“Lang reconfigura
o trauma da guerra
perdida como uma
desesperada revolta
do Idealismo alemão
contra a carnificina
da era industrial” (1)
Acreditar não Custa Nada!
Freder é o filho alienado de Fredersen, o grande industrial de Metropolis, uma cidade do futuro onde só se vê alta tecnologia e divertimento. Porém, nos subterrâneos as linhas de montagem transformam trabalhadores em escravos. Rotwang, cientista e místico que se coloca à disposição de Fredersen, mostra um robô que criou - uma primeira versão do homem máquina que ele pretende construir. Certo dia Maria, acompanhada de um grupo de filhos desses escravos, adentra uma espécie de jardim do éden onde a classe abastada se diverte. Freder fica instantaneamente fascinado pela mulher e desce ao subterrâneo atrás dela. Disfarçado de operário, ele toma o lugar de um trabalhador e acaba se infiltrando numa assembléia secreta (num local cheio de crucifixos e que sugere as catacumbas onde se reuniam os primeiros cristãos em Roma) onde os oprimidos discutem como se libertar dessa escravidão – escondidos, Fredersen e Rotwang acompanham tudo. Maria fala sobre a lenda da Torre de Babel e sugere que é necessário um mediador entre as mãos (os trabalhadores) e a cabeça (o capitalista) – esse mediador deve ser o coração. Freder se sente predestinado e assume esse papel.(imagem acima, Rotwang persegue Maria, ele pretende sugar a energia dela para "alimentar" Maria-robô)
Freder, o filho rico que abandonou a balada e foi
humanizar os métodos
de gestão do pai industrial
humanizar os métodos
de gestão do pai industrial
Mas Fredersen ordena que Rotwang faça seu robô à imagem de Maria para que ele possa semear a discórdia entre os trabalhadores e desacreditar a mulher. Rotwang não avisa a Fredersen que seu filho pretende ser o mediador e conspira contra o industrial – Rotwang também tem questões pessoais que o fazem desejar a queda de Fredersen. Durante uma assembléia em que Maria-robô incita os trabalhadores à radicalização do movimento, Freder intervém dizendo que Maria falaria de paz, não de morte. Os trabalhadores identificam Freder com seu pai e uma luta acontece até que um trabalhador morre no lugar de Freder. Maria-robô faz seu papel e o movimento dos trabalhadores se transforma numa rebelião caótica, culminando com uma enchente na cidade. Descobrem a impostora e a destroem, enquanto Rotwang descobre a Maria verdadeira e a persegue até o telhado de uma catedral . Freder sobe para resgatá-la e luta com o cientista louco, que acaba morrendo (imagem abaixo, à esquerda). No final, por insistência de Freder (que só se mexeu depois de ser “empurrado” por Maria) o líder dos trabalhadores e Fredersen apertam as mãos. (imagem acima, à direita)
Freder e o Mundo Fora do Mundo Dele
Quando o filme
começa, Freder está
vestido com seda branca.
A seguir ele veste o macacão
dos trabalhadores. Mas
no final volta ao seu
estilo original
Ainda que a Alemanha tivesse sido uma das forças industriais mundiais até a Primeira Guerra Mundial, de acordo com Anton Kaes Metropolis (direção Fritz Lang, 1927) pode ser entendido como uma resposta alemã (ou, pelo menos, a resposta de um alemão em particular) ao Fordismo, porque para Lang esse seria um símbolo das condições que levaram à guerra – que a Alemanha perdeu. O filme foi realizado justamente quando, em meados da década de 20 do século passado, discutiu-se muito a industrialização e a racionalização – exatamente as características da modernidade ocidental que, de acordo com a propaganda do governo alemã de então, teriam motivado a participação daquele país no conflito (2). Se essa guerra foi travada, sugere Kaes, para defender valores alemães “antiquados” contra o “espírito tecnológico” da modernidade ocidental, então a guerra parecia perdida para sempre. Kaes acredita que Metropolis mostra a mesma ambivalência do discurso sobre a modernidade naquela época. O filme divide o problema em duas histórias. Primeiramente mostra trabalhadores que se rebelando contra as máquinas e sendo derrotados, porque essa luta equivale à autodestruição. A outra história envolve a rebelião de um jovem filho idealista (Freder) contra seu par (Fredersen), cuja figura foi maquiada a partir de um retrato na autobiografia de Henry Ford.
“[Metropolis
parece propor] que a modernidade tecnológica
vai continuar produzindo
divisão de classe [apesar do
aperto de mãos] e os meios
para a matança em massa.
A guerra continuará,
sem batalhas”(3)
Enquanto o pai significa o industrialismo sem coração do Fordismo, o filho funciona como a figura edipiana impulsiva do teatro expressionista que pretende transformar o mundo. Motivado pelo seu amor por Maria, a moça da classe trabalhadora, Freder desafia o sistema no qual seu próprio status e vida são fundados - apenas para, no final, se reconciliar com o pai e o sistema repressivo. Kaes assemelha Freder aos ingênuos jovens que se alistam para a guerra em busca de aventura e se aterrorizam com as balas. Em busca de Maria na “terra dos trabalhadores” (um mundo forma do mundo), Freder entra na casa das máquinas pela primeira vez e descobre o “mundo real”. Uma imagem panorâmica mostra Freder vestido de branco, confuso e insignificante. Os movimentos mecânicos e sincronizados dos trabalhadores nos confundem, não sabemos exatamente qual a função ou tarefa daquelas máquinas. Kaes sugere aqui certa semelhança com as coreografias do Balé Triádico (Triadisches Ballett) de Oscar Schlemmer, apresentado pela primeira vez na Bauhaus em 1922. Mas também enxerga a descrição da “batalha industrial” nas páginas de O Capital, de Karl Marx. (imagem acima, à direita, durante a rebelião dos operários, eles comemoram a destruição da grande máquina)
Moloch e o Mediador
Adolf Hitler
elogiou algumas linha
santi-semitas na autobiografia de Henry Ford, industrial que manteve negócios com
o líder nazista
Os trabalhadores estão em volta de máquina gigante, Lang mostra a “máquina satânica” (Oswald Spengler) cercada por insetos (os trabalhadores). Acompanhamos um operário que se apavora com os sinais de catástrofe que vem do painel de controle, a máquina gigante explode. Freder tenta se aproximar, mas é jogado para trás e cai no chão. Ele olha novamente e vê a máquina se transformar num monstro com uma grande boca e dois olhos. Sua alucinação tem um nome: Moloch (imagem abaixo, à direita). Kaes sugere que Freder, paralisado por seu encontro quase mortal, tem uma visão similar as que são relatadas por vítimas de stress pós-traumático. Lang se apropriou do deus comedor de homens que o diretor Giovanni Pastrone construiu para Cabiria (1914), superpondo-o à grande máquina. A súbita metamorfose da tecnologia futurista (para a época) para um antigo mito bíblico expõe a ideologia subjacente em Metropolis. A visão de Freder relaciona a lenda do Antigo Testamento, onde crianças são sacrificadas em nome de um deus demoníaco, com a forma como os humanos são sacrificados para os deuses da tecnologia e da guerra. (imagem acima, à esquerda, Rotwang apresenta seu robô para Fredersen)
O Moloch de Lang
foi inspirado pelo
Moloch de Cabiria,
realizado na Itália
no ano de 1914, por
Giovanni Pastrone
Não é difícil imaginar, apenas nove anos após a carnificina da Primeira Guerra Mundial, a imagem da guerra como um monstro engolindo carne humana. No filme de Lang, a primeira leva de vítimas (vestidas como escravos seminus) ainda é levada contra sua vontade para as mandíbulas de Moloch, mas as seguintes (vestidas com os macacões dos trabalhadores de Metropolis) já não mostram resistência. São os mesmos trabalhadores que vimos no começo do filme, marchando disciplinadamente de cabeça baixa. Quando Freder volta do delírio a imagem que o mundo real lhe dá não é menos bizarra, diante dele trabalhadores carregam os feridos/mortos em macas. Uma imagem típica da guerra, mas também típica do valor da sombra como a imagem do destino nos filmes expressionistas (4). Eles são como sombras desfilando diante de Freder, com sua roupa branca e limpa. Para Kaes, o robô criado por Rotwang, o “trabalhador do futuro”, é como uma resposta à fragilidade do corpo humano: “se a produção industrial é uma máquina gigante (com trabalhadores como partes descartáveis, da mesma forma que os soldados no front), perdas e desastres não são razão para desespero. A questão de uma máquina é justamente que ele não sente” (5). Oswald Spengler lançou em 1918 (o ano final da guerra, quando três impérios entraram em colapso: o russo, o otomano e o alemão) o livro O Declínio do Ocidente, que teoriza a respeito de um mundo dominado pela máquina que terminaria numa guerra global industrializada. (imagem abaixo, à esquerda, Maria-robô incita os trabalhadores à rebelião)
Anton Kaes
se pergunta se
Fritz Lang seria o
Oswald Spengler
do cinema? (6)
se pergunta se
Fritz Lang seria o
Oswald Spengler
do cinema? (6)
Em sua autobiografia, escrita em 1923, Henry Ford afirmou que não conseguia entender porque o trabalho repetitivo faria mal. Ford disse ainda que quando se oferecia outra atividade para os trabalhadores eles preferiam continuar repetindo o mesmo trabalho. Ford ganhou muito dinheiro e poder com a idéia da linha de montagem, sendo considerado muito criativo por algumas pessoas. Em 1925, sindicalistas alemães fizeram uma visita a Henry Ford para saber como poderiam manter a paz social e ao mesmo tempo aumentar a produtividade. Uma brochura escrita na época, Ford ou Marx: A Solução Prática para a Questão Social, argumenta a favor de Ford. A solução em Metropolis para a rebelião fracassada é aguardar por um mediador enérgico que trará a paz social. Novamente, nos explica Kaes, o filme se apropria de um discurso importante na década de 20 – a saber, o anseio por um salvador ou líder. Maria não defende a revolta ou qualquer coisa que se assemelhe a um governo autônomo; ela acredita que os trabalhadores devem esperar passivamente por um messias que irá libertá-los – o último capítulo da autobiografia de Ford se chama A Máquina - O Novo Messias (7). (imagem abaixo, Fredersen procura seu filho, que está com os filhos dos trabalhadores na enchente; o industrial entra em desespero quando seu funcionário diz que amanhã milhares em busca de seus próprios filhos farão a mesma pergunta a Fredersen)
A I Guerra Mundial
empregou tecnologia
empregou tecnologia
avançada e racionalidade
instrumental. Para Lang,
instrumental. Para Lang,
a carnificina foi fruto
da era industrial (8)
da era industrial (8)
Embora Max Weber, em Ciência como Vocação (1919), tenha advertido sua jovem platéia de que o profeta que a juventude espera simplesmente não existe, a esperança de que ele viria se manteve durante toda a República de Weimar. Depois do final da Primeira Guerra, muitos alemães sentiram-se politicamente órfãos, sem liderança e direção – para a maioria, o parlamento era uma “comédia patética”. Essa consciência de uma unidade perdida (unidade que haviam experimentado no começo da guerra, em 1918), e a conseqüente sede por um mediador ou messias, pode ajudar a entender a subida de Hitler ao poder em 1933. “Quando virá o mediador?”, os operários se colocam essa pergunta repetidamente em Metropolis, predispondo-se a ser enganados por um falso messias.
Notas:Leia também:
As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto
Rossellini e o Ventennio Fascista
O Cinema e o Passado: O Caso do III Reich (I), (II), (final)
O Corpo Expressionista
Nosferatu, o Retrato de Uma Época (I), (II), (final)
Pelas Ruas da Alemanha
Nosferatu e Seu Herzog (I), (II), (final)
Isto é Hollywood!
O Passado Nazista do Cinema de Entretenimento
Os Biblioclastas (I), (II), (final)
Mussolini, o Cipião Africano
Conexão Nibelungos: O Caso Fritz Lang (I), (II), (epílogo)
Os Malditos de Visconti (II)
Mussolini e a Sombra de Auschwitz
Estética da Destruição
O Monstro Brasileiro de Hollywood
1. KAES, Anton. Shell Shock Cinema. Weimar Culture and the Wounds of War. Princeton: Princeton University Press, 2009. P. 168.
2. Idem, pp. 175-81.
3. Ibidem, p. 193.
4. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. P. 95.
5. KAES, Anton. Op. Cit., p. 181.
6. Idem, p. 169.
7. Ibidem, pp. 198, 243n21.
8. Ibidem, p. 168.