No Decurso do Tempo (final)
Tempo de Criança e Lição de Cinema
Uma das citações mais interessantes do filme acontece na seqüência em que um grupo de crianças espera que Bruno e Robert resolvam os problemas técnicos para dar início à seção de cinema. Eles estão atrás da tela, quando Robert acende a luz para ajudar Bruno e percebem suas sombras projetadas na tela - como num teatro de sombras. Sabem que as crianças podem vê-los e partem para cenas de comédias. Elas se divertem, esquecendo do filme que deveriam assistir (imagem acima). Pré-história do cinema com suas sombras. Cinema da infância/infância do cinema (3).
Além disso, ao mesmo tempo em que traduz certo aspecto da cultura alemã, o expressionismo foi um grito de alerta para os horrores da guerra – no caso, a Primeira Guerra Mundial. Subindo ao poder, Hitler irá banir obras expressionistas como arte degenerada. O jogo de luz e sombra no cinema expressionista traduz também um aspecto soturno (melancólico e sombrio) e solitário que para alguns caracteriza o espírito germânico. Portanto, Bruno admitir que gostou de visitar o lugar também carrega esta carga simbólica. A seqüência não mostra apenas um lugar físico, mas também uma época do cinema que teria sido capaz de trazer da literatura alemã um traço básico da herança cultural daquele país.
A andança sem rumo ali seria também indicação do soturno e solitário germânico. Mesmo que não houvesse por trás da errância física e espiritual de Robert e Bruno o fantasma do passado/nazismo, a herança expressionista sugere uma visão de mundo angustiada. Como ressaltou Lotte Eisner, a literatura expressionista tinha um caráter contraditório característico do “espírito alemão”. Do ponto de vista da História da Arte, ainda que o expressionismo reagisse contra o impressionismo e o naturalismo, compartilhava com ambos alguns elementos. Com relação ao claro-escuro do cinema expressionista, Eisner esclareceu que “a verdadeira Alemanha (...) prefere muito naturalmente a penumbra à luz” (6).
“O expressionista já
não vê: ele tem ‘visões’”.
(...)”A cadeia de fatos (...) não
existe; só existe a visão
interior que provocam“
Lotte Eisner, citando
Kasimir Edschmid
não vê: ele tem ‘visões’”.
(...)”A cadeia de fatos (...) não
existe; só existe a visão
interior que provocam“
Lotte Eisner, citando
Kasimir Edschmid
Eisner explicou que na época do cinema mudo as cópias eram tingidas de marrom, verde ou azul escuro (técnica conhecida como viragem), principalmente nas cenas noturnas – que a película de então era incapaz de reproduzir. Portanto, as nuanças eram maiores do que encontramos na maioria das cópias que chegaram a nós. Além disso, continua Eisner, existe no espírito alemão predileção pelo marrom, o acastanhado (o sépia em alguns filmes mudos) e fatalmente a sombra. O marrom, ausente do arco-íris, estaria na fronteira do claro-escuro (7). (nas três imagens acima, o clima misterioso e soturno da citação expressionista de Wim Wenders durante a visita à casa da mãe de Bruno)
“Meu pai disse que filme é a arte de ver e por isso não consigo mais mostrar esses filmes que são simplesmente a exploração de tudo que se possa explorar nos olhos e na cabeça das pessoas. Mas eu não exibo filmes dos quais as pessoas saem estarrecidas e anestesiadas de ignorância, nos quais qualquer vontade de viver é destruída, nos quais morrem qualquer sentimento por si mesmo e pelo mundo. Meu pai queria que eu mantivesse um cinema aqui, neste lugar. Eu também. Mas, do jeito que está, é preferível não ter mais cinema a ter um como o que temos agora”
O Presente é Mais o Passado do que o Agora
Quando entra no caminhão,
as duas iniciais se refletem
no rosto dele: WW (Weisse
Wand / Wim Wenders)
“É preciso mudar tudo!” Com esta frase num bilhete Robert se despede de Bruno. Cada um toma seu rumo, acompanhamos uma espécie de dança entre o caminhão de Bruno e o trem que leva Robert. No vai-e-vem entre caminhos paralelos e cruzamentos, desenha-se a metáfora visual da vida. Por um momento, juntos. Noutro, juntos, mas separados. Como num jogo entre claro-escuro, as pessoas parecem tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Como lidar com as memórias do passado? O que fazer com um passado que não para de voltar? O passado sempre foi um problema para a geração pós-guerra na Alemanha. Cineastas como Wenders, que nasceu em 1945, sabe disso. O legado nazista era tabu, uma vez que a geração mais velha, conscientemente ou não, baniu todas as questões sobre o passado recente alemão. Em meados da década de 60, depois do julgamento de Adolf Eichmann (10), a geração mais nova questionou seus pais a respeito do envolvimento com Hitler. Uma crise irrompeu entre as gerações - os mais velhos eram sempre considerados culpados (11). (imagem abaixo, à direita, Fritz Lang parece velar sobre a velha proprietária de um cinema, numa Alemanha Ocidental sufocada pela pornografia)
“Gostaria de falar rapidamente sobre a solidão na Alemanha. Ela me parece mais escondida e ao mesmo tempo mais dolorosa do que em qualquer outro lugar. (...) O medo é considerado um sinal de vaidade ou também é sentido como fraqueza. Por isso a solidão na Alemanha é mascarada. Mascarada por todos esses rostos desleais, brilhantes e desalmados que vagueiam por supermercados, centros de lazer, calçadões e turmas noturnas de academias de ginástica. As almas mortas da Alemanha” (13)
Como Werner Herzog, Wim Wenders foi filmar em outros países – embora seus personagens geralmente se comportassem como exilados. Quando filmou na Alemanha, Herzog o fez de um ponto de vista pré-humano ou infra-humano, com uma nuvem de ratos em Nosferatu, o Vampiro da Noite (Nosferatu, Phantom Der Nacht, 1979) - refilmagem do clássico do cinema mudo expressionista de Murnau. Já Wenders filmaria do ponto de vista supra-humano de um anjo, como em Asas do Desejo: “[Os filmes de Wenders e Herzog] cavam sempre a mesma metáfora da Alemanha: um país transformado em deserto de pedra, ferro, betume ou clorofila;...
...porque o homem o
desertou; uma sociedade inumana porque destruiu
o tecido social do qual o
homem é feito” (14)
Leia também:
O Triângulo Amoroso de Jean Eustache
Arte Degenerada
Wim Wenders e o Vídeo no Cinema
Yasujiro Ozu e Suas Ironias
Uma Fantasia Nostálgica do Paraíso
Berlin Alexanderplatz (final)
Notas:
1. BOUJUT, Michel. Wim Wenders. Une Voyage Dans ses Films. Paris: Flammarion, 1986. Pp. 84-5.
2. Idem, pp. 88-9.
3. Ibidem, p. 85.
4. Ibidem, pp. 86 e 90.
5. Ibidem, p. 11.
6. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Pp. 19, 47.
7. Idem, pp. 42 e 47.
8. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. Pp. 23-4, 67.
9. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 94. A embalagem do dvd de Quarto 666, lançado no Brasil pela Europa Filmes, apresenta a sinopse de outro filme dirigido por Wenders, O Amigo Americano - também lançado pela Europa. Em Quarto 666 existe uma trilha de comentários do próprio Wenders feita em 2002, onde ele rememora a época da gravação. Quando ele anuncia Rainer Werner Fassbinder, as legendas da Europa Filmes anunciam Noel Simsolo!
10. Notório carrasco nazista encontrado pelo serviço secreto israelense, julgado e enforcado em 1962...
11. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. Massachusetts: Cambridge University Press, 1989. P. 76.
12. Idem, p. 8.
13. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., 1989. P. 210. Como a tradução das legendas do dvd do filme, lançado no Brasil pela Europa Filmes, deixa a desejar, utilizei minha própria tradução da citação do livro de Elsaesser.
14. LARDEAU, Yann. Rainer Werner Fassbinder. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1990. Pp. 246-7.
6. EISNER, Lotte H. A Tela Demoníaca. As Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo. Tradução Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Pp. 19, 47.
7. Idem, pp. 42 e 47.
8. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. Pp. 23-4, 67.
9. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 94. A embalagem do dvd de Quarto 666, lançado no Brasil pela Europa Filmes, apresenta a sinopse de outro filme dirigido por Wenders, O Amigo Americano - também lançado pela Europa. Em Quarto 666 existe uma trilha de comentários do próprio Wenders feita em 2002, onde ele rememora a época da gravação. Quando ele anuncia Rainer Werner Fassbinder, as legendas da Europa Filmes anunciam Noel Simsolo!
10. Notório carrasco nazista encontrado pelo serviço secreto israelense, julgado e enforcado em 1962...
11. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. Massachusetts: Cambridge University Press, 1989. P. 76.
12. Idem, p. 8.
13. ELSAESSER, Thomas. Op. Cit., 1989. P. 210. Como a tradução das legendas do dvd do filme, lançado no Brasil pela Europa Filmes, deixa a desejar, utilizei minha própria tradução da citação do livro de Elsaesser.
14. LARDEAU, Yann. Rainer Werner Fassbinder. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1990. Pp. 246-7.