
“Você tem
que ter uma razão
para amar?”
Brigitte Bardot pergunta
O Corpo Fala

A revelação do corpo nu de Brigitte Bardot é um cenário que muitos homens e mulheres montaram em suas mentes durante a
bardolatria – 1950-1970. Tudo que desejavam era ver aquilo que uma mulher evita até o último instante: a nudez total. Os idólatras de Bardot queriam alcançar com os olhos o fragmento que sempre faltou nesse quebra-cabeça do corpo dela, retalhado pelas estratégias do desejo e da sedução: o último pedaço de pele ainda não tocado pelo olhar (1). François Truffaut apontou uma série de falhas em
E Deus Criou a Mulher, mas nada que supere o principal: Brigitte Bardot. Em sua opinião, o filme não tem nenhuma vulgaridade, como se poderia esperar pela cooptação da imagem desta mulher por um mercado pressionado pela busca do lucro. Muitos consideraram o filme indecente, mas Truffaut não viu nada disso. Além do mais, os “filmes eróticos” dos quais ele pode se lembrar, como alguns do cineasta sueco Ingmar Bergman ou do italiano Bernardo Bertolucci (talvez se refira, respectivamente, à
Mônika e o Desejo e
O Último Tango em Paris), eram pessimistas demais para se igualar ao erotismo que se podia encontrar na Literatura. Embora Truffaut admita que a crueza das imagens coloque problemas mais árduos que a crueza das palavras (2).
“O problema
com o futuro é
que está sempre
arruinando
o presente”
Brigitte Bardot
De acordo com Yannick Dehée, na década de 50 do século passado, a França era uma nação conservadora que começa a se descongelar. Brigitte Bardot foi um dos elementos que fez subir a temperatura. Ela é a França que se liberta das convenções. Suas aparições em E Deus Criou a Mulher e Amar é Minha Profissão (En Cas de Malheur, direção Autant-Lara, 1958) estabelecem o escândalo da nudez assumida enquanto símbolo de uma sexualidade moderna, sã e sem complexos (segundo os critérios masculinos). Com seus modos e seu jeans, Bardot derruba os velhos mitos femininos enfiados em vestidos para noite. Seu caráter pessoal transparece nos filmes, assim como seus cabelos e lábios. Tudo isso contribui até mesmo para uma revisão do significado da palavra “erotismo”. Dehée chega mesmo a afirmar que houve uma identificação entre Bardot e Marianne, a figura feminina que representa os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa – ela personifica a Mãe Pátria, imortalizada pelo pintor Eugène Delacroix. Marianne-Bardot não é mais uma atriz, mas um símbolo da República. O corpo de Bardot não lhe pertence mais, pois ele se torna propriedade nacional. No fundo, pouco importa as opiniões políticas de Bardot (3).

Francesa tipoexportação.
Um corposem complexos
A Boca nos Olhos da Boca dos Olhos de Bardot...

O que nos fascina
num rosto é sua nudez.
Muitas vezes a maquiagem
acaba cobrindo aquilo
que pretendia expor

De modo geral, no Ocidente que se diz tão liberado quando comparado a outras culturas, a visão de corpos adultos nus cria muitos constrangimentos. O desconforto se estende àquela parte do corpo que está sempre nua, mesmo quando estamos bem cobertos: o rosto. Neste lugar do corpo temos olhos, nariz, bochechas, queixo, pescoço e... boca. Podemos falar horas e horas sobre o corpo de Bardot, mas basta uma pequena observação para se chegar a um acordo sobre a fascinação que nos causa seu rosto – no fundo qualquer rosto. O rosto é como um brasão que mostra tudo sobre nós. Não necessariamente porque alguns têm maior ou menor capacidade de controlar suas feições, mas porque ele está sempre nu. A fascinação com a nudez do rosto é inversa à fascinação com o corpo vestido – que muitas vezes pode ser mais sedutor do que o corpo nu. As culturas cobrem os lábios com as mais variadas cores, supondo que elas irão fazê-los ainda mais atraentes, ou ainda deixar mais explícita a ligação simbólica entre lábios da boca e vagina.

Entre a beleza
nua e crua e
a fabricada,
uma mulher
Em sua ânsia de lucro, a indústria da moda soube muito bem capitalizar o batom, impondo seu uso àquelas mulheres que não pretendem ou não estão dispostas a questionar aquilo que a sociedade convencionou chamar de "beleza". Mas talvez nada supere o lábio em suas cores naturais - a cor de sua nudez. Talvez, o lábio precise ser visto nu, porque ele é um elemento do rosto – que está sempre nu. Às vezes, o batom vermelho de Bardot tira de seu rosto a naturalidade que só encontramos em sua nudez – quer dizer, num lábio sem maquiagem. Por outro lado, para alguns a simples visão da boca não é suficiente. Na opinião de Jacques Aumont, a boca é falsamente poética, já que através dela podemos ouvir palavras mentirosas (4).

Um rosto se basta!
Entretanto, os mercados da moda
e do cinema parecem não perceber
o que isso significa. Ambos tendem
a banalizar o rosto

O cinema, às vezes, em sua ânsia de lucro, sem perceber descamba para o pornográfico. Ao invés de sublinhar essa nudez essencial do rosto, faz dele um espaço entulhado de clichês. Daí o excesso de maquiagem, as caras e bocas. O rosto de Bardot, e o rosto em geral, não precisam disso. Um filme mudo de Carl Dreyer,
A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Joanna d’Arc, 1928) é a prova disso. Um filme todo em closes, uma atriz sem maquiagem, e no final não sabemos mais quem chora, Joanna ou Falconetti (a atriz) (5). Godard lembrou disso quando fez a Nana de
Viver a Vida (Vivre as Vie, 1962) entrar num cinema e chorar junto com Joanna/Falconetti na tela. Brigitte Bardot é maior do que os filmes em que atuou. Do contrário, em qual deles encontramos em seu rosto a nudez do rosto de Falconetti? Na media em que o rosto é deixado totalmente nu, não há necessidade de mostrar o resto do corpo para que um filme nos mostre o que aconteceu com um personagem.
Entre tenso e intenso,
nosso rosto espera
pacientemente que
aprendamos a utilizá-lo
Por outro lado, um rosto muito carregado (de maquiagem), aquele que expressa sem cessar, perde tudo ao mesmo tempo: seu erotismo, sua inocência, sua nudez. Os rostos do cinema mudo tinham um pouco (às vezes demais) essa limitação, que se estendeu aos primeiros anos do cinema falado – o rosto de Greta Garbo em algumas cenas de
Rainha Cristina (Queen Christina, direção Rouben Mamoulian, 1934). Mas foi também através dessa profusão de máscaras que Charles Chaplin ou Buster Keaton puderam encontrar algo da nudez do rosto. Certos momentos dos rostos de Ingrid Bergman (antes dos filmes com Rossellini) ou de Jeanne Moreau estão encalhados num erotismo muito fácil. Paradoxalmente, dando-se totalmente nus, não se pode desnudá-los mais, não chegando verdadeiramente ao erotismo: sua própria humanidade é excessiva, sobrecarregada (6).
Encontre-se em seu rosto, apesar de só conseguir olhar para ele através do espelho
O rosto de Brigitte Bardot surge nesse universo cinematográfico onde não se sabe muito bem o que fazer com os rostos – só se sabe que eles vendem! O rosto possui todo esse poder de ser insuportavelmente humano. Na opinião de Aumont, o cinema não desconfia disso. A nudez se instalou no rosto porque ele é o lugar do humano, e não porque ele vende. Talvez por isso muitos cineastas não olhem para o rosto de fato, senão veriam outras coisas. Embora se dê muita atenção aos olhos quando se fala de rosto, a boca talvez desempenhe um papel mais decisivo. Se assim não fosse, não teria havido desde o cinema mudo a preocupação que houve por parte das ligas dos bons costumes e a censura com relação ao beijo na tela grande. Os olhos podem ser as janelas da alma, mas a boca é subversiva! O olhar de uma atriz lançado na direção do público, ainda que cause um estranhamento, não se compara ao constrangimento de alguns com a visão em tamanho gigante de duas cabeças ligadas por bocas abertas e línguas que se enroscam. A imagem da boca de Bardot, no fundo, seduz mais do que se a indústria cinematográfica tivesse pela força do dinheiro conseguido mostrar o sexo dela.
“Vivo como o pintor
com a Mona Lisa:
em calma por fora; mas por dentro
a fremir na ânsia intensa
de um dia surpreender
em teu sorriso tua alma”
Gilberto Amado
Tua Boca [fragmento]
Notas:
1. FLEISCHER, Alain. Brigitte Bardot In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. Pp.44-51.
2. TRUFFAUT, François. Os Filmes de Minha Vida. Tradução Vera Adami. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1989. Pp. 17-8 e 344-6. E edição original é de 1975, a resenha do filme de Vadim é de 1957.
3. DEHÉE, Yannick. Mythologies Politiques du Cinéma Français. Des Anées 1960 Aux Anées 2000. Paris: Puf, 2000. Pp. 126-7.
4. AUMOUNT, Jacques. Visage In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Op. Cit., pp. 399-400.
5. Idem.
6. Ibidem.