltiplo, comum, fragmentado
e desordenado. Inclusive, para caracterizá-los, as resenhas
dos filmes fazem referências a excremento e lixo” (5)
No início dos anos 1970, época caracterizada por forte polarização política na Finlândia, um personagem cômico como Uuno não se encaixava em lugar nenhum, seja no realismo radical da esquerda jovem ou na busca da direita por temas para reforçar valores conservadores tradicionais. Quando a crise se instalou na indústria cinematográfica daquele país, a tendência de subsidiar com dinheiro público apenas obras consideradas moralmente edificantes dificultou em muito a vida de Turhapuro. Nessa hora, ele acaba adquirindo um sabor de contracultura, representando todos os filmes contra os quais luta a hegemonia cultural oficial. Os comentários da crítica de cinema, seja de esquerda ou de direita, são sempre negativos. Dizem que o comportamento de Uuno insulta o mau gosto, que os filmes são tecnicamente pobres, repetitivos, ilógicos e os personagens estereotipados. Uuno é rotulado como má influência, ensinando valores errados para as massas.
“(...) Pode-se perguntar [se o comportamento contraditório de Uuno] apenas representa incapacidade e impotência (isto é, seria Uuno apenas um uuno, um bobalhão?) ou um compromisso apaixonado e honrado em relação a uma coisa única (isto é, seria Uuno, uno, o número um?)”. Afinal de contas. Perguntas como estas podem mostrar que Uuno não apenas está contra a ordem e o controle social; ele também cria e segue seu próprio conjunto de dispositivos de controle e ordenamento. Uuno pode rapidamente adaptar novas circunstâncias a sua própria visão de mundo” (6)
O interesse do público infantil por Uuno Turhapuro
talvez resulte do fato de que ele parece representar
a lógica das crianças no mundo da realidade adulta (7)
talvez resulte do fato de que ele parece representar
a lógica das crianças no mundo da realidade adulta (7)
Unanimidade na Finlândia, o personagem Uuno Turhapuro quebrou praticamente todos os recordes de audiência desde que apareceu no primeiro longa-metragem em 1973, atravessando incólume todas as crises na produção nacional de cinema. Turhapuro foi criado por Pasanen para seu show de televisão no início dos anos 1970. Suas primeiras participações foram cenas curtas de comédia onde Uuno está deitado no sofá conversando com sua esposa. Durante as décadas de 1970 e 1980, chegando aos anos 2000 como uma série para televisão, esse herói ficcional interpretado por Vesa-Matti Loiri traduziu como poucos as ambivalências presentes nos valores culturais do país nórdico. Geralmente, cada país tem sua imagem em espelho num personagem contraditório que traduz significações incompletas transformando as fronteiras e limites da sociabilidade em espaços intermediários onde os valores da autoridade cultural e política são negociados. De acordo com Veijo Hietala, Ari Honka-Hallila, Hanna Kangasniemi, Martti Lahti, Kimmo Laine e Jukka Sihvonen, a “Unnolândia” não mantém ou subverte certos valores e nacionais específicos, mas os toma como um espaço intermediário onde o povo finlandês procura dar sentido à sua ambivalência cultural. Por tudo isso, Peter Cowie definiu Uuno Turhapuro como mais um desses personagens cômicos muito populares em determinado lugar que, justamente por conta disso, nunca fará sucesso fora dali:
“O mundo está repleto de cômicos cujo humor, como vinho suíço, não pode ser exportado. As piadas de Pasanen dependem muito dos temas, figuras e incidentes na vida finlandesa. Desta forma, o espectador estrangeiro pode ficar perplexo com a recepção do público em Helsinque ou nas cidades do interior; ainda mais intrigado, contudo, é a experiência de assistir sozinho a um vídeo de Pasanen. Então rir torna-se praticamente impossível para um não finlandês” (8) (imagem abaixo, Uuno Turhapuro no Exército, 1984)
O Homem Finlandês...
Alheio às regras e valores da sociedade adulta, Uuno Turhapuro
vive livre em sua Uunolândia, representação do abrigo onde
todos os homens finlandeses gostariam de se refugiar, longe
do mundo real e das então crescentes demandas do feminismo
vive livre em sua Uunolândia, representação do abrigo onde
todos os homens finlandeses gostariam de se refugiar, longe
do mundo real e das então crescentes demandas do feminismo
Embora seja fácil interpretar o caráter de Uuno como um questionador das oposições estruturantes da cultura, de acordo com a lógica da “Uunolândia” (que ignora o mundo exterior) sua permanência temporária nos limites das dicotomias parece estar mais a evidenciá-las do que questioná-las. De acordo com Veijo Hietala e seus colegas, as transgressões de Uuno aderem estritamente à diferença de gênero, e a masculinidade procura sua identidade incessantemente em vários limites. Em seus filmes, a feminilidade (sua esposa Elisabet) representa as forças repressoras da sociedade adulta civilizada (educação, sociabilidade, compromisso), das quais os homens tentam escapar através de suas fantasias. A esposa de Uuno é a norma da “normalidade” e responsabilidade, da qual ele espaça na direção dos reinos da infância ou da bestialidade. Se alguém disser que Uuno realiza a fantasia masculina do ser ativo enquanto a mulher é passiva, então podemos concluir que quando mistura o adulto com a criança talvez não seja uma transgressão, mas meramente a repetição de uma fantasia masculina (9).
“Na verdade, pode-se rastrear o nascimento do personagem Uuno lá nos discursos populares do início dos anos 1970, nos quais o homem finlandês foi cada vez mais criticado, especialmente nas revistas femininas. O homem finlandês pode comportar-se de forma cavalheiresca na fase de namoro, mas, depois do casamento logo se transforma numa batata de sofá preguiçosa, desarrumada e bebedora de cerveja. O primeiro filme de Uuno exibe essa transformação logo no início. Limpo, barbeado e vestido apropriadamente, Uuno é visto com Elisabeth no altar e a cerimônia é concluída. Na próxima cena, depois dos créditos de abertura que se seguem, vemos a figura ‘Uunoizada’ de Uuno deitada no sofá, bebendo cerveja e discutindo amigavelmente com sua esposa, que reprova sua mudança de aspecto e hábitos. Além disso, os discursos populares dos anos 1970 descreviam o homem finlandês como um péssimo amante sem romantismo que não sabe conversar com mulheres – se ele conversar -, quando comparado aos apaixonados machos latinos, agora familiares como resultado da crescente popularidade dos pacotes de férias no Mediterrâneo. Contra estes discursos, o personagem Uuno pode ser visto como um contra-ataque masculino onde o potencial escondido do macho finlandês foi revelado, e, ao mesmo tempo, como uma fantasia masculina regressiva em defesa contra as crescentes demandas por igualdade sexual e direito das mulheres, a partir dos anos 1970 em diante” (10) (imagem abaixo, Uuno Turhapuro na Espanha, Uuno Epsanjassa, 1985)
Uuno representa a fantasia masculina do super-
herói oculto sob o disfarce do homem comum
Mesmo desarrumado, quando é necessário Uuno pode conquistar qualquer mulher que desejar. Evita a rotina do trabalho diário, mas seus recursos são infinitos quando o assunto é fazer dinheiro ou subir na escala social. Pode ser uma batata de sofá, mas é um virtuoso em muitos campos, esportes, cozinha e artes. Veijo e seus colegas comparam Uuno ao personagem Clark Kent, o repórter de visual comum que esconde um super-homem. Veijo faz uma rápida comparação de Uuno com o personagem cômico inglês de quadrinhos Andy Capp, versão do homem comum – o boné que sempre lhe cobre os olhos pode ser um indicativo de sua visão de mundo. Pelo menos do ponto de vista dos produtores dos filmes, sugeriu Veijo, o personagem foi desenhado para caricaturar os valores do homem finlandês médio. Ele é desarrumado, preguiçoso (num filme antigo, Uuno nem reconhecia a palavra “trabalho”), ama comida, cochila frequentemente com mulheres bonitas e no sofá. Frequentemente sua esposa tenta força-lo a procurar emprego e a não comer todo o conteúdo da geladeira. Tudo isso é levado ao extremo nos filmes. Contudo, enquanto Andy Capp está feliz com a bebida, os bares e o futebol, Uuno é mais empreendedor em escapar do controle doméstico e envolver-se coma carreira pública de seu sogro, a quem frequentemente ele humilha em público.
“As perversidades do comportamento racional e/ou irracional podem produzir riso apenas na medida em que não insultam um pretenso senso comum. E esse senso comum tem sido tradicionalmente bastante definido em sociedades tribais como a Finlândia. Uuno Turhapuro no Exército (Uuno Turhapuroi Armeijan Leivissä, direção Ere Kokkonen, 1984) é um bom exemplo disso: podemos ler a imagem do sistema militar como uma imagem miniaturizada da sociedade finlandesa em geral. Portanto de certo modo os filmes de Uuno são conservadores: sua transgressão ainda é governada pelo imaginário do senso comum. Ao mesmo tempo, no processo eles enfatizam os extremos desse senso comum finlandês dos anos 1970 e 1980, subvertem suas várias formas, ou pelo menos oferecem possibilidades de subversão ao espectador. Em geral, o segredo do sucesso de Uuno pode estar na manutenção especializada da ambivalência dessa simbiose cultural e historicamente característica entre conservadorismo e subversão” (11)
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Notas:
1. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Images Interdites. Paris: Quadrige/PUF, 2001. P. 182.
2. SOILA, Tytti. Finland. In: IVERSEN, Gunnar; WIDDING, Astrid Söderbergh; SOILA, Tytti. Nordic National Cinemas. London: Routledge, 1998. Pp. 68, 91.
3. HIETALA, Veijo; HONKA-HALLILA, Ari; Kangasniemi; LAHTI, Martti; LAINE, Kimmo; SIHVONEN, Jukka. The Finn-Between. Uuno Turhapuro, Finland’s Greatest Star. In: DYER, Richard; VINCENDEAU, Ginette (orgs.). Popular European Cinema. London/New York: Routledge, 1992. Pp. 126-8 133-4.
4. Idem, p. 139.
5. Ibidem, p. 138.
6. Ibidem, pp. 128-9.
7. Ibidem, p. 134.
8. Ibidem, p. 127.
9. Ibidem, pp. 135-6.
10. Ibidem.
11. Ibidem, p. 139.