O Inferno é Para as Crianças
Pelo menos até 1996, ano da publicação do livro de Rentschler, Mocidade Heróica estava banido da execução pública na República Federal da Alemanha (1). Na Alemanha nazista, os homossexuais também eram levados para os campos de concentração. Curiosamente, o homossexualismo só deixou de figurar no código penal alemão como uma contravenção a partir de 1994. Pela lógica, Baldur von Schirach, o líder da Juventude Hitlerista, deveria ser homofóbico. O nome de Jürgen Olsen, ator que fez o papel de Heini Völker em Mocidade Heróica, era mantido em sigilo. Ao que parece, ele era um caso de Schirach. Pelo menos era esta a suspeita de Hans Siemsen, um ex-membro da Juventude Hitlerista. Siemsen afirmou que Olsen estava sempre junto a Schirach, mas ninguém admitia essa possibilidade – ainda que Siemsen afirme que dos setenta líderes da Juventude Hitlerista que conheceu praticamente metade era considerado homossexual. Em Hitlerjunge Quex, título original do filme, a primeira palavra significa “juventude hitlerista”. A segunda deriva do verbo Quexen, que em linguagem coloquial poderia se referir ao sexo entre homens adultos e jovens (2) - Quex era o apelido de Heini entre os garotos de seu grupo nazi. (imagem acima, quando Heini leva uma facada no final do filme, essa é a primeira imagem que ele vê em seu delírio antes de morrer, dentro da suástica nazista notamos fileiras de jovens da Juventude Hitlerista; imagem abaixo, à direita, Heini recebe a visita de um grupo da JH no hospital, enquanto se recupera da inalação de gás - sua mãe queria se suicidar e levá-lo com ela. Heini é aceito na JH porque provou sua lealdade ao delatar o plano dos comunistas de explodir o local de reuniões dos nazistas)
Pode-se especular sobre o duplo sentido do título original alemão de Mocidade Heróica, mas de acordo com Rentschler o filme apresenta pelo menos uma cena que poderia sugerir aos garotos e adolescentes da Juventude Hitlerista que deveriam permitir certas liberdades por parte dos superiores hierárquicos. Na opinião de Rentschler, o Líder de Brigada Kass exclama com “um entusiasmo homo-erótico” indiscutível durante uma conversa com Heini: “Meninos são algo maravilho” (3). Todo o problema é o discurso público homofóbico dos nazistas enquanto por debaixo dos panos o praticam. Além disso, sua pedofilia é fruto de muita manipulação, já que pelo menos para Rentschler os nazistas desqualificaram a paternidade e assumiram seu lugar na Alemanha. Portanto, se este é o caso, Mocidade Heróica esconde nas entrelinhas a pedofilia latente nazista – às vezes usada por Hitler contra inimigos políticos, o que por tabela reforçava sua aprovação pela opinião pública. Rentschler ressalta a necessidade de maior objetividade nas análises da propaganda nazista, sugere que não é muito produtivo negligenciar a capacidade deles. Com relação especificamente a esta cena entre Kass e Heini, Rentschler considerou digno de nota a mensagem não-verbal contida variação entre alto e baixo – Kass olhando para Heini e, posteriormente, o pai dele falando com o comunista. Define-se uma hierarquia sem a necessidade do texto falando (4).
Em Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948), dirigido pelo italiano Roberto Rossellini ainda nos escombros de Berlim. Edmund é mais um garoto na Alemanha derrotada e de joelhos, ele não consegue trabalho por causa da pouca idade e vive de pequenos assaltos em companhia de amigos apenas um pouco mais velhos e sexualmente precoces. Será abordado por um pedófilo (seu antigo professor) que se aproveita dele e, aparentemente sem intenção, o induz a matar seu pai – o velho estava doente e era um problema numa hora de escassez total no país arrasado. No final, transtornado pelo que fez, o menino se suicida. Antes de levá-lo a seu apartamento, o professor comenta sobre a coragem de Edmund. Seu pai havia falsificado um documento durante a guerra para que o filho fosse dispensado de servir à Juventude Hitlerista. Mas o próprio Edmund denunciou o engodo. Depois de rememorar o episódio, o professor se dirige ao Edmund dizendo: “você conhecia seu dever”. O pai não foi descoberto porque o professor resolveu não denunciar. (imagem acima, a visão do acampamento da JH foi uma espécie de revelação para Heini - o contraste da ordem nazista com a desordem comunista é bastante evidente no filme; abaixo, à direita, perseguido pelos comunistas vingativos, Heini foi atingido mortalmente. Em seu delírio, vê a bandeira nazista tremulando e ouve a música da JH - a mesma que foi repetida ad nauseum durante o filme)
Na luta pelo poder, os protestantes, católicos e
nazistas tinham uma relação complicada. Mas numa coisa
todos concordavam: que os
jovens deveriam ser o
alvo preferencial (5)
Edmund tem um irmão mais velho, ele era um soldado e estava entre aqueles que lutaram nas ruas de Berlim até a derrota final. A família tem problemas de alimentação porque ele não possui um cartão de racionamento – para consegui-lo ele teria que se entregar, mas teme por sua vida. Na presença de Edmund e do irmão o pai começa a se lamentar dizendo que Hitler havia conseguido tirar seus filhos, e que ele não foi forte o bastante, assim como tantos da geração dele: “Nós vimos o desastre chegando e não fizemos nada a respeito. E hoje, sofremos as conseqüências. Estamos pagando por nossos erros. Todos nós, vocês e eu”. Enquanto isso, Edmund entende que o pai está pedindo para morrer e prepara o veneno que havia roubado no hospital, convencido de que está fazendo a coisa certa. Rossellini dedicou o filme à memória de seu primeiro filho Marco Romano (nascido em 1937 e falecido em 1946 de apendicite). Na abertura, a narração declara: “(...) que as crianças alemãs precisam reaprender a amar a vida (...)”
Acompanhando as poucas aparições do nazista Greff na versão de O Tambor dirigida por Schlöndorff, intuímos suas tendências pedófilas – embora ele seja bem menos direto do que o professor de Edmund. Logo no início do filme ele aparece referindo-se ao corpo como uma espécie de templo de saúde e colocando a coluna ereta. Greff estava conversando com uma mulher e parecia questionar justamente a libertinagem sexual dela. Noutra oportunidade, está nevando e a esposa de Greff chama Oskar para visitá-la para se proteger do frio. Logo que ele entra, eles vão para a cama, enquanto ela comenta que seu marido prefere os rapazes. Greff é um quitandeiro e, noutra oportunidade, o vemos elogiando uma batata para duas freguesas – bem poderia ser porque a batata é um exemplo da Natureza saudável que frutifica, ou talvez ele usasse o legume como uma metáfora do pênis. Numa última oportunidade, Greff entra na quitanda com alguns garotos da Juventude Hitlerista. Devido às evidências, é mais difícil atribuir tais personagens ao simples clichê e estereótipo negativo do nazista demente.
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Se você busca vilões
sinistros com o uniforme
negro das SS ou multidões
fanáticas saudando Hitler,
é melhor procurar nos
filmes de Hollywood
da década de 40 (6)
Jovens Águias (Junge Adler, direção Alfred Weidenmanns, 1944) fora concebido como uma continuação de Mocidade Heróica. Um pai dá seu filho para a Juventude Hitlerista depois de falhar na educação dele. Acompanhamos garotos educando garotos – como em Com os Braços Abertos (Boys Town, 1938) produzido em Hollywood, aqui um padre quer “dar uma chance” aos garotos. Jovens Águias era fruto da preocupação dos nazistas com a mudança de comportamento dos jovens à medida que a guerra avançava. Reagiam mal ao trabalho pesado (dez horas diárias e trabalho noturno). Exigência-se deles disciplina e sacrifício. Era proibido sair à noite, freqüentar bares, fumar em público e ir ao cinema sozinho. O título de trabalho do filme era Caminho para a Vida (Schritt ins Leben). Como observou Rentschler, aqui também alguém vai mostrar o caminho (7). (imagem acima, close de Heini quando era perseguido pelos comunistas vingativos, uma imagem que dura apenas um segundo: abaixo, à direita, Heini e sua mãe, a dona de casa serviçal)
A Juventude Hitlerista
estava lá no final, defendendo
o bunker de Hitler. Uma das
últimas condecorações que ele
concedeu foi a Alfred Czech, de
12 anos, que recebeu a Cruz
de Ferro de 2ª classe (8)
Mocidade Heróica neutraliza a complexidade do real, simplificando o mundo e elevando a experiência para gerar um arrepio emocional. É a história de um garoto que se torna propriedade da política. Nas primeiras cenas é a confusão da fome e da desordem social, para terminar com a visão da ordem futura. Herbert Norkus morre e surge o mártir Heini Völker. Seria Heini uma antecipação de Edmund? Mocidade Heróica pedia que a juventude alemã desdenhasse a vida ilícita e sensual (dos comunistas) e privilegiasse o olhar fixo e o corpo ereto de uma nova ordem. Pedia aos espectadores que fizessem um salto de Caligari à Hitler, transformando a feira numa praça de desfiles. A seqüência final envolve uma celebração da morte, onde o sacrifício humano é experimentado como devaneio estético: “A bandeira significa mais do que a morte” (9).
Leia também:
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Notas:
1. RENTSCHLER, Eric. The Ministry of Illusion. Nazi Cinema and it’s Afterlife. Massachusetts: Harvard University Press, 1996. P. 319n1.
2. Idem, pp. 328n77.
3. Ibidem, p. 65.
4. Ibidem, pp. 65-6.
5. STEIGMAN-GALL, Richard. O Santo Reich. Concepções Nazistas do Cristianismo, 1919-1945. Tradução Claudia Gerpe Duarte. Rio de Janeiro: Imago, 2004. P. 256.
6. RENTSCHLER, Eric. Op. Cit., p. 7.
7. Idem, pp. 328-9n79.
8. KOCH, H.W. A Juventude Hitlerista. Mocidade Traída. Tradução Edmond Jorge. São Paulo: Rennes, 1973. P. 146.
9. RENTSCHLER, Eric. Op. Cit., p. 69.