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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

29 de ago. de 2008

Conexão Nibelungos: O Caso Fritz Lang (Epílogo)


A Dramaturgia das Aparências

Fritz Lang contrapõe sua forma de montar Os Nibelungos com aquela empregada por Hollywood. Segundo Lang, os americanos estavam mais interessados em efeitos especiais, enquanto ele mira na tradição cultural do povo alemão. Lang acreditava ser mais atento ao universal do que os filmes épicos produzidos por Hollywood. Ele queria ocupar o espaço entre a cultura e as massas alemãs (1). A aposta de Hollywood nas temáticas universais falharia por visar mais o mercado do que a cultura. Seria também neste sentido que Os Nibelungos de Lang se destaca em relação aos outros remakes dos Nibelungos, pois existiu uma preocupação em não banalizar o aspecto espiritual-sagrado de uma obra que fala mais ao espírito do povo do que a um grupo seleto de escolhidos. Lang não queria um filme elitista.

O filme gira em torno de uma “dramaturgia da visão”: os personagens transparecem o que são. Incorporada aí está uma alegoria do poder. Desta forma Siegfried, que é o herói poderoso, morre apesar disso, porque ele não “parece” inteligente. Hagen tem um olhar moderado e perspicaz em relação à vida, enquanto o olhar de Siegfried é entusiasmado e ingênuo. Hagen, que tem apenas um olho, é o personagem que enxerga mais longe. Alberich, que deseja matar Siegfried. Mime é o oposto de Siegfried – detalhe que é marcado visualmente, pois Mime entra na classificação de grotesco. Kriemhild e ele se apaixonam a primeira vista. Com o assassinato de Siegfried, Kriemhild passa do visual de doce donzela à vingativa, controladora, com um olhar fálico – um olhar masculino (2).

Siegfried têm uma visão de Kriemhild, mas essa visão nem é sua – trata-se de um relato que ele ouviu. Esta atitude caracteriza sua pureza e a nostalgia por uma época menos complicada – coisas que a Alemanha havia perdido depois da Primeira Guerra Mundial. Siegfried morrerá em função das maquinações de Hagen. Enquanto Siegfried é transparente, ingênuo e exuberante, Hagen é seu oposto, misterioso, calculista e contido. Duas cenas onde a utilização da visão pode expressar conteúdo. 1) Com um olhar penetrante, Hagen desaprova Siegfried, que não percebe o que está acontecendo – essa diferença de ponto de vista será fatal para ele; 2) Kriemhild e Siegfried, que se apaixonaram apenas pela imagem de cada um, se vêem pela primeira vez.


No segundo caso, o papel dos contadores de estória foi crucial. Aqui o filme coloca a si mesmo nessa tradição de contadores, criando uma imagem para a imagem deles. Hagen aparece como fora de moda, porém perspicaz, enquanto Siegfried aparece com uma forma moderna, porém ingênua (3). (Imagens. No início do artigo, Siegfried bebe da taça de boas vindas oferecida por Kriemhild em Worms; abaixo, à direita, ela olha enquanto ele bebe; abaixo, à esquerda, Brunhild se protege a espera da lança que será atirada por Gunther; abaixo, à direita, Hagen protesta quando Siegfried pede a mão de kriemhild; ao lado, Gunther se prepara para jogar uma lança em Brunhild, ajudado durante todo o duelo com Brunhild por Siegfried, que está invisível)


Hagen percebe a ingenuidade de Siegfried, vulnerabilidade que caracteriza o modo de visão deste herói. Como na cena em que, ao ver Kriemhild pela primeira vez, Siegfried baixa sua espada, preferindo amor à guerra, expressando a vulnerabilidade masculina frente ao desejo. Hagen é como uma fortaleza psíquica masculina. Inicialmente subordinada à posição de “quadro bonitinho”, que distrai o olhar de Siegfried, Kriemhild vai mudando ao longo do filme. Ela passa de um objeto bom (na 1ª parte do filme, A Morte de Siegfried, ela está sempre de branco) para um objeto mal (na 2ª parte, A Vingança de Kriemhild, ela está sempre de preto). (imagem ao lado, o castelo de Brunhild, cercado pelo mar de fogo que será apagado por Siegfried)


Siegfried entra em acordo com Gunther e Hagen, no sentido ajuda o primeiro a derrotar Brunhild, que representa o matriarcado desafiando o poder masculino. Ou Siegfried ajuda Hagen e Gunther, ou não lhe será permitido casar-se com Kriemhild. Nesta empreitada, Siegfried utilizará o manto obtido de Alberich, rei dos Nibelungos. Esta capa tornará o herói invisível, permitindo que ele ajude Gunther secretamente durante a batalha. Temos aqui a questão da visibilidade do poder (4). A cena da batalha entre Gunther/Siegfried e Brunhild está repleta de ameaças de castração: as espadas, as armas quebradas e lanças atingindo os escudos das mulheres do exército de Brunhild. (ao lado, Brunhild chega a Worms)


A invisibilidade de Siegfried, por outro lado, ilustra a hipótese lacaniana: a invisibilidade do herói ilustra a afirmação de que o pênis só poderá desempenhar seu papel coberto/escondido (5). Ainda que se possa afirmar que Siegfried resgata o falo para os homens ameaçados pela vagina de Brunhild, não se deve esquecer que Siegfried está com seu falo “por trás” de Gunther. Este, por sua vez, não consegue por seus próprios meios derrotar a reivindicação de Brunhild pelo poder fálico. Será, portanto, pelas costas de Gunther que o invisível Siegfried o ajudará a derrotar Brunhild, assim como será nas costas de Siegfried que cairá a folha que marcará o ponto fraco do herói – e será justamente aí que Hagen o atingirá mortalmente.


Na cena do barco, que, entre outros exemplos que poderiam ser citados, guarda algumas diferenças em relação ao épico dos Nibelungos descrito nos textos da mitologia germânica, apenas Hagen testemunha a incapacidade de Gunther em “dobrar” Brunhild. Em certo momento, quando Gunther tentar levar Brunhild para terra firme, ela o empurra e ele acaba caindo no chão. Então, ela diz, “foi você o homem que me derrotou três vezes em batalha?” Mais tarde, no castelo, é Siegfried disfarçado de Gunther que vai para o leito nupcial com Brunhild. (imagens acima e ao lado, momento que Alberich mostra algo a Siegfried através de uma imagem criada na rocha. Fica evidente a surpresa do herói em relação ao mundo da imagem - quando ele vai procurar a coroa na rocha depois que ela sumiu)

A relação entre Hagen e Siegfried é uma alegoria criada por Lang, e sua esposa e roteirista do filme Thea von Harbou, onde o primeiro representa a indústria cinematográfica americana (ou em relação ao filme estrangeiro em geral) e o segundo representa a ingenuidade do público alemão da época em relação à “Hagen”. Siegfried é o protótipo do herói alemão. Mais especificamente, do herói alemão imperfeito. Heroísmo e imperfeição são exatamente as qualidades que estavam atraindo o público alemão para os filmes americanos: ele é rápido, corajoso, ousado, aventureiro, romântico. O confronto com Alberich na caverna mostra como, em sua imperfeição, ele não tem controle sobre seus poderes mágicos (6).


Dentro da caverna, a caminho do tesouro, que Alberich pretende que Siegfried aceite em troca de sua vida, temos a cena da imagem da coroa projetada na parede. Através de sua bola de cristal, Alberich faz surgir uma imagem na parede da caverna. Siegfried pode ver ali a construção de uma gigantesca coroa cravejada de pedras preciosas. Quando a imagem desaparece, Siegfried tateia a rocha a procura da coroa. Ele parece acordar de um sonho. A alegoria mostra o herói, pela segunda vez no filme, como um espectador ingênuo. Na primeira vez que ele agiu da mesma forma, ainda nas cenas inicias do filme, ao sair da caverna de Mime onde acabara de fabricar uma espada, Siegfried fica hipnotizado pela imagem de Kriemhild que vem a sua mente através da estória contada por alguém (7).

No tesouro que Alberich lhe oferece está Balmung. Trata-se de uma poderosa espada, cuja pose Siegfried comemora como se já não tivesse uma outra poderosa espada. Deixa de comemorar a pose do manto de invisibilidade, além de nem se dar conta da bola de cristal que deixa para trás. Assim procedendo, Siegfried abre mão de se tornar senhor da imagem de cinema. O herói poderia ter passado de alguém diante da câmera para alguém que se apropria dela. O que significa isso, dada a preocupação de Lang com a visão? (8) (imagem acima, Brunhild envenena Gunther contra Siegfried, convencendo-o de que o herói tirou sua virgindade; ao lado, Kriemhild e Siegfried. Ela pressente o perigo, mas não sabe que o destino do herói foi selado quando ela revelou a Hagen o ponto fraco no corpo de Siegfried)

Tirando Hagen, tanto Gunther quanto Siegfried representariam na tela o que os espectadores alemães seriam na platéia: incapazes de perceber o poder da imagem. A roteirista Thea von Harbou afirmou que os “olhos alemães” não são mais o que eram antes de meados da década de 20 do século 20. Lang e Harbou acusaram a literatura e o teatro de não conseguirem ter acesso à imaginação das pessoas. Somente o cinema seria capaz disso – especialmente este filme. Segundo Harbou, o povo alemão estava com os olhos cansados. Este filme, ela acreditava, lhes traria uma imagem pronta da aventura que almejam, mas não faria isso tentando enganá-los como fariam os produtos de Hollywood. O povo alemão, para quem Lang dedica o filme, irá perceber o perigo de perder o controle da produção visual (9).

Harbou apresenta Os Nibelungos como uma oferenda de recitação de um épico nacional. Ela não pretendeu que o filme ocupasse apenas a imaginação visual. “Assumindo o papel de cantor e poeta, deveria tornar-se um porta-voz visual para o povo alemão”. Alberich é mau, Hagen também parece, entretanto será celebrado na 2ª parte (A Vingança de Kriemhild). Hagen incorpora a lealdade incondicional a seu senhor. Ele parece fora de moda, mas é a encarnação dos valores alemães mais antigos. A fórmula hollywoodiana de “tela encantadora” é inútil aqui: os valores antigos alemães recusam dobrar-se ao encanto. Hagen parece imundo, misterioso e sinistro. (imagem acima, Siegfried é atingido pela lança de Hagen exatamente no único ponto vulnerável de seu corpo)

“O verdadeiro herói alemão faz o que tem de fazer, independente do fato de não parecer bom fazendo isso – de fato, ele pode não parecer bom de forma alguma” (10): este será o papel de Hagen frente à vulnerabilidade de Siegfried...

“(...) Alberich e sua bola de cristal marcam sua vulnerabilidade fílmica, expressando o interesse ingênuo de Siegfried na imagem [na parede da caverna] e sua falta de interesse em conseguir o controle sobre sua produção. Como eu sugeri, os dois estão relacionados: enquanto um espectador ingênuo ele se mostra facilmente manipulável pela visão mais forte e experiente de Hagen; ignorando a bola de cristal, ele cede o controle sobre a produção da imagem – e com isto sua vida – à Hagen. Como um observador impiedoso e astuto, Hagen enxerga através dos poderes de Siegfried e os manipula com duro propósito – de fato, com o duro propósito do novo cinema nacional”. (11) (ao lado, Kriemhild acorda com maus pressentimentos e acaba encontrando o corpo de Siegfried)

Se um herói louro faz o cinema alemão marcar um ponto em Hollywood, o que conta no final não é o visual, mas as proezas e a dedicação. Desta forma ele fortifica seu próprio território afetivo, ao invés de lutar para superar Hollywood utilizando as armas deles. Os Nibelungos estaria a sugerir que deveríamos abandonar a ingenuidade e encanto sedutor de Siegfried (reiterado pela relação ingênua dele com a imagem) em nome da menos atraente (porque mais antiga) das virtudes nacionais alemãs: distanciamento crítico e forte, inquestionável e rígida lealdade. (imagem acima, à direita, Siegfried percebe que Hagen é o culpado, mas não consegue reagir e morre aos seus pés; acima, Kriemhild acorda com um pressentimento e acaba encontrando o corpo sem vida de seu herói)

Thea von Harbou afirmou que o filme deveria trazer ao povo alemão um hino de lealdade incondicional. Uma lealdade à visão dessa lealdade. Hagen é aquele que personifica a fidelidade à visão que ele incorporou. Ao matar Siegfried, Hagen tira do caminho um meio-irmão todo-poderoso atraente, encantador e ingênuo. Um meio-irmão que ganha seus poderes de invisibilidade de uma fonte problemática (Alberich) e depois fica muito desejoso em colocar tais poderes à disposição de alguém mais poderoso. (imagem acima, a última lembrança que Kriemhild tem de Siegfried. Nas três imagens seguintes, podemos ver como essa lembrança vai se apagando e se transformando na imagem da morte)
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“Assim que Siegfried ganha a batalha ele perde a guerra: vencendo Alberich, ele ganha acesso ao poder [...], mas falha em reconhecer que fez isso e, dessa forma, falha em capitalizar sobre a situação. Ao mesmo tempo, as qualidades que fazem dele desejável enquanto um herói da tela – seu espírito de romance e aventura, sua desatenção, sua ingenuidade – contribuíram para sua ruína. Hagen é capaz de manipular os dois – os traços de caráter de Siegfried e seus poderes sobre a aparência. No processo, a visão que Hagen incorpora – que é ao mesmo tempo uma visão do personagem e uma visão do cinema – é vitoriosa. E a derrota de Hollywood é a vitória da Alemanha; quanto aos Nibelungos, assim como Os Nibelungos, supõe-se que continuem verdadeiros até o amargo final”. (12)

Os Nibelungos Depois do III Reich

No caso das versões de Richard Wagner e Fritz Lang, temos um Siegfried rachado. No filme de Lang, a relação do herói com a visão e com as tecnologias visuais dramatiza uma rachadura na cultura cinematográfica alemã na década de 20 do século 20. A rachadura representa a falta que assombra o filme. A rejeição, nos trabalhos de Lang e Wagner, produz um “objeto ruim”: o judeu. Este objeto ruim incorpora as práticas de estética ruim às quais as duas obras procuram renunciar. O judeu, aqui, materializa posições estéticas amorfas e indesejáveis. Levin acredita que não é suficiente buscar a agressão no nível do conteúdo, devemos chegar ao nível estético. (imagem ao lado, a natureza, antes exuberante na árvore que abrigava os pássaros que Siegfried compreendia, agora é o signo da morte)

No Anel dos Nibelungos, de Wagner, o judeu Mime incorpora a narração de má-fé. Em Os Nibelungos, de Lang, o judeu Alberich é aquele que controla a produção visual. Com que objetivo Alberich/Hollywood controlaria a produção de imagens? A morte de Alberich não resolve o problema. Tanto em Wagner quanto em Lang, a estética ruim residual se mantém e até contribui para morte do herói. Nas duas obras, Siegfried está subordinado a essa “estética ruim”, e o judeu é apresentado como a figura que exerce controle sobre ela (13). (imagem ao lado, lentamente Kriemhild vai percebendo como sua vontade de proteger seu herói foi manipulada. Ela toca o ferimento, que é também o mesmo ponto que marcou a pedido de Hagen. A ingenuidade de Kriemhild muda o destino de Siegfried)

Siegfried é um herói, digamos, sem capacidade! Vítima de sua imperícia em controlar os meios de produção visual, ele não controla a produção da própria imagem. Na opinião de Lang, a ingenuidade do herói em relação à imagem, evidente em seu contato com Alberich e Hagen, prefigura a ingenuidade do espectador alemão da década de 20 do século 20 em relação ao cinema estrangeiro – como vimos, especialmente aquele produzido por Hollywood. É como se, para sermos vistos como heróis, tivéssemos que nos deixar ser... controlados. Preferimos ser vistos como um “objeto bom”, não importando se para isso acabemos nos transformando em “objetos dos outros”. (imagem ao lado, agora menos ingênua, Kriemhild levanta os olhos na direção de Hagen Tronje)

Tempos depois, o Siegfried de Fritz Lang se tornará o Siegfried de Adolf Hitler. Após o holocausto do Nacional Socialismo na Alemanha nazista, a fantasia de um judeu controlando os meios de representação desapareceu naquele país. Tudo foi proibido e a noção de uma figura puxando as cordas como se as pessoas fossem suas marionetes deu lugar a um sentido amorfo de representação. Como um tipo de força complexa e anônima, uma teia discursiva. Entretanto, a pergunta sobre quem controla essa situação continua sendo colocada. (imagem ao lado, iluminada pela razão nos últimos 15 minutos do filme, Kriemhild aponta na direção de Hagen e o acusa pela morte de Siegfried. Mas agora é tarde demais. Todos, principalmente Gunther, se colocam ao lado e na frente de Hagen, demonstrando a quem eles são leais)

Notas:

1. LEVIN, David J. Richard Wagner, Fritz Lang, and The Nibelungen. The Dramaturgy of Disavowal. Princeton University Press: USA, 1998. Pp. 96-7.
2. Idem, pp. 100-1.
3. Ibidem, p. 104.
4. Ibidem, p. 109.
5. Ibidem, p. 110.
6. Ibidem, p. 117.
7. Ibidem p. 121.
8. Ibidem p. 128.
9. Ibidem, pp. 130-1.
10. Ibidem, pp. 132 e 137.
11. Ibidem, p. 138.
12. Ibidem, p. 140.
13. Ibidem, p. 144.

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