Na obra
de Tarkovski, é
mais fácil ver mulher
levitando por amor do
que transando. Nos
termos do cineasta,
essa é a mulher
quando ela
ama
Entre o Idealismo e a Misoginia?
Há quem diga que as mulheres são ao mesmo tempo muito presentes e muito ausentes na obra de Tarkovski (1). Da mesma forma, é muito raro o espaço afetivo e as histórias de amor onde uma mulher seja o centro dos desejos e de estratégias de conquista. Talvez em A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo, 1962), quando o jovem Ivan corre pela praia com uma garota, numa época idílica anterior a seu precoce envelhecimento durante a guerra. Talvez em Andrei Rublev (Andrey Rublyov, 1966), quando o universo do padre pintor de ícone é invadido por uma camponesa muda. Mais do que nunca, em Solaris (Solyaris, 1972), quando o oceano pensante daquele planeta estranho materializa Hari, a esposa morta de Kris Kelvin. Em O Espelho (Zerkalo, 1975) e Stalker (1979) encontramos alguns casais. Eugênia tentará em vão seduzir Gortchakov, em Nostalgia (Nostalghia, 1983). A única conquista está na união entre Alexandre e Maria em O Sacrifício (Offret, 1986) - como se o amor carnal pudesse salvar o mundo quando vivido como um sonho. De qualquer forma, quando finalmente percebe que se trata de uma ilusão de sua mente, Kris tenta neutralizar a história de amor fazendo Hari sumir – mas enquanto estiver naquele planeta ele será escravo de seus próprios desejos, por isso a mulher/ficção volta para os seus braços como mágica. Gortchakov, por sua vez, também abandona Eugênia, refugiando-se no sonho e na memória.
De acordo com Robert Bird, é possível falar de Solaris como uma tentativa de vislumbrar a fé primitiva numa Deusa absoluta. Além do mais, no livro de Stanislaw Lem que Tarkovski adaptou, Hari é identificada como Afrodite, nascida do oceano (2). Por outro lado, Antoine de Baecque ressalta que existe um paradoxo no universo das personagens femininas de Tarkovski. Considera as mulheres seres instintivos, porém em sua obra elas recusam toda pulsão de desejo. Tarkovski busca o calor nascido do desejo e do prazer dos corpos, mas a Eva é expulsa do universo. Esse é o itinerário seguido por Eugênia em Nostalgia, mandada para fora da história logo que deixa explicita seus impulsos amorosos. É como se o desejo em Tarkovski remetesse a um sentimento artificial. Eugênia se torna criatura, forma exterior, superfície bela. Mas Tarkovski procurou explicar porque evitou filmar o contato carnal: “em tal situação, o amor e o contato são impossíveis. (...) Enquanto sujeito, o Outro permanece eternamente inacessível. O amor sensual sublinha esta falha do estágio estético devido à coisificação geral” (3). Tornando-se desejável, conclui Baecque, Eugênia opera uma mudança: aquilo que era precioso nela, aquilo que era fonte de espiritualidade, se transforma numa sensualidade aparente. Tarkovski então, Baecque sugere, parece desgostoso com a superfície da mulher. (primeira imagem do artigo, a levitação em O Espelho; acima, à direita, Hari, em Solaris; abaixo, à esquerda, Eugênia, em Nostalgia)
Com Carne e Com Ternura
Mas Tarkovski não era insensível à mensagem de ternura, apenas recusava o prazer e o contato com as carnes. Enquanto outros cineastas mostram o ato de amor através de um entrelaçamento dos corpos, Tarkovski só conhece a elevação – como se apenas uma estrutura vertical pudesse dar conta da união terna entre dois seres. Eis aí o porquê das cenas de levitação em O Espelho e O Sacrifício. É a levitação que “materializa”, “espiritualiza”, a comunicação carnal. Tarkovski teme o desejo e o prazer que podem prendê-lo numa armadilha, o que o restringiria ao espaço horizontal da cama – e do jogo hedonista. O cineasta se refugia, como define Baecque, na plenitude elevada do amor realizado. Em essência, Tarkovski é o cineasta da frustração dos desejos. Tal recusa marca sua singularidade num mundo onde as estratégias da conquista amorosa têm lugar, para o melhor e o pior, no centro de todas as narrativas do cinema. Sendo assim, as personagens femininas por excelência de Tarkovski encarnam o desejo amoroso frustrado. A mulher, em Tarkovski, é fundamentalmente um ser do depois: depois do desejo, depois do prazer. O cineasta dá mais valor à mulher maternal do que a sedutora. (imagem abaixo, à direita, Stalker)
Eugênia,
a loura gigantesca e
bela de Nostalgia é, para Tarkovski, a imagem da esterilidade
Em Nostalgia, essa confrontação tem lugar na capela da Virgem que Eugênia visita logo no início do filme. Por alguns segundos, os olhos de Eugênia se cruzam com os da Madonna del Parto, de Piero della Francesca, a mais bela mulher grávida da história da pintura italiana. Ao olhar incerto da sedutora, da mulher real, integrada ao artifício do mundo contemporâneo, sucede a tranqüila segurança da mãe pintada, da mulher trazendo Jesus. É como se a mulher para Tarkovski só pudesse viver com uma sensação de segurança, abandonando as ambigüidades problemáticas (e às vezes preocupantes: Eugênia é uma Eva muito desejável) de incerteza e hesitação. Já a mãe está carregada com o valor do refúgio que busca Tarkovski. É nela que se refugia Gortchakov durante seus sonhos nostálgicos. Eugênia não compreende esse valor da maternidade: “eu nunca compreendi isso, e eu sou mulher”. É o que ela diz ao padre na capela, o qual lhe propõe seu ideal feminino: “ter filhos, criá-los com sacrifício e paciência”. Mais tarde, Eugênia também não compreenderá o valor da terra e os sofrimentos nostálgicos de Gortchakov. Dando as costas a essas figuras tradicionais da feminilidade (a maternidade, a terra, o sonho), pouco a pouco Eugênia vai se tornando a imagem da esterilidade.(imagem abaixo, O Espelho)
Em sua solidão,
resta ao homem viver
da lembrança. Da nostalgia
de um refúgio. Na obra de
Tarkovski, o símbolo
máximo do refúgio
é a mulher-mãe
Antes de condenarmos em Tarkovski uma posição retrógrada (embora Baecque diga que é assim mesmo que Tarkovski era), trata-se de uma força na construção da narrativa. A mulher mãe, um símbolo de refúgio, aciona um bom número de sonhos em Nostalgia, como também em A Infância de Ivan e O Espelho. A mulher também está presente como peça central da estrutura trágica. Figura de morte em A Infância de Ivan, de demência em O Sacrifício e, muito regularmente, sublinhando sua presença sonhada, longínqua, o confinamento do herói em sua solidão. Essa mulher (e não a outra) insiste na dimensão nostálgica do homem frágil separado de suas raízes. O ser feminino em Tarkovski, fugindo dos prazeres do contato carnal, possui um valor duplo. Por um lado refúgio, mas também de separação, em lágrimas. Muitas vezes a mulher é apenas lembrança, recorda ao homem que ele deve carregar a dor da solidão. Para Tarkovski, ao que parece, o homem só estará ligado ao universo das mulheres pelo frágil caminho dos sonhos. Em conclusão, Baecque sugere que o “ser tarkovskiano” floresce nessa incerteza: travado na lembrança, ele encontra um doce refúgio em seu isolamento ferido.
Leia também:
As Deusas de François Truffaut
A Nostalgia de Andrei Tarkovski (final)
Tarkovski e o Planeta Água
A Poesia e o Cinema em Tarkovski
Andrei Rublev: O Ícone de Tarkovski (final)
Tarkovski Através do Espelho
1. BAECQUE, Antoine de. Andrei Tarkovski. Paris: Editions de l’Etoile/Cahiers du Cinéma, 1989. Pp.55-7.
2. BIRD, Robert. Andrei Tarkovski. Elements of Cinema. London: Reaktion Books Ltd, 2008. P. 121.
3. BAECQUE, Antoine de. Op. Cit., p. 55.