"Ao lado do fascismo dos campos
de concentração, que continuam a existir
em muitos países, novas formas de fascismo
estão se desenvolvendo: um fascismo de fogo
baixo, na família, na escola, no racismo, em
todo tipo de gueto, que compensa os fornos
crematórios de forma vantajosa.(...) Nós temos
que abandonar, de uma vez por todas, a
fórmula rápida e fácil: 'O Fascismo não vai
acontecer novamente'. O fascismo sempre
fez sucesso, e continua a fazer"
Felix Guattari
Todo mundo quer ser um Fascista
Senta Que Lá Vem a História
Robert e Carol Reimer colocam a história não centro da problemática de seu conceito de filme Nazi-Retrô (1). Antes de continuar, um lembrete, sabemos que existem estórias e histórias. No primeiro caso, elas são ficcionais. No segundo, trata-se de fatos realmente acontecidos. Os Reimer estão falando da História e não da Estória. Ainda melhor, estão falando de como História e Estória podem interagir nos filmes de forma às vezes problemática para a primeira. (imagem acima, cartaz do polêmico filme de Constantin Costa-Gavras. Amém vem na esteira de vários livros que questionam a verdadeira relação entre o Vaticano e o Nazismo, sugerindo que a Santa Sé, de uma forma ou de outra, colaborou na perseguição aos judeus - que aliás sempre foram perseguidos pela igreja católica. Quando de seu lançamento em 2002, o cartaz do filme, que mistura a suástica nazista e a cruz dos católicos, chegou a ser proibido na França)
Nos filmes Nazi-Retrô, a história é apresentada ao mesmo tempo como pano de fundo e algo bem próximo do espectador. Enquanto pano de fundo, com figuras históricas e acontecimentos importantes, a história cria a atmosfera dos filmes e permite que os espectadores se orientem durante a narrativa – eles podem dizer, “eu conheço essa época, eu conheço esse lugar”.



Os Reimer citam dois filmes como exemplo. Em O Barco, Inferno no Mar (Das Boot, 1981), dirigido por Wolfgang Petersen, a platéia enxergou um filme que, ao mesmo tempo que condena a guerra, glorifica as virtudes que levam a ela. Em Lili Marlene (1980), dirigido por Rainer Werner Fassbinder, a protagonista pode ser vista pelos espectadores tanto como uma oportunista quanto uma heroína moderna.
Espelho, Espelho Meu...

“Em outras palavras, por tornar a platéia uma parte do sistema e aí então induzir a platéia a julgá-lo, os filmes Nazi-Retrô fornecem um veículo para compreender a atração de sistemas que os espectadores poderiam de outra forma achar abomináveis. Os filmes Nazi-Retrô ajudam os espectadores a experimentar como é fácil sucumbir aos valores do Nazismo, como é fácil fazer vistas grossas ou ignorar os perigos num sistema político. Pelo fato de os espectadores terem se identificado com os heróis e heroínas desses filmes, o julgamento que fazem reflete de volta neles. No final do filme, a platéia é deixada com uma importante pergunta: teriam agido de forma diferente?” (5) (imagem acima, O Barco, Inferno no Mar)
Os filmes Nazi-Retrô são como um espelho que permite aos espectadores se enxergar nos personagens e, ao mesmo tempo, permitir que eles reconheçam que esses personagens são uma imagem virtual, colocada diante deles para julgamento. A reflexão permite as platéias alemãs perceberem que estão se identificando com personagens que apoiaram um regime cujas ações foram universalmente julgadas como imorais. Desta forma, a platéia pode se enxergar nos personagens e compreender porque fizeram o que fizeram. Por outro lado, os espectadores estão livres para julgar (como todos podem julgar a si mesmos diante do espelho) as ações dos personagens à luz daquilo que esses espectadores conhecem sobre o Nazismo e o Terceiro Reich.
A Verdade Histórica

Seja qual for o foco de um filme Nazi-Retrô, ele é transformado para além de sua referência histórica, em algo que irá atrair as platéias, algo mais adaptável à narrativa cinematográfica: filmes sobre a resistência tornam-se filmes de espião; aqueles sobre campo de batalha apresentam companheiros de guerra; aqueles sobre perseguição aos judeus tornam-se filmes sobre martírio. Assistindo os filmes Nazi-Retrô, ficasse com a impressão de que toda família alemã tinha um amigo judeu para salvar. Ao fazer uso de convenções fílmicas (suspense, estereótipo e sentimentalismo) e temas cinematográficos (heroísmo de guerra, vontade invencível, resistência corajosa), os filmes Nazi-Retrô se permitem ser criticados por trivializar o passado e distorcer a verdade (6).


Enquanto espelho, a tela reflete a artificialidade da imagem virtual de volta para o espectador; enquanto uma janela, ela sugere para os espectadores que o que eles viram nela é a forma como as coisas realmente aconteceram (7).
De igual importância em levar a platéia alemã a produzir julgamentos críticos é o grau em que os filmes mostram os personagens com o controle de sua própria vida. As narrativas sempre mostram personagens fazendo escolhas em suas vidas em função de situações ameaçadoras. O problema é que geralmente os filmes são vagos em relação a essas situações. Em filmes que mostram o dia-a-dia como algo normal durante o Terceiro Reich, isso pode levar o espectador a ver o Nazismo apenas como parte do cenário.
A predisposição da platéia também se constitui num importante elemento de estímulo ao pensamento crítico. Supõe-se que o espectador dos filmes Nazi-Retrô tenham suficiente conhecimento do Nazismo e seus efeitos na história para poder julgar o que vê na tela. Por exemplo, quando A Ponte (Die Brücke, direção Bernhard Wicki, 1959) foi lançado na América do Sul, recebeu o título E o Bravo Morre Sozinho (8). Isso sugere que os distribuidores viram a platéia potencial como aquela de um filme de guerra tradicional e não uma para um filme antifascista. A mensagem antifascista desse filme só aparece para os espectadores que sabem que os jovens que morreram o fizeram a serviço de Hitler.
Afinal, Para Que Sevem Esses Filmes?
Tenha sido feito um ano depois do final da Segunda Guerra Mundial ou 45 anos depois, os filmes Nazi-Retrô dão às platéias um mundo que pede para ser julgado. Os primeiros, chamados de “filme de ruína” (Trümmerfilme), chegam quando as memórias da guerra ainda estão frescas na mente da platéia. Esses filmes eram parte da política de desnazificação da população criada pelos exércitos Aliados, que incluía o comparecimento forçado aos cinemas para o povo alemão assistir a documentários sobre as atrocidades dos Nazistas. Os deslocamentos físicos e psíquicos experimentados pelos alemães se tornaram o foco desses filmes, que não permitiam que a população alemã escapasse para um mundo de fantasia na tela do cinema.
Afinal, Para Que Sevem Esses Filmes?

Os filmes de ruínas eram realizados, como seu nome indica, entre as crateras de bombas e tijolos espalhados. Lembrando o Neo-Realismo italiano, esses filmes refletiam esse mundo destruído de volta para a platéia e perguntavam “como isso aconteceu?” Perguntavam também aos espectadores como eles viverão com o que aconteceu. Às vezes os filmes falavam dos crimes de guerra, menos freqüente eram aqueles que tocavam no assunto da responsabilidade pelo ocorrido. Sua função principal era auxiliar a população a lidar com o presente que o passado produziu. Apenas que forma secundária eles procuravam ajudar a população a lidar com o passado em si mesmo. Contudo, os filmes eram estruturados para induzir os espectadores, enquanto reconstruiam seu mundo, a julgar as escolhas que os personagens fizeram (9). (imagem acima, O Casamento de Maria Braun, direção R. W. Fassbinder, 1979)

Se os filmes de ruínas separaram os alemães dos Nazistas, os filmes da década de 50 separavam os militares em relação ao governo. Essa nova leva de filmes chega numa época em que a Alemanha Ocidental, por força da Guerra Fria que já se havia instalado, era forçada a se rearmar e alinhar com a Otan. Portanto, os filmes faziam uma apologia dos militares, numa tentativa de fazer a população, que havia acabado de ver seu país destruído por uma guerra, apoiar o rearmamento. Fassbinder mostrou esse momento em O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1979). Enquanto isso, na Alemanha Oriental, os filmes enfatizavam a vitória do Comunismo sobre o Nazismo. (abaixo, O Último Metrô, direção François Truffaut, 1980)
Uma coisa todos esses filmes fizeram, iniciaram um diálogo com a platéia. Eles pediram aos espectadores para determinar quem foi responsável pelo que aconteceu e até que ponto essa culpa pode ser de todos os alemães. Esses filmes também perguntam se o Nazismo foi um movimento aberrante que agarrou a psique alemã por um curto período de tempo ou se ainda está presente nas instituições, podendo levantar-se a qualquer momento novamente. De qualquer forma, um exercício sadio de reflexão a respeito de seu próprio país. Um exemplo que deveria ser seguido pela cinematografia de alguns outros países aparentemente sem memória em relação a seu passado e, por isso, talvez sem futuro.
Leia também:
O Cinema e o Passado: O Caso do III Reich (I), (II)
Notas:
1. REIMER, Robert & Carol J. Nazi-Retro. How German Narrative Cinema Remembers the Past. New York: Twayne Publishers, 1992.
2. Estação de rádio Gleiwitz, em 1939 os alemães forjaram um ataque a estação de rádio Sender Gleiwitz, que naquela época estava em território alemão – após a guerra passa a fazer parte da Polônia. O ataque tinha como objetivo sugerir que a ação havia sido realizada pelos poloneses, justificando assim a invasão da Polônia pelos exércitos de Hitler. Começa oficialmente a Segunda Guerra Mundial. Sudetos, região na fronteira entre Alemanha e atual República Tcheca. Baseado na numerosa população de origem alemã desta região, Hitler anexou a área em 1938 sem precisar dar um tiro. No final da Segunda Guerra, essa população alemã foi expulsão da ex-Tchecoslováquia, criando entraves para a normalização das relações com a Alemanha que duram até hoje.
3. Stalingrado, nome da cidade russa palco de uma das maiores batalhas da Segunda Guerra Mundial. Palco da primeira grande derrota dos exércitos de Hitler na frente russa.
4. REIMER, Robert & Carol J. op. Cit., p. 7.
5. Idem, p. 8.
6. Ibidem, p. 9.
7. Ibidem, p. 10.
8. A Ponte foi considerado um dos filmes mais brutais e também um dos maiores exemplos de filme anti-guerra. Aparentemente, no Brasil, este filme teve seu título reconstituído para o original A Ponte. Infelizmente, não consegui descobrir em que ano isso foi corrigido.
9. REIMER, Robert & Carol J. op. Cit., p. 11.
10. Idem, p. 12.