“Para nossa
infelicidade, o
mundo é real. E
eu, para minha
infelicidade,
sou Alfa 60”
A Capital da Dor
Lemmy Caution chega a Alphaville com seu carro branco e se registra no hotel como Ivan Johnson, repórter do jornal Fígaro-Pravda. É levado ao seu quarto por uma sedutora, que se oferece para entretê-lo. Lemmy recusa e logo está lutando e atirando num policial que se encontrava em seu banheiro. Expulsa a sedutora e a seguir é avisado que a senhorita Natasha von Braun está chegando a seu quarto. Ela anuncia que será sua acompanhante enquanto ele estiver na cidade. Lemmy descobre que Natasha não sabe o significado da palavra “amor”. Descobre também que ela é filha de um cientista renegado, o professor von Braun. Lemmy sai em busca de Henry Dickson, um antigo espião. Ele está mal e, mas antes de morrer avisa a Lemmy que deve destruir Alfa 60 e lhe passa um livro de poesias, Capital da Dor. Lemmy vai ao encontro de Natasha numa conferência de Alfa 60, mas sai antes do fim e Natasha tenta explicar o objetivo daquilo. Na recepção de gala, que consiste numa seção de fuzilamentos de dissidentes, Lemmy reconhece o professor von Braun, mas não consegue falar com ele.
“‘Estamos próximos ou
distantes de nossa consciência?’
Há palavras que eu não
compreendo: ‘consciência’”
Natasha tentando ler
Capital da Dor
Levado para um interrogatório com Alfa 60, Lemmy é apresentado ao centro nervoso enquanto o computador processa as respostas daquele estranho homem. Nessa ocasião, ele será informado que Alphaville declarou guerra ao país de Lemmy, as terras exteriores. De volta ao hotel, Lemmy mostra o livro a Natasha e pergunta se ela reconhece algumas das palavras (banidas pelas autoridades de Alphaville) nos poemas. Lemmy a faz entender que apagaram da memória dela que ela não nasceu em Alphaville, mas nas terras exteriores. Ele também diz que está apaixonado por ela. A polícia chega e o leva para interrogatório com Alfa 60, que já conhece a verdadeira identidade dele. Mas Lemmy propõe um enigma ao supercomputador que quando resolvido garantirá sua destruição. Foge de lá e procura o professor Braun, mas não consegue convencê-lo a mudar de lado. Enquanto isso, Natasha havia sido presa, mas Lemmy a liberta e fogem para as terras exteriores enquanto Alphaville se destrói. Lá pelas tantas, Natasha consegue dizer “eu te amo” para Lemmy.
O Futuro no Presente
“Teus olhos
retornaram
de um
país arbitrário,
onde ninguém nunca
soube o que
é olhar”
Natasha lendo
Capital da Dor
onde ninguém nunca
soube o que
é olhar”
Natasha lendo
Capital da Dor
Enquanto ainda era apenas um projeto em fase inicial de filmagem, chamava-se provisoriamente Tarzan versus IBM (1). Quando o filme tomou corpo seu nome mudou para Alphaville (Alphaville. Une Étrange Aventure de Lemmy Caution, 1965). É o nono longa-metragem de Jean-Luc Godard em cinco anos desde sua estréia com Acossado (À Bout de Souffle, 1960), sendo que no mesmo ano ainda dirigiria O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou) e Masculino Feminino (Masculin Féminin). Esteticamente, o filme combina ficção científica e filme noir, um hibridismo típico do Godard da década de 60 do século passado. O cineasta não montou cenário e também não utilizou efeitos especiais, sem interesse nisso e sem dinheiro se o tivesse, Godard simplesmente saiu pelas ruas de Paris em 1965. Usando o que encontrava a mão, focalizou detalhes arquiteturais e elementos tecnológicos para representar um futuro latente no presente. Optou pelo preto e branco, sugeriu Chris Darke, porque a presença do futuro demandava que esta ficção científica fosse filmada na luz do passado, o claro-escuro assombrado do expressionismo alemão e o monocromático do filme noir.
“O desespero não tem
asas nem o amor. Mas estou
tão vivo quanto meu amor
e meu desespero”
Lemmy lê mais exemplos de
Cidade da Dor para Natasha
Naquela época Paris estava atravessando uma fase de modernização. Godard capturou esse clima, mas o fez de uma forma tão abstrata (salvo pela imagem nos créditos iniciais, nenhum anúncio, outdoor ou coisas do gênero; no extremo oposto de filmes como Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni, 1970) que Alphaville não parecesse um filme datado (salvo, talvez, pelos computadores estilo “geladeira” como fitas de rolo enormes). Em Novo Mundo (Le Nouveau Monde, episódio de Rogopag. Relações Humanas, 1962) já se ensaiam alguns temas que seriam desenvolvidos em Alphaville. Após uma explosão atômica sobre Paris, um homem descobre que todos a sua volta se transformaram, que o mundo mudou e ele é o único humano remanescente entre uma multidão de mutantes. De acordo com o novelista inglês J. G. Ballard, filmando as estruturas mais modernas que Paris podia oferecer em 1965 (como o prédio da Radio Televisão Francesa), além de uma cuidadosa seleção de detalhes, permitiram que Godard mostrasse na paisagem do presente as fantasias da ficção científica como algo tão real quanto um edifício de escritórios (os prédios onde só se vê uma fachada de janelas), um aeroporto ou uma campanha presidencial.
Outro Mundo é Possível
Godard admitiu ser incapaz de imaginar a sociedade do futuro, mesmo que fosse apenas uma projeção de vinte anos. O que ele fez em Alphaville foi acompanhar um homem de vinte anos antes que descobre o mundo do futuro e não consegue acreditar, mas que deverá ser capaz de enfrentar a “tirania da máquina” com as únicas armas de que dispõe: alguma astúcia, uma arma carregada e poesia lírica. Além disso, Lemmy e Natasha comentem o “crime de amar-se”. Em Alphaville, amor não significa transgressão carnal, como em parte seria o caso de Winston Smith e Julia em 1984 (George Orwell, 1949, com versão cinematográfica dirigida por Michael Radford, 1984), mas um romantismo casto. Amor é um crime porque permite que a imaginação dos amantes construa a idéia de que outro mundo (diferente daquele que Alfa 60 determinou) é possível. A imaginação não-policiada é o inimigo soberano, portanto na distopia de Alphaville ninguém permitirá que você sonhe – no início do filme, quando Lemmy chega ao hotel quarto do hotel a sedutora que o acompanha indica o local dos tranqüilizantes no banheiro.
Alphaville
apresenta uma
espécie de realismo em
curto-circuito, que serve
para tornar estranha uma realidade que já é vista
como algo muito
estranho (2)
Os filmes de Godard desse período deixam explícitas as ligações entre a emergente sociedade de consumo, a aparência de suas estruturas e objetos, assim como a inevitável transformação das pessoas em objeto. Marie-Claire Ropars-Wuilleumier apontou a proximidade de Alphaville com Uma Mulher Casada (Une Femme Mariée, 1964). Um jovem casal, Charlotte e Pierre, vivem num recém construído apartamento bloco de apartamentos em Paris. Ele é um engenheiro e ela uma jovem mãe. É a exploração da vida emocional dela, dividida entre seu marido e seu amante que estrutura a trama. Uma divisão que espelha a existência fragmentada dela dentre os muitos incentivos ao consumo que a rodeiam. Em Alphaville isso se estende até a perda da linguagem, que acontece quando os personagens de Godard começam a falar na linguagem da propaganda. A ficção científica, Darke explica, dramatiza a pergunta “o que aconteceria se...?”. Alphaville captura a projeção convencional da ficção científica de um futuro distópico e sugere: “Esqueça ‘o que se’?”, olhe a sua volta! ‘Se’ já está acontecendo!”. A estética da Nouvelle Vague de filmar nas ruas atinge a apoteose em Alphaville.
Para tanto, Darke explica, Godard filmou em algumas das estruturas mais novas de Paris, incluindo o prédio circular da Rádio e Televisão francesa (ORTF) e o prédio da Esso em La Défense, e os blocos de apartamentos de baixo custo sarcasticamente encaixados no filme como “hospitais da longa doença” – centros de reeducação para os “desajustados” de Alphaville. Em 1965 a cidade moderna e sua periferia passaram por uma obsessiva geometrização e design padronizado, que foi acompanhado de julgamentos relativos a isolamento, alienação e automação. Na época de Alphaville, a cidade moderna foi associada a uma imagem diatópica, que vai piorando na medida em que a câmera se afasta do centro antigo. Alphaville é quase toda constituída de não-lugares, zonas de transição (corredores, escadarias, escritórios, quartos de hotel) intercaladas com sua característica sinalização (setas, números, luzes de neon). Mas o espaço narrativo esculpido por Godard, conclui Darke, é um labirinto, embrulhado e estranho.
“Então, ninguém aqui sabe
o que quer dizer a palavra 'consciência'? Paciência!”
Antonioni na Babilônia (I), (II), (final)
Chaplin e o Macarthismo
O Grande Irmão Está Vendo Você
Truffaut e Seus Livros
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)
Notas:
1. DARKE, Chris. Alphaville. New York: I.B. Tauris, 2005. Pp. 10, 12, 26, 27, 30, 31, 33.
2. Idem p. 30.
Chaplin e o Macarthismo
O Grande Irmão Está Vendo Você
Truffaut e Seus Livros
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)
Notas:
1. DARKE, Chris. Alphaville. New York: I.B. Tauris, 2005. Pp. 10, 12, 26, 27, 30, 31, 33.
2. Idem p. 30.