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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de dez. de 2014

A Primeira Onda do Cinema Francês


No Começo são os Créditos Iniciais

Em 1895 já existiam muitos truques no teatro, as fotografias podiam ser retocadas e havia também a magia dos ilusionistas (imagem acima, A Viagem à Lua, direção Georges Méliès, 1902). Segundo Réjane Hamus-Vallée, o primeiro efeito especial propriamente cinematográfico foi realizado naquele mesmo ano nos Estados Unidos por Alfred Clark. Antes da invenção “oficial” do cinema pelos irmãos Lumière, A Execução de Mary, Rainha da Escócia nos mostra um plano com uma atriz ajoelhada diante de um bloco antes que o carrasco lhe arranque a cabeça com um machado e mostre ao público. Com uma parada da câmera, a atriz foi substituída por um manequim. Mas para Hamus-Vallée, Georges Méliès é o incontestável pai dos efeitos especiais. Presente na primeira seção pública dos irmãos Lumière, Méliès iniciará sua carreira em 1896 plagiando o trabalho deles. Até certa manhã quando, explica Méliès...

“Um bloqueio do aparelho do qual me servia no começo [aparelho rudimentar, no qual a película se partia ou agarrava muitas vezes e recusava seguir em frente] produziu um efeito inesperado um dia em que eu fotografava prosaicamente a Praça da Ópera: um minuto foi necessário para desbloquear a película e recolocar o aparelho em movimento. Durante esse minuto, é claro, os passantes, ônibus, carros, haviam mudado de lugar. Projetando a fita até o ponto onde ocorreu a ruptura, subitamente eu vi um ônibus Madeleine/Bastille se transformar em carro fúnebre, e os homens se transformarem em mulheres. O truque por substituição, dito truque de parar, havia sido encontrado” (1)


Pouco importa, conclui Hamus-Valée, se isso é lenda ou realidade. A partir daí Méliès se lança à realização de “filmes de truques” que alcançam um sucesso imediato dentre o público das feiras nessa época. Filmado em seu jardim durante 1896, com O Desaparecimento de Uma Senhora no Teatro de Robert Houdin (L’escamotage d’une Dame chez Robert Houdin) Méliès estabelece as premissas de seu trabalho futuro: uma mistura de técnicas cinematográficas, teatrais e mágicas, um gosto pelas maravilhas, um mundo poético sem restrições. Ainda que ele realize algumas fitas de reconstituições para noticiários (procedimento que será muito utilizado pela Pathé Frères) e vistas ao ar livre, Méliès será lembrado por seus “filmes de truques” – em apenas quinze anos sua Star Film lançou quinhentas fitas. Filmes cujo repertório não para de assombrar o mundo dos efeitos especiais: aparições, desaparições, transformações, desdobramentos e outras manipulações do corpo. O Homem da Cabeça de Borracha (L’Homme à Tête de Caoutchouc, 1901), que, separado de seu corpo, aumenta ou diminui, condensa as técnicas e os temas de Méliès (imagem acima). De acordo com Hamus-Valée, é antes de tudo por sua encenação que ainda é reconhecido como pai dos efeitos especiais. A maneira como posiciona o efeito no centro da imagem, sua montagem precisa, seu trabalho sobre o movimento, sobre o corpo (2).

“Em 1902, A Viagem à Lua marca o apogeu do Méliès homem-orquestra: ator, produtor, realizador, distribuidor, decorador, cenarista, trapaceiro... Mas é também o começo de seu declínio. Por sua vez plagiado mundialmente, e recusando levar em conta os avanços da linguagem cinematográfica e sua industrialização, Méliès cessa definitivamente suas produções na véspera da Primeira Guerra Mundial. E terminará arruinado, vendedor de brinquedos na estação Montparnasse” (3)

Aprendendo a Mostrar, Aprendendo a Ver

“Os   dois   principais   modos   de   representação
do cinema dos primeiros tempos, a vista e o quadro, 
excluem  imediatamente  a  ideia  de  montagem”

Vincent Pinel (4)


No começo foi a “vista” Lumière, nada mais do que um diapositivo fotográfico em movimento que permitia “captar a vida em tempo real”. Naquela época a “vista”, explica Pinel, formava um todo que não solicitava nem um antes, nem depois, nem contracampo. Tudo era dito numa tomada única de menos de um minuto, ditada pela câmera e pelo projetor, que era preciso recarregar. A “vista” é o primeiro modo de representação daquilo que não se chamava ainda o “cinema do real”. Pinel segue esclarecendo que o conceito de quadro se referia menos diretamente à arte pictural (com raras exceções) do que ao vocabulário dos espetáculos de variedades, do teatro de revista ou das operetas. Aquele cinema se estruturava em torno de uma “cena” (na acepção de unidade de uma estória dramática), apresentada a partir de um “quadro”, filmagem gravada de uma só vez, capturando de uma só vez a totalidade de um cenário pintado. O teatro estabelecido por Méliès em 1897 não previa mais do que isto, qualquer contracampo era impensável (5). (imagem acima, La Vie et la Passion de Jésus Christ, direção Ferdinand Zecca,1903)

Esse ponto de vista teatral era compartilhado pelas plateias da época, que aceitavam mal que um personagem de ficção aparecesse na cena de outra forma que não fosse de corpo inteiro na tela. Curiosamente, observa Vincent Pinel, aquilo que as pessoas rejeitavam para a ficção aceitavam no documentário. Em A Chegada de Um Trem na Estação (l’Arrivé d’un Train em Gare de la Ciotat), a célebre filmagem de Louis Lumière em 1896, temos toda uma gama daquilo que chamamos hoje de “planos”. Contudo, insiste Pinel, isso ainda não era aceito pela norma cênica. A introdução da noção de plano é nova e revolucionária, ela está estreitamente ligada à ideia de montagem, reagrupando planos distintos filmados fora da ordem da sequência final estabelecida no roteiro. Mais isso ainda não era suficiente, faltava a introdução da noção de continuidade. O sucesso na França entre 1905 e 1909 de filmes de perseguição entre personagens facilitou a intuição que levaria a ela, uma vez que se impunham sequências lógicas de cenários de fuga e captura (evidência do deslocamento dos personagens). Emerge a ideia de ligação (raccord de direção), um dos fundamentos da decupagem em planos e da montagem. Com D. W. Griffith, pela primeira vez um filme será construído em torno de uma ideia, e não em torno da simples exposição de um fato ou da narração clássica.


“Primeiro grande mestre do cinema americano, David Wark Griffith não foi o ‘inventor’ da montagem propriamente dita, mais um experimentador esclarecido da narração cinematográfica que não cessou de inovar no quadro dos múltiplos pequenos filmes de ficção que realizou para a Biograph de 1908 a 1913. Griffith se manterá fiel ao quadro na medida em que continuou a olhar para a ação por um mesmo lado, respeitando a ‘quarta parede’ do teatro; contudo ele rompe com a tradição do enquadramento de palco muito grande ao se aproximar dos intérpretes, de bom grado enquadrados na metade da coxa em plano americano, segundo a expressão francesa. Seu esforço consistiu em tornar o quadro mais familiar, mais realista (...)” (6) (imagens acima, da esquerda para a direita: A Chegada de Um Trem na Estação, direção Auguste e Louis Lumière, 1896; Estrela do Mar, direção Man Ray, 1928; A Loucura do Doutor Tube, direção Abel Gance, 1915)

O francês Abel Gance tirará partido das lições de Griffith, de quem ele teve oportunidade de assistir a O Nascimento de Uma Nação (Birth of a Nation) em 1915, em Londres – o filme estava proibido na França. Com A Décima Sinfonia (La Dixième Symphonie, 1918), Gance marca na França uma ruptura com o modo de representação primitivo. De acordo com Pinel, com suas técnicas de montagem este sombrio drama burguês abre o caminho para o cinema moderno. Muito embora, assim como Griffith, o interesse pelo quadro continue a marcar o cinema de Gance, em filmes como A Roda (La Roue, 1922) ele se inspira no norte-americano quanto a uma montagem acelerada. 

Pinel destaca o fato de que, com setenta e cinco anos de antecedência, a estética do vídeo clip e do filme de ação já havia visitado as telas. Discípulo de Gance, Jean Epstein foi o cineasta e teórico que depois de seu mestre difundiu de maneira ainda mais radical na França as noções de decupagem e montagem. Pinel cita especialmente o trabalho nos planos e closes em duas obras de 1923, O Albergue Vermelho (L’Auberge Rouge) e Coração Fiel (Coer Fidèle). De qualquer forma, explica Pinel, no sentido de “trabalho criador” o emprego de montador, pelo menos na França e ao contrário dos Estados Unidos, terá de esperar o advento do cinema sonoro para ser considerado. Até então, montadores ou montadoras, não seriam considerados mais do que assistentes que colavam película. (imagem abaixo, Après le Bal, direção Méliès, 1897)

Méliès: Anarquia e Cinema


“Se Georges Méliès e Émile Cohl não podem ser
considerados cinematografistas anarquistas, ao menos
 é possível afirmar que eles trabalharam  e  difundiram, 
em alguns de seus filmes, o espírito libertário (...)

Isabelle Marinone (7)

Marinone mostra como o movimento anarquista se articula com o nascimento do cinema francês. Em 1895 o pensamento anarquista está em seu apogeu, embora o cinema (em todos os países onde já existia até a década de 20) ainda levasse algum tempo para retratar os anarquistas como algo mais do que terroristas. Méliès e Cohl eram burgueses com tendências anticonformistas. Enquanto Émile Cohl (1857-1938), que desenvolverá os primeiros passos do universo do desenho animado no cinema, segue os traços do caricaturista André Gill (18840-1885), Méliès segue as pinceladas simbolistas do pintor Gustave Moreau (1826-1898), Marinone esclarece que o simbolismo guarda algumas semelhanças com o anarquismo, talvez não seja coincidência que o símbolo da produtora de Méliès, a Star Film, seja uma estrela negra – os anarquistas também adotaram uma estrela como símbolo (8). Méliès se aproximou da esquerda radical de sua época e dos ideais da Comuna de Paris (1871). De acordo com Marinone, o simbolismo de Méliès está presente em sua atração pelas “forças negras”, pela magia, o ocultismo, a morte e o diabo, visível em muitos de seus filmes. 

“(...) Sem dúvida, Méliès, dono de um espírito farsesco e alegre, ao brincar com temas se opõe, de certa maneira, às tendências pessimistas do simbolismo, e prefere se remeter à tradição prestidigitadora e teatral de Dorville e de Houdin. Mas é certo que o simbolismo trabalha em profundidade a obra do mágico” (9)

Em 1896, Mefistófeles, o diabo, aparece em O Solar do Diabo (Le Manoir du Diable). O diabo e seus discípulos estão entre as figuras prediletas de Méliès, tais presenças evidenciariam seu anticlericalismo. Marinone explica que os representantes da Igreja sempre são ridicularizados e geralmente o diabo ganha no final. Em O Diabo no Convento (Le Diable au Couvent, 1899) (imagem abaixo) Méliès supostamente não faz mais do que trazer para a tela uma história muitas vezes encenada nos teatros, onde Santo Antônio acaba sendo iniciado no mundo dos pecados. Pessoas decapitadas, número de mágica muito comum na época, também serão trazidas para a tela por Méliès - sejam várias cabeças na tela ou uma cabeça que aumenta de tamanho.

Marinone também chama nossa atenção para a ausência de moral, e frequentemente o Mal prevalece sobre o Bem. Em Os Vadios (Les Apaches, 1903-4), do qual só resta o roteiro, um bando de vagabundos ataca um artista, que fica só de camisa e cueca, enquanto o grupo dança em torno dele. Numa frase muito objetiva, Méliès declarou: “Prefiro me encontrar com um bando de vagabundos do que com um bando de banqueiros. Ao menos pelos bonés reconhecemos mais facilmente os vadios” (10) – evidentemente, o leitor brasileiro terá que substituir os bonés por outra coisa, embora bonés estejam na moda por aqui já há alguns anos.


O tema do bandido bonzinho ou simpático já aparece em Punguista e Policial (Pickpocket et Policeman, 1899). Marinone admite que nem todos os filmes de Méliès seriam carregados de ativismo, mas ela sugere que não se descarte uma segunda leitura de suas obras, o que poderia revelar até mesmo uma incitação à revolta. Como em A Anarquia de Guignol (L’anarchie chez Guignol, 1906), onde meninos comportados são manipulados pelas marionetes do espetáculo, transformados em pessoas reais com o objetivo de apanhar o diretor do teatrinho. As marionetes serão protegidas pelos meninos enquanto espancam alegremente o diretor. 

Outro exemplo é o discurso antimilitarista e o humor negro em A Civilização Através dos Tempos (La Civilization à Travers les Âges, 1907). Na Roma Antiga um visitante admira os edifícios, pouco a pouco a paisagem se transforma e começamos a ver os massacres e as sucessivas guerras em todas as épocas, até a conferência da Paz, justamente em 1907. Acima dos conferencistas surge Cristo, com a divisa “Amai-vos uns aos outros”. Marinone ressalta a vizinhança das obras de Méliès e Os Incoerentes, um movimento iconoclasta francês fundado pelo escritor e editor Jules Lévy em 1882. A mulher-borboleta de A Crisálida e a Borboleta (La Chrysalide et le Papillon, 1901) seria uma citação de Méliès, que teria surgido pela primeira vez na capa do jornal Incoerente, Le Courrier Français, nº 17. Ou ainda a mulher-estrela de Viagem à Lua, como no caso da outra mulher, também desenhada por H. Gray em 1885 no mesmo jornal. Apesar disso, Marinone afirma que os trocadilhos e o desvio das imagens, caros ao movimento Incoerente, não faziam parte da vontade criadora de Méliès.

“A crítica social e as escolhas políticas dessas produções apresentam uma complexidade bem maior do que supõe a maioria dos escritos dedicados à obra de Méliès. Algumas vezes, um espírito libertário parece habitar os filmes que brincam com o espectador comum, por meio dos personagens maléficos ou com as leis e as convenções subvertidas pelos foras-da-lei. Não que os anarquistas chancelem o diabo e o bandido, mas estas figuras negativas aos olhos da sociedade sempre lhes pareceram um elemento provocativo e sedutor, permitindo afirmar uma oposição ao sistema vigente. Com esse espírito, muitas vezes, Méliès deixa transparecer em seus filmes a corrente Incoerente, mas nitidamente menos do que nas obras de Cohl. A alusão pode se esconder nos detalhes, como, por exemplo, em Viagem à Lua, em que o grupo de sábios integra o ‘Instituto de Geografia Incoerente’ [- ou Instituto dos Astrônomos Incoerentes, na reunião da cena inicial]. Não é impossível, aliás, que a célebre lua de Méliès tenha sido concebida como uma menção a dois desenhos de André Gill, La Lune e La Lune Rousse (...)” (11) (imagem abaixo, Bout da Zan Rouba um Elefante, Bout-de-Zan vole un éléphant, direção Louis Feillade, 1913)

Paris Surrealista


“Há  no  cinema  uma parte  de imprevisto  e  de 
mistério que não encontramos nas outras artes”

Antonin Artaud,
Ouvres Complètes, Tome III – Cinéma (12)

Ainda que na opinião de Georges Ribemont Dessaignes o Surrealismo nasça em 1924 seguindo uma via menos radical do que o Dadaísmo, Marinone afirma que os primeiros renovam as pesquisas dos Incoerentes visando à alteração de imagens e palavras. Desde a década de 20, essa corrente do cinema francês realizava experimentos com linguagens muito distantes daquela dos divertimentos de Méliès, apesar do viés um tanto quanto bizarro de muitas de suas pantomimas cinematográficas. Provavelmente, a experiência surrealista no cinema silencioso tenha sido a primeira tentativa de romper com a linguagem narrativa tradicional – ainda que as adaptações de obras literárias e teatrais, que começam a proliferar através da iniciativa de Films d’Art e Pathé Frères, correspondam a um avanço temático importante.  Antonin Artaud declarou certa vez que, “o cinema pressupõe a inversão total de valores, uma subversão completa da ótica, da perspectiva, da lógica” (13). De acordo com Isabelle Marinone,

“(...) A partir de 1924, o cinema surrealista rompe com qualquer forma de narração, de roteiro. Os filmes de Man Ray, de Hans Richter e de Fernand Léger, particularmente, realizam essa ruptura ao apresentar os objetos filmados como assuntos completos. ‘O erro pictural é o assunto, o erro do cinema é o roteiro; liberado desse peso negativo, o cinema pode tornar-se um gigantesco microscópio das coisas nunca vistas e nunca sentidas’. Essa fórmula de Léger, que se tornou clássica, ilustra a nova relação com o cinema, desprendida desde então de qualquer representação tradicional. Os objetos mais comuns metamorfoseiam-se, o filme faz com que passem de um valor usual a um valor puramente plástico, proposta que se manifesta especialmente em Balé Mecânico, de Fernand Léger (1924-5), Jeux des Reflets de la Vitesse (1925) e Cinq Minutes de Cinéma Pur [Cinco minutos de cinema puro], de Henri Chomette, Anémic Cinéma, de Marcel Duchamp (1926), Emak Bakia (1926) e A Estrela do Mar (1928), de Man Ray. Quando individualizado por esse novo ponto de vista do ‘cinema puro’, o objeto pode ser recolocado em uma narração insólita, não realista e onírica. A partir de 1927, surgem nas telas A Concha e o Clérigo, de Germaine Dulac e Antonin Artaud, Um Cão Andaluz (1928) e A Idade do Ouro (1930), de Luis Buñuel, Mystère du Chatêau du Dé, de Man Ray (1929). Em 2 de abril de 1925, Artaud afirma que o cinema, ao transtornar todos os valores e convenções estabelecidos, deixa emergir uma parte de mistério desconhecida nas outras artes” (14)


Mas nem tudo são flores sob o céu de Paris... Como foi citado por Marinone, pertencem a esse período os dois filmes da parceria parisiense entre os espanhóis Luis Buñuel e Salvador Dali – esse é, geralmente, chamado de primeiro período francês de Buñuel. Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1928) foi bem recebido, embora tenha sido apresentado em seção privada no Café Cyrano, na Place Blanche, que Buñuel frequentava diariamente. Lá estavam Man Ray e Aragon, Max Ernst, André Breton, Paul Éluard, Tristan Tzara, René Char, Pierre Unik, Tanguy Jean Arp, Maxime Alexandre e Magritte. (imagem acima, A Concha e o Clérigo, direção Germaine Dulac, 1928)

“Muito nervoso, como se pode imaginar, eu ficava atrás da tela com uma vitrola e, durante a projeção, fazia alternar tangos argentinos com Tristão e Isolda. Eu havia estocado algumas pedras nos meus bolsos para atirá-las na plateia em caso de fracasso. Recentemente, os surrealistas tinham vaiado A Concha e o Clérigo [La Coquile et le Clergyman, 1928], filme de Germaine Dulac (sobre um roteiro de Antonin Artaud) – que não obstante me agradava. Eu esperava pelo pior. Minhas pedras não foram necessárias. No fim do filme, atrás da telas ouvi aplausos prolongados e me desvencilhei discretamente dos projéteis, deixando-os cair no tablado” (15) 

Tempos depois, Buñuel seria “julgado” pelo mesmo grupo de surrealistas franceses capitaneados por Breton por haver cedido o roteiro para uma revista considerada burguesa. O sucesso do filme também levantou suspeitas, como um filme provocador podia lotar os cinemas? O filme seguinte, A Idade do Ouro (L’Âge d’Or, 1930), que vem a ser o segundo ou terceiro filme sonoro realizado na França, foi filmado nos estúdios de Billancourt, nos subúrbios de Paris (16). Apesar de já estar a caminho da terceira década, o cinema ainda era alvo de ataques em plena Paris, como contou Buñuel a propósito da estreia de A Idade do Ouro:

“A primeira sessão, reservada a alguns íntimos, acontece na casa dos Noailles, que – eles se exprimiam sempre com um leve sotaque britânico – acharam o filme ‘sofisticado, delicioso’. Passado algum tempo, foi organizada outra sessão, no cinema Panthéon, às dez horas da manhã, para a qual foi convidada ‘a nata de Paris’ e, em particular, certo número de aristocratas. Marie-Laure e Charles postaram-se na entrada (isso me foi contado por Juan Vicens, pois eu estava fora de Paris), apertando as mãos e até beijando alguns convidados. No fim da sessão, voltaram para junto da porta a fim de cumprimentar os convidados que se retiravam e colher suas impressões. Mas os convidados foram embora rápido, friamente, sem uma palavra. No dia seguinte, Charles de Noailles foi expulso do Jockey Club. Sua mãe viu-se inclusive obrigada a fazer uma viagem a Roma para uma audiência com o Papa, pois falava-se em excomunhão. O filme foi lançado, com Um Cão Andaluz, no Studio 28, e exibido durante seis dias para a sala cheia. Depois disso, enquanto a imprensa de direita vociferava contra o filme, os Camelots du Roi e as Jeunesses Patriotiques (organizações do movimento integralista) atacaram o cinema, rasgaram os quadros da exposição surrealista organizada no saguão, lançaram bombas na tela, quebraram poltronas. Foi ‘o escândalo de A Idade do Ouro’. Uma semana mais tarde, em nome da manutenção da ordem pública, o chefe de polícia Chiappe pura e simplesmente proibiu o filme. Proibição que permaneceu válida durante cinquenta anos. O filme só podia ser visto em sessão privada ou em cinematecas. Foi finalmente lançado em Nova York em 1980 e em Paris em 1981” (17)

Para Onde o Cinema Prefere Olhar?


“Você só vai descobrir duas fontes de onde fluem 
todas as ideias cômicas: o sexo e a criminalidade”

Mack Sennett (18)

Com essa frase do ator, produtor e inovador da comédia pastelão, o norte-americano Mack Sennett (1880-1960), já é possível perceber que desde seus primórdios o cinema pretendeu desnudar aquilo que todos os poderes almejam dominar e controlar: o corpo. Desde o começo houve problemas com a censura. Se naquela época era um escândalo, hoje beijos e corpos nus em close se tornaram clichês, saídas fáceis para aumentar as receitas da bilheteria. De fato, como explica Jean-Claude Boulogne, o nu irá se estabelecer muito mais tranquilamente no cinema do que no teatro. No palco, as condições não são tão controláveis, sem querer alguma parte coberta do corpo pode aparecer. No cinema, pelo contrário, tudo pode ser modificado pela montagem. Evidentemente, o contrário também passa a ser possível pelos mesmos motivos. (imagem acima, o seriado de Louis Feuillade, Les Vampires, 1915)

Contudo, de acordo com Bologne tudo isso deveria ser mais uma constatação do que um problema, já que desde sempre, seja nas artes plásticas, na pintura ou na escultura, existe o desejo de representar o corpo humano. Em 1887, duas mulheres nuas dançam em A Figura Humana em Movimento (The Human Figure in Motion). Filmes pornográficos surgirão já em 1910, filmes naturistas na Alemanha na década seguinte. Mas o cinema terá de esperar até 1933 para ver Hedy Lamarr inteiramente nua em Êxtase (Ekstase, direção, Gustav Machatty). Desse ponto até a nudez sem pretexto histórico ou naturista de Brigitte Bardot em E Deus Criou a Mulher (Et Dieu... Créa la Femme, direção Roger Vadim, 1956), a evolução do nu no cinema sugere a do nu artístico. Evocações bíblicas e nas esculturas da Antiguidade Clássica também foram utilizadas para acalmar as ligas católicas que se insurgiam contra o que era considerado licencioso. Em 1912, uma lei de censura regulamentava a duração do beijo na tela (19). (imagem abaixo, Um Homem de Cabeças, Méliès, 1898)


Dominique Païni acredita que nunca antes o cinema havia visto o desnudamento de uma atriz (até seu sumiço) como quando Méliès realizou O Desaparecimento de Uma Senhora no Teatro de Robert Houdin em 1896 - atriz, Jeanne D’Alcy (1865-1956), era também esposa de Méliès. Païni ressalta que na mesma época Lumière já havia registrado imagens de corpos humanos nus quando fez imagens da África. Contudo, naquele caso se tratava de um olhar mais étnico-exótico do que erótico ou o estabelecimento de uma relação entre a nudez e o espetáculo (20). Barthélemy Amengual mostra que desde o começo o cinema cômico gostava de travestis, mudanças de sexo voluntárias ou impostas pelas circunstâncias, travessuras e quedas de mulheres, prometendo o que está por baixo das roupas. 

O cinema mudo já gostava da nudez e da sutileza, o collant negro que Musidora (1889-1957) vestia no seriado Les Vampires de Louis Feuillade em 1915 já fazia a plateia esquecer as donzelas que Méliès apresentou. Païni insiste que D’Alcy era uma Musidora antes de Musidora, e de fato a primeira mulher a ser desnudada pelo cinema. Em La Femme au Masque, Païni fecha questão, D’Alcy foi a mais nua – mas não está claro se Païni se refere à Depois do Baile (Après le Bal, 1897), onde D’Alcy se despe e toma banho. Para Alain Masson, Depois do Baile aponta para outra ameaça. Tanto quanto a roupa que o cobre, o corpo da mulher está prisioneiro de um tema que distância aquele corpo que se desnuda. Ainda que com honesto impudor, aquela nudez aponta para a verdade da pintura – então uma forma de arte, e uma visão de mundo, estabelecida. De acordo com Masson, nota-se a dificuldade de se descobrir os cânones de um natural cinematográfico do nu. Desde 1900, um gênio maligno recoloca a roupa repetidamente no corpo de um homem que tenta se despir em O Desnudar Impossível (Le Déshabillage Impossible). Constatação curiosa de Masson, conseguir se despir (no cinema) se tornaria um pesadelo (21).

Comédia Pastelão e Drama Realista


Joel Finler nos conta que a Pathé Frères faria da França o primeiro país a estabelecer padrões regulares de produção e distribuição no cinema. Já em 1910, a produção cinematográfica na Inglaterra perdia seu fôlego, enquanto a própria França começaria a sentir a pressão chegando de países como Dinamarca e, especialmente, Itália. Finler destaca o período entre 1905 e 1908 como o momento em que o “trabalho sério” começou, os primeiros filmes espanhóis datam de 1905, os russos de 1907 e os japoneses de 1908. Importantes companhias surgem na Itália (Cines, Ambrosio, Itala), Dinamarca (Nordisk) e Suécia (Svenska Bio). Mas a Grande Guerra (era assim que a chamavam antes que ocorresse uma segunda) chegou em 1914 e modificou todo o cenário. Na opinião de Finler, a indústria cinematográfica norte-americana foi uma beneficiária direta dessa situação, assumindo uma liderança que dura até hoje. Finler não é muito claro nesta afirmação, mas parece que ele se refere ao caráter industrial do cinema (produção+distribuição) (22). (imagens acima e abaixo, o britânico  Chaplin e o francês Max Linder se encontram em Los Angeles, Califórnia, 1921)

Devido a sua dimensão no mercado de filmes da época a Pathé Frères sentirá mais diretamente o impacto das mudanças. Contudo, independentemente disso Finler sugere que os filmes da Pathé, em geral, eram menos originais do que os de seu rival mais imediato, a Gaumont, mas também do que os produtos de outras companhias francesas criadas entre 1906 e 1908 como Lux, Eclipse, Lion, Éclair e Film d’Art. Finler destaca como significativo que os anos entre 1908 e 19012 tenham sido aqueles onde a Pathé teve mais lucro, antes que ela começasse a sentir o impacto total dos novos competidores italianos, dinamarqueses e norte-americanos. “Durante a segunda década do cinema, a maioria dos filmes franceses de destaque se concentravam em quatro gêneros: o filme literário ou histórico de costumes, comédia pastelão, filmes de detetives e crimes e drama contemporâneo realista” (23).

Finler aponta a Film d’Art como a especialista no gênero do drama histórico, tendo L’Assassinat du Duc de Guise (1908) como marco. Entretanto, apesar do figurino e dos cenários considerados notáveis, na opinião de Finler o caráter de teatro filmado imprimiriam um ar fora de moda para o filme já em 1912. No que diz respeito à comédia, os franceses estabeleceram um padrão que seria seguido pelos norte-americanos. Começando pela comédia pastelão de André Deed como “Boireau” numa série de curtas-metragens produzidos pela Pathé entre 1906 a 1908, seguido por “Rigadin” (Charles Prince) e Max Linder, o mais famoso e bem sucedido de todos. Por volta de 1910, Linder escrevia seus próprios roteiros e logo se tornaria o cômico mais conhecido no mundo. Um escritor-diretor-ator cujo estilo antecipou aquele de figuras norte-americanas como Buster Keaton, Harold Lloyd e do inglês (que se mudou para os Estados Unidos) Charles Chaplin.


“De fato, os anos de pico de Max, em torno de 1911-15, também coincidiram com a época dourada do início da comédia francesa. Para não ser ultrapassada, a Gaumont possuía suas próprias estrelas da comédia, e uma preferência pela filmagem em locação. Por exemplo, Léonce Perret desenvolveu e estrelou uma série de curtas populares de comédia, enquanto Louis Feuillade dirigiu inúmeras comédias com crianças, começando com a série Bebé, que aconteceu de 1910 a 1912, seguida por um segundo grupo apresentando o precoce garoto Bout-de-Zan. A série La Vie Drôle, na mesma época, estrelada por Marcel Levesque, enquanto Jean Durand dirigiu o acrobático Ernst Bourbon como ‘Onésine’. Houve muitos outros, também, bem menos lembrados hoje. Ainda assim, estes cômicos citados aqui dão alguma ideia da superioridade dos franceses nessa época. Além disso, Emile Cohl, o excelente pioneiro do desenho animado, teve seu início na Gaumont em 1907, primeiro como escritor, depois como diretor de filmes de truque. Seus cartoons com desenho simples, mas espirituosos e divertidos, apresentavam um personagem chamado ‘Fantoche’, que certamente merece ser incluído entre as estrelas da comédia francesa nos anos antes da guerra” (24)

Apresentados como uma série de episódios curtos, o filme de detetive ou crime foi primeiramente desenvolvido pelos franceses como um precursor do formato de seriado cinematográfico popular que viria a se difundir. Victorin Jasset, diretor artístico da pequena companhia Éclair, foi o primeiro a popularizar esse gênero. Começando com Nick Carter, le Roi des Détectives em 1908, na sequência três anos depois veio Zigomar e o ciclo continuou com Zigomar contre Nick Carter (1912). A Gaumont responderia através do gênio do diretor Louis Feuillade, ele foi o primeiro a perceber que o suspense e a fantasia, ou mesmo uma atmosfera de sonho ou sensação de ameaça, poderia ser criada na tela ao se filmar de forma naturalista as ruas desertas de Paris. Começando com seu seriado Détective Dervieux em 1912-13, e seguindo com cinco episódios do super criminoso Fantômas em 1912-14. O grande sucesso de duas séries no final de 1915 abriu um filão que frutificou durante anos: Les Vampires (estrelando Musidora e Edouard Mathé), de Feuillade, e Les Mystères de New York, uma produção franco-norte-americana da Pathé, estrelando Pearl White.

“Certo número de filmes realistas e dramas dignos de nota foram produzidos durante os anos de pré-guerra, extraindo sua inspiração da literatura naturalista do século dezenove. Tais temas dramáticos sérios se prestam ao tratamento mais amplo tanto no formato de seriado quanto em longas-metragens. Aqui também foi Feuillade que desempenhou um papel maior iniciando o ciclo na Gaumont em 1911, com uma série de dramas domésticos chamada La Vie telle qu’elle Est (A Vida Como Ela É). Na mesma época, Gerard Bourgeois (1874–1944) [dirigiu um curta-metragem, refilmagem de Les Victimes de l’Acoolisme (1911), baseado no romance A Taberna (L'Assommoir, 1877), de Émile Zola - Ferdinand Zecca já o havia realizado em 1902]. Outros notáveis exemplos desse gêneros são Au Pays des Ténèbres (1912), de Victorin Jasset, filmado como parte de sua série Les Batailles de la Vie, também inspirada em Zola e filmada em locação no norte da França. Mas o ponto alto desse ciclo foi alcançado por Albert Capellani, com suas memoráveis adaptações para a tela de Os Miseráveis [(1913)], de Victor Hugo, e Germinal (1913), de Zola” (25)

O Primeiro Império do Cinema: A Epopeia Pathé Frères


A época dourada do império Pathé se inicia em 1899, apesar de alguns reveses em 1912, o empreendimento se manterá até 1914, apenas para se dissolver logo após o termino da Primeira Guerra Mundial. Curiosamente, a aventura dos irmãos Charles e Émile começa em 1896, ao inaugurarem em Paris uma sociedade chamada Pathé Frères com o objetivo de fabricar aparelhos elétricos, especialmente fonógrafos (toca-discos). Em 1897 eles recebem a visita de Claude Grivolas, que compra alguns dos pequenos filmes que os irmãos estavam produzindo. Grivolas conta para os dois que aquele material é muito apreciado nos meios financeiros da cidade de Lyon e propõe sociedade. Naquele mesmo ano, os irmãos Pathé, Grivolas e o financista Jean Neyret se associam para fundar a Compagnie Générale de Cinématographes, Phonographes et Pellicules (26). (imagem acima, Le Printemps, direção Louis Feillade, 1909)

Primo pobre do investimento, o cinematógrafo somente suplantaria as vendas do fonógrafo a partir de 1907. Em Vincennes, cidade da periferia de Paris, eles montar uma fábrica onde, entre outras coisas, podiam montar cenas a serem filmadas. Henri Bouquet explica que, ao contrário dos irmãos Lumière, Thomas Edison (1847-1931) ou Léon Gaumont (1864-1946), o objetivo principal dos irmãos Pathé é a exploração comercial da nova tecnologia. Para eles, o interesse em inovações tecnológicas surgiria apenas caso houvesse algum valor comercial imediato. A companhia se dedica muito pouco a pesquisas sobre a sincronização entre imagem e som, concentrando seu investimento na fabricação e venda de aparelhos e película, tanto para seu próprio uso quanto para venda aos outros grupos do ramo (que se multiplicavam pela Europa).

Em 14 de abril de 1900, a Pathé Frères se apresenta na Exposição Universal. O responsável pelo balcão da companhia é Ferdinand Zecca (1864-1947). Com o grupo desde 18989, Zecca tinha como função gravar canções e monólogos (para o fonógrafo). Charles Pathé o chama então para “fazer cinema”, já que acreditava que a companhia estava pronta para passar da manufatura de cartelas de imagens à exploração séria de filmes de ficção e noticiários. Zecca começou como assistente do diretor, mas logo tomou seu lugar. Ele vai começar plagiando os outros, especialmente na área cômica, mas realiza obras originais logo em 1901, como os curtas-metragens Soupière Merveilleuse, La Mégère Récalcitrante, A la Conquête de l’Air, Tempête dans un Chambre à Coucher, até chegar ao que chamaria de “a primeira peça cinematográfica”, L’Histoire d’un Crime. (imagem abaixo, L'orgie Romaine, direção Louis Feillade, 1911)


Nessa época Zecca inicia seus trabalhos com filmes mais longos, que alcançariam a marca de 1500 cópias vendidas. Um sucesso que deve muito as projeções em parques de diversão e feiras, aonde o cinema rapidamente vai se tornando a principal atração. Concomitantemente, Charles envia um representante da área de toca-discos da empresa à Inglaterra e Alemanha para divulgar os filmes da Pathé. O sucesso da empreitada levaria a outras viagens a Itália, Espanha, Áustria e Rússia. O sucesso do empreendimento na França e no estrangeiro leva Charles a investir no aumento das instalações (um dos locais era próximo ao estúdio de Georges Méliès), onde numerosos filmes foram realizados até 1904. Bousquet ressaltou que esse aumento das instalações permitiu a produção de filmes em quantidade, como um bem de consumo barato.

De 1902 a 1904 todas as sociedades cinematográficas experimentam tempos de efervescência. Mas particularmente a Pathé Frères, que recebe pedidos de filmes do mundo inteiro. Em 1904, a Pathé abre seu primeiro escritório nos Estados Unidos, sob os protestos de Thomas Edison. Ele acreditava que ter mais direito do que os franceses de explorar o mercado norte-americano, chegando a entrar com um processo na justiça - não deu em nada, apenas atrasou alguns projetos da Pathé e de Georges Méliès, cuja Star Film já estava por lá desde 1902. Em pouco tempo a Pathé abocanha metade do mercado norte-americano, ainda que apenas em 1907 tenha começado a construir um laboratório da empresa em Bound Brook, Nova Jersey, e somente em 1910 construiria um teatro em Jersey City. Enquanto isso, desde 1904 também haviam se instalado em Moscou e Bruxelas. Em 1905, serão abertas sucursais em Berlim, Viena e São Petersburgo. Portanto, a Pathé trabalhava ao mesmo tempo na produção (fabricava película e criava seus próprios filmes) e na comercialização (com a instalação de pontos de venda de seus produtos, toca-discos, cilindros fonográficos, película, câmeras, filmes).

A partir de 1906, a Pathé Frères abrirá muitas salas de cinema em Paris. Com uma cláusula de exclusividade para seus filmes, a Pathé estabelece um monopólio através de seus contratos em nove Estados franceses e inclui toda a Suíça. Os concorrentes se apressam em abrir outras salas e em pouco mais de um ano Paris já conta com 100 salas de cinema! Vinte delas são afiliadas à Pathé, que alimenta duzentos cinemas na França e Bélgica – as projeções eram de excelente qualidade e cada sala possuía sua própria orquestra sinfônica, cantores e, às vezes, uma equipe para reproduzir ruídos (27). É então que outra inovação será introduzida no setor da distribuição: a Pathé passa a conceder o monopólio a grupos regionais para a reprodução de seus filmes, fornecendo a esses grupos todo o material necessário, garantindo a exclusividade para eles (e deles) e recebendo uma porcentagem dos lucros. Quem saiu perdendo foram os cinemas de feiras, que continuavam utilizando material comprado e não contavam com o apoio técnico e financeiro da Pathé. Em 1909, esse sistema foi aceito como nova norma pelo Congresso Internacional dos Produtores de Filmes, sediado em Paris.


Da mesma forma, em 1909 na Itália a Pathé organizou uma rede de concessionárias regionais que cobriu todo o país. Já na Rússia em 1912 a sorte foi outra, pois houve resistência por parte dos possíveis concessionários – Bousquet acredita que a proximidade da guerra possa também ter impedido a execução desse projeto em particular. Dessa forma, fica claro que a Pathé viu a segurança de seu império mais na distribuição do que na produção. Enquanto aumenta o número de filmes (assim como seu tamanho) que saem das fábricas da Pathé, eventualmente ela começa a perder alguns de seus membros para as companhias italianas. Além do aumento do número de rivais da Pathé na Itália e na Dinamarca. (imagem acima,  Les Fredaines de Pierrette, também conhecido pelo título Le départ d'Arlequin et de Pierrette, 1900, direção Alice Guy [1873-1968], considerada a primeira mulher cineasta francesa)

Em 1908 Le Film d’Art surge no cenário com o objetivo de produzir filmes a partir de roteiros assinados por autores contemporâneos, com a ajuda de artistas consagrados. A sociedade Pathé Frères, que segundo Bousquet já devia estar pensando em fazer a mesma coisa, se apressa em oferecer um contrato para cuidar da parte técnica e da venda dos filmes. Ainda naquele ano, se constituirá a Société Cinématographique des Auteurs et Gens de Lettres (SCAGL), que tem por objetivo a adaptação, composição e representação cinematográfica, fotográfica e fonográfica, tanto na França quanto no estrangeiro, de obras literárias e dramáticas de autores franceses ou não, mortos ou vivos. O maior acionista individual é Charles Pathé.  A estréia da SCAGL se dá já em 1908, com dois filmes, L’Empreinte e, sobretudo, L’Assassinat du Duc de Guise, apresentado por dois atores da Comédie Française, com acompanhamento musical de Camille Saint-Saëns (1835-1921).

O ponto culminante da SCAGL acontecerá em 1909, com a aparição do primeiro filme francês de longa-metragem, L’Assommoir (direção Albert Capellani). Neste ano também surgiram obras realizadas por empresas estimuladas pela Pathé na Rússia e Itália, sem falar no filme do doutor Jean Comandon num laboratório montado pela Pathé, La Cinématographie des Microbes. Empregando cineastas e operadores de câmera fornecidos pela Pathé (esperando formar sua própria equipe), a Film d’Arte Italiana realizará A Dama das Camélias (La Dame aux Camélias), Carmem e Otelo – em pouco tempo o cinema épico-histórico italiano será destaque no mundo inteiro, filmes como Cabiria (direção Giovanni Pastrone, 1914) inspirariam diretores como o norte-americano D. W. Griffith nos cenários de seu próprio épico, Intolerância (Intolerance, Love’s Struggle Throughout the Ages, 1916).


De acordo com Gian Piero Brunetta, a Itália não teria rivais em relação a adaptações de obras literárias para o cinema. Entretanto, se nos primeiros tempos o desinteresse dos literatos era grande, em pouco tempo eles passaram a bater nas portas das produtoras em busca de trabalho. O caso de Cabiria é um exemplo disso, o escritor Gabriele D’Annunzio é geralmente apontado como tendo realizado o roteiro do filme. Na verdade, afirma Brunetta, D’Annunzio recebera os créditos indevidamente, tendo sido ele apenas responsável pelo resumo e a transcrição do texto para os intertítulos – o que, talvez, por si só demanda uma grande capacidade de concisão (28). (imagem acima, Saharet, boléro, direção Alice Guy, 1905)

Escritores e poetas utilizados pela SCAGL, Brunetta cita nomes como Apollinaire, Antonin Artaud, Antoine e Colette, Karl Kraus, Hofmannsthal, Blasco Ibanez, Jacinto Benavente, Arthur Schnitzler e Mayakovsky. A proposta de Charles Pathé era procurar por obras nacionais nos próprios países, ele levou ao mercado russo filmes feitos na Rússia, por artistas russos, de acordo com roteiros russos. Charles utilizou o mesmo método nos Estados Unidos. The Girl From Arizona foi o primeiro filme norte-americano da Pathé Frères, realizado apenas um mês após a instalação em 1910 do primeiro estúdio da companhia nos Estados Unidos.

Durante o período entre 1906 e 1908, a Pathé já havia liderado o mercado cinematográfico de Nova York com um terço dos filmes apresentados naquela cidade. Mas a infraestrutura ainda era vulnerável, daí a ideia de inaugurar um estúdio naquele país. A Pathé consegue vencer a Eastman-Kodak (seu fornecedor norte-americano de película virgem) e inicia sua própria produção. Em 1909 é criado nos Estados Unidos um orgão oficial de censura, o National Board of Censorship. Em 1912, eles decidem interditar ou mutilar diversos filmes estrangeiros (29). 


A Pathé se defende através de campanhas publicitárias para as produções da Film d’Art e da SCAGL, mas pouco a pouco são forçados a diminuir as importações de filmes. No extremo-oriente, a Pathé Phono China é um fiasco financeiro – com lucro de apenas alguns mil francos em 1911, nada se comparado aos milhões de suas receitas na Europa. A Pathé se volta para a Europa central e oriental, regiões controladas pela seção fonográfica da empresa. Ela envia numerosas cópias de seus novos filmes para os impérios Alemão, Russo e Austro-Húngaro. Desde 1908, a companhia havia invadido o mercado alemão. No espaço de um ou dois anos ela já controlava talvez um terço do mercado de filmes. O esquema era idêntico nos outros dois impérios, embora a concorrência fosse crescente na Alemanha (com a Deutche-Bioscop e a PAGU) e na Rússia (com a Khanjonkov). Na Itália, onde a Pathé já estava faz tempo, acontece uma diversificação ainda maior dos investimentos. (imagem acima, Au bal de Flore, direção Alice Guy, 1900)

Em 1913 a Pathé começa a dar mostras de perda de energia. Apesar disso, lançará Os Miseráveis, uma superprodução em quatro partes, baseado no livro de Victor Hugo (1802-1885). De acordo com Bouquet, para o ano seguinte a companhia anuncia Germinal, baseado no livro de Émile Zola (1840-1902). Em 1915 a filiar norte-americana é perdida, a SCAGL será fechada, enquanto a Film d’Arte italiana e a Literaria, antes preciosas, tornam-se um peso morto. 

A Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, mudará para sempre a face da Pathé. Com o final da guerra a concorrência aumenta, além do cinema épico-histórico italiano poderíamos citar pelo menos dois exemplos em ambos os lados do oceano atlântico. Os norte-americanos D.W. Griffith e Mary Pickford, ele um diretor de sucesso e ela uma das grandes divas do cinema mudo, juntam-se aos atores/diretores Douglas Fairbanks e o inglês Charles Chaplin para fundar a distribuidora United Artists em 1919 (no princípio, apenas para se livrar das pressões dos estúdios e distribuidores daquele país) (30). Os alemães, por sua vez, mesmo tempo perdido a guerra inauguraram um grande estúdio (por iniciativa dos militares), conhecido pela sigla UFA, responsável por grande parte da idade de ouro do cinema daquele país. Os nomes de atores como Emil Jannings, Conrad Veit (muito lembrado por sua atuação como o sonâmbulo Cesare em O Gabinete do Doutor Caligari, Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920) e as atrizes Lil Dagover, Asta Nielsen e Pola Negri, são destaques na ficha técnica de qualquer filme do período. Diretores alemães da mesma época são, como F.W. Murnau e Fritz Lang, figuras incontornáveis da história do cinema mundial. (imagem abaixo, O Inumano, direção Marcel L’Herbier, 1924)


No final da década de 20 do século passado, a Pathé saúda os novos tempos abandonando o cinema silencioso. Na sequência, mais uma guerra mundial. Então a retomada do pós-guerra e a nova ordem mundial (também no mundo do cinema). Fundada em 1896, depois de muitas metamorfoses e trocas de donos e nomes, a Pathé ainda está por aí. Felizmente, Méliès e companhia não foram totalmente esquecidos, mas hoje os imperadores são outros e falam inglês.

Muito identificado com a Nouvelle Vague francesa, a Nova Onda da segunda metade do século 20, o cineasta italiano Bernardo Bertolucci seguia o costume de fazer citações de outros filmes em suas obras. Certa vez citou um filme francês que já não era da fase muda, mas bem poderia ser, O Atalante (L’Atalante, 1934), de Jean Vigo – que escolheu a cidade francesa de Nice, segundo pólo cinematográfico daquele país depois de Paris (31). Na cena à beira de um canal em Paris, um casal conversa quando uma boia é jogada na água. Enquanto ela afunda (seria uma metáfora em relação ao cinema francês?) podemos ler a inscrição “Atalante”. O filme de Bertolucci, gravado originalmente em inglês, apropriadamente se chama O Último Tango em Paris (Ultimo Tango a Parigi, 1972).


Exceto por pequenas alterações que não modificam o texto original, A Primeira Onda do Cinema Francês foi publicado originalmente na Revista Universitária do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos (RUA/UFSCar), São Paulo em 15 de fevereiro de 2012

Leia também:

Notas:

1. HAMUS-VALÉE, Réjane. Les Effects Spéciaux. Paris: Cahiers du Cinéma/SCÉRÉN-CNDP, 2004. P. 18.
2. Idem, 18-9.
3. Ibidem, 20.
4. PINEL, Vincent. Le Montage, l'Espace et le Temps du Film. Paris: Cahiers du Cinéma/SCÉRÉN-CNDP, 2001. P. 5.
5. Idem, pp. 5-9, 12-3, 18, 30-4.
6. Ibidem, pp. 14-5.
7. MARINONE, Isabelle. Cinema e Anarquia. Uma História “Obscura” do Cinema na França (1895-1935). Tradução Adilson Mendes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial Ltda, 2009. P. 32.
8. Idem, pp. 22, 27, 32, 34-6.
9. Ibidem, p. 32.
10. Ibidem, p. 35.
11. Ibidem, pp. 35-6.
12. Ibidem, p. 186n333.
13. Ibidem, p. 186n332.
14. Ibidem, p. 109.
15. BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009. P. 154.
16. Idem, pp. 157, 166.
17. Ibidem, p. 168.
18. AMENGUAL, Barthélemy. Comique. In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques LEBOUTTE, Patrick (orgs). Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991. P. 108.
19. BOLOGNE, Jean-Claude. História do Pudor. Tradução Telma Costa. Rio de Janeiro: Elfos Editora, 1990. Pp. 285-7.
20. PAÏNI, Dominique. D’Alcy (Jehanne). In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques LEBOUTTE, Patrick (orgs). Op. Cit, 1991. P. 123.
21. MASSON, Alain. Muet. In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques LEBOUTTE, Patrick (orgs). Op. Cit, 1991. P. 246.
22. FINLER, Joel W. Silent Cinema. World Cinema Before the Coming of Sound. London: B. T. Batsford Ltd, 1997. Pp. 37-40.
23. Idem, p. 38.
24. Ibidem, p. 39.
25. Ibidem, p. 40.
26. BOUSQUET, Henri. L’âge d’or. In: KERMABON, Jacques (org.). PATHÉ. Premier Empire du Cinéma. Paris: Éditions du Centre Georges Pompidou, 1994. Pp. 48-55, 61-73.
27. Idem, p. 69.
28. BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A Guide to Italian Film From its Origins to the Twenty-first Century. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2009. Pp. 31, 32, 37.
29. BOUSQUET, Henri. Op. Cit., pp. 66, 70.
30. FINLER, Joel W. Op. Cit., p. 137.
31. MARINONE, I. Op. Cit., p. 136.

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