“Eu não gosto dos
donos da verdade,
sejam eles quem forem.
Eles me entediam
e me dão medo.
Sou anti-fanático
(fanaticamente)”
Luis Buñuel
Meu Último Suspiro, p. 318
donos da verdade,
sejam eles quem forem.
Eles me entediam
e me dão medo.
Sou anti-fanático
(fanaticamente)”
Luis Buñuel
Meu Último Suspiro, p. 318
Educação Religiosa Produzindo Ateus
O cineasta espanhol Carlos Saura afirmou que na Espanha existem três coisas muito importantes: a Igreja, o sexo e o exército (1). Luis Buñuel, outro cineasta espanhol, daria à observação de Saura em relação à Espanha uma dimensão especial. Seu ateísmo, por exemplo, não excluía certo fascínio pelos mistérios da fé e da Virgem Maria. Em 1961, a propósito das polêmicas em torno de Viridiana (Viridiana, 1961), então seu novo filme, Buñuel disse que tendo nascido numa família muito católica e freqüentado um colégio jesuíta dos oito aos quinze anos, a educação religiosa deixou marcas profundas em sua vida. Mas o surrealismo também, Buñuel enfatizou. Disse ainda que Viridiana segue sua tradição pessoal desde A Idade do Ouro (L’Age D’Or, em co-direção com o pintor Salvador Dalí, 1930). Com trinta anos de diferença, Buñuel deixou claro, foram os filmes que realizou mais livremente (2). (imagem acima, Ándara, a prostituta, procura alento no mundo católico, em Nazarin; abaixo, à direita, o devasso conde de Blagis, caracterizado como Cristo, acaba de arrancar o escalpo de uma de suas escravas sexuais, em A Idade do Ouro)
Buñuel conseguiu
perceber a diferença
e a distância entre fé
e instituição religiosa.
Do ponto de vista da
Igreja, isto fazia dele
um homem perigoso
Não se pode negar que sua infância deu-lhe a oportunidade de um conhecimento amplo daquilo que veio a renegar. Iniciaria seus estudos com os corazonistas, equivalentes na França aos irmãos do Sacré-Coeur de Jésus, mais bem vistos em sua cidade natal do que os lazaristas. Um ano depois, é transferido para um semi-internato Jesuíta por sete anos. Seus dias começavam com a missa, às 7h30, e terminavam com o rosário da tarde. À menor infração, o aluno ficava de joelhos, de braços abertos e com um livro pesado em cada mão. Sempre vigiados, Buñuel contou que, para ir ao banheiro, os alunos sempre eram seguidos pelos olhos de um padre. Não podiam tocar uns aos outros, caminhando em fila dupla, a cerca de um metro uns dos outros (vemos algo parecido no início de Viridiana). Estudava-se a vida dos santos, catecismo, apologética. Nas aulas de filosofia, aprendia-se a refutar o pensamento de Immanuel Kant. Uma observação particularmente curiosa para muitos de nós, Buñuel disse que nunca houve escândalo sexual, fosse entre alunos, ou entre alunos e professores. Por volta dos catorze anos de idade, as primeiras dúvidas referentes à religião surgem na mente do jovem Buñuel (3).
Quando Nazarin (1958) foi premiado em Cannes, uma situação curiosa tomou corpo. De um lado, Simone Dubreuilh saudou o filme como um libelo anticonformista criado por um Buñuel avesso a religião. Nazarin, dizia Dubreuilh, fala da impossibilidade da graça, da salvação das almas e da caridade cristã. Um filme que amaldiçoa os santos óleos, um filme onde o Bem semeado pelo protagonista volta-se contra ele. Do outro lado, a Associação Católica Internacional para o Cinema, propôs premiar Nazarin como melhor filme católico no Festival de Cannes. Embora um dos religiosos presentes tenha dito que Buñuel só fala dos “defeitos menores do clero”, o que não invalida a mensagem religiosa de Nazarin, no final venceu a turma que dizia que os católicos estavam equivocados, que na verdade Buñuel era anticlerical até a raiz dos cabelos! Como explicava a brochura distribuída no Festival durante a apresentação de Viridiana, as preocupações religiosas e sexuais de Buñuel “não se explicam inteiramente se não se leva em conta de que maneira estes problemas são encarados na Espanha” (4). (imagem acima , Nazarin é cercado pelas beatas, ele não sabe o que fazer para salvar uma menina doente; abaixo, à esquerda, na seqüência final Nazarin sente-se iluminado ao receber um abacaxi de presente; para os brasileiros, o sentido figurado de "abacaxi" é outro!)
Entre a Fé Verdadeira e Caridade Hipócrita
“Já não creio
no progresso social.
Só posso acreditar em
alguns poucos indivíduos excepcionais de boa fé,
no progresso social.
Só posso acreditar em
alguns poucos indivíduos excepcionais de boa fé,
ainda que fracassem,
como Nazarin”
Luis Buñuel (5)
como Nazarin”
Luis Buñuel (5)
Em Simão do Deserto (Simon del Desierto, 1965), um beato vive no topo de uma coluna durante 6, quando ganha uma com 11 metros de altura. Rodeado por seguidores, faz milagres e enfrenta o diabo. O roteiro é baseado na história de San Simeón. Durante a Idade Média, o anacoreta viveu mais de 40 anos no alto de uma coluna no deserto da Síria. Com o poeta e amigo Federico García Lorca, Buñuel se divertia ao ler que as fezes do santo escorriam pela coluna como a cera de uma vela. Conchita, irmã e secretária de Buñuel, disse que certa vez, quando estavam em Madri, hospedaram-se no 17º andar do único arranha-céu da cidade na época. Buñuel ficava lá, disse ela, como um monge no alto de uma coluna (6). Em 1958, Buñuel filma Nazarin. “Nazarin”, Buñuel confessou, “é um homem fora do comum, por quem sinto grande afeto” (7). Como Simão, Nazarin é uma mistura de Cristo e Don Quixote. (imagem abaixo, à direita, Viridiana em seu ritual de reza antes de recolher-se para dormir na primeira noite fora do convento; na almofada em frente a ela, um crucifixo, um martelo, pregos e uma coroa de espinhos)
Nazarin vive num mundo só seu e acredita que tudo irá bem se fizer o bem. Mas suas boas ações acabam mal. Dedica-se aos pobres e pouco se importa quando delinqüentes lhe roubam os poucos pertences. Por conta do escândalo que gerou ao acolher e cuidar de uma prostituta ferida em seu quarto o proíbem de celebrar missas. Nazarin então se livra de suas vestes eclesiásticas e passa a viver como mendigo. Seus únicos seguidores são duas mulheres, Ándara, a prostituta a quem ajudou, e Beatriz, amiga dela, uma histérica abandonada pelo amante. É preso e tem de ser defendido por outro detento na cadeia. ”Você está no bando do bem e eu no do mal. E nenhum dos dois serve para nada”, desabafa seu defensor. (imagem abaixo, à direita, os cadeais na seqüência da fundação de Roma, em A Idade do Ouro; abaixo, à esquerda, em sua primeira manhã na fazenda do tio, Viridiana é convidada a tirar leite de uma vaca. Sua mão hesita em tocar a teta... estaria a beata pensando que era um pênis?)
Noutra seqüência, Buñuel ataca a idealização dos pobres e do ideal de bondade. Nazarin, Ándara e Beatriz encontram uma moribunda que só pede a presença de seu amado Juan. O beato procura fazê-la se arrepender de seus pecados e prestar contas a Deus. “Céu não, Juan”, repetia a mulher para espanto de Nazarin, que não compreende como se pode ignorar a salvação eterna – em alguns dvd’s, substitui-se a palavra “céu” por “Deus”, o que dá na mesma. Beatriz, que sofre com a ausência de seu próprio homem, em seu silêncio parece concordar com ela (8). Juan chega e expulsa os beatos a pedido dela. Portanto, o mundo da fé perde também para o amor louco – que chamou a atenção de Buñuel e do grupo surrealista em O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brönte, 1818-1848) (9). Buñuel afirmou... “Posso blasfemar sobre o amor louco, caso isso me ocorra. É vivificante, às vezes, blasfemar contra aquilo em que se acredita” (10). É o que poderíamos concluir de sua opinião sem hipocrisia em relação à caridade: “Sou contra a caridade cristã. Mas então, se vejo um homem pobre que me comove, dou-lhe cinco pesos. Se não me comove, se me parece antipático, não lhe dou nada. Então, não se trata de caridade” (11).
Nazarin e Viridiana,
personagens beatos que abandonaram o posto de
inocentes a serviço da Igreja.
Buñuel, ao contrário de
muitos cineastas que
flertam com o poder,
não estava nem aí
personagens beatos que abandonaram o posto de
inocentes a serviço da Igreja.
Buñuel, ao contrário de
muitos cineastas que
flertam com o poder,
não estava nem aí
Notas:
Leia também:
Buñuel, o Blasfemador (II), (final)
A Religião no Cinema de Carl Dreyer
Buñuel e as Formigas
Ingmar Bergman e a Trilogia do Silêncio
Andre Rublev: O Ícone de Tarkovski (I), (II), (final)
Este artigo é uma versão de A Religião no Cinema de Luis Buñuel, originalmente publicado na Revista dEsEnrEdoS, ano II, nº 6, 2010
1. RENTERO, Juan Carlos. Interview with Carlos Saura In WILLEN, Linda M. (ed.). Carlos Saura: Interviews. USA: University Press of Mississippi, 2003. P. 29.
2. BUÑUEL, Luis. Viridiana. Tradução de Saul Lachtermacher e José Sanz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. P. 6.
3. BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009. Pp. 46-8.
4. SADOUL, Geoges. Buñuel, Viridiana e Alguns Outros (1962) In BUÑUEL, Luis. Op. Cit., 1968. Pp. 11 e 23.
5. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Luis Buñuel. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2005. P. 113.
6. BUÑUEL, Luis. Op. Cit., 2009. P. 328.
7. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Op. Cit., p. 114.
8. HOLANDA, Samuel. Nazarin, Um Devorador Ambíguo de Sistemas In CAÑIZAL, Eduardo Peñuela (org.) Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. Pp. 94-5.
9. RUIZ, Adilson. Buñuel, um Cineasta no Exílio In CAÑIZAL, E. P. (org.). Op. Cit., p. 213.
10. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Op. Cit., p. 177.
11. Idem, p. 64.