Uma imagem
vinha à mente
de Bergman: quatro
mulheres de branco
num quarto vermelho.
Depois do filme pronto
ele compreendeu que
o tema era sua mãe,
que está nas quatro
e em nenhuma ao
mesmo tempo (1)
Gritos e Sussurros
Na opinião de Bergala (2), Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop, 1972) é um dos maiores filmes do cinema sobre o tratamento dos corpos – essencialmente, corpos de mulheres. A nudez é um dos estados do corpo mostrados por Bergman, nudez que pode ser a única força de comunicação quando não é mais possível traduzir o próprio sofrimento em palavras – o corpo é capaz de dizer o indizível. Agnes está à morte, assistida por suas duas irmãs e uma criada (a única de quem ela recebe atenção e afeto) (imagem acima). Após uma crise violenta, elas fazem uma limpeza em Agnes que viria a ser seu último prazer físico. Bergman a mostra de costas, discreto e pudico (imagem abaixo). Sofrimento e doença, Bergman filma de frente.
Bergman foi educado
numa atmosfera hostil
à sexualidade, onde tudo
que se aprendia sobre as mulheres estava envolto
em fascínio e medo (3)
A dor será filmada de frente, o espectador não poderá escapar dela. A doçura, as carícias e a sensualidade, se filmam de costas e de forma pudica. Quando ela morre, o lençol branco é retirado para que seu corpo seja alinhado, sua camisola esticada até os pés e o lençol é recolocado. Para filmar esta cena, Bergman se coloca na posição da cabeça de Agnes, quase no ponto de vista da morta. Como se ela pudesse assistir ao que se faz de seu corpo uma vez que a alma o abandonou. Nesta seqüência do nu fúnebre, só a compaixão tem lugar, qualquer outra emoção foi banida.
“(...) Muito cedo
as mulheres foram
para mim um país
desconhecido que decidi
descobrir com o
entusiasmo de um
explorador”(4)
Jacques Aumont tende a minimizar o elemento biográfico nos “filmes de mulheres” de Bergman (5). Sua intenção é boa, mas talvez esteja excessivamente preocupado em centralizar os personagens alter ego do cineasta em personagens masculinos, não permitindo que perceba a importância do feminino na biografia do cineasta. Além do mais, Bergman é direto, existe uma cena autobiográfica onde ele é representado por uma menina. Escondida atrás de uma cortina branca ela olha sua mãe. Quando mãe a descobre, ela pensa que vai ser repreendida, mas acontece o contrário: sua mãe a beija. Essa mãe representa a do próprio cineasta (6).
“(...) Na verdade,
o que existe são
só problemas humanos.
Não há questões puramente masculinas ou [...] femininas como pensava antes (...)”
Ingmar Bergman (7)
Segundo Bergala, do ponto de vista autobiográfico, Bergman tem algo em comum com Jean-Luc Godard. Além do fato de o primeiro ser filho de pastor protestante e o segundo ter como pai um médico também protestante, os dois cineastas mostram a nudez de forma direta e até fria. A nudez para eles constitui apenas o estado menos artificial do corpo, que revela indiferentemente o esplendor ou a miséria de um personagem, seja quando ama, na alegria, na desgraça e doença, no sofrimento e na morte.
Bergman nega-se
a comentar os cacos de
vidro: “Cada um pode
interpretar a cena como
bem entender!” (8)
a comentar os cacos de
vidro: “Cada um pode
interpretar a cena como
bem entender!” (8)
Em Gritos e Sussurros existe uma cena de nudez que é tudo menos erótica. Durante um jantar, Karin, esposa frustrada, está em companhia de seu marido. A tensão é tal que ela aperta uma taça de cristal na mão até que ela se quebra. Mais tarde ela comenta que “tudo não passa de uma série de mentiras”. Karin leva um caco consigo para o quarto, onde se despe com a ajuda da criada, que olha para ela e espera. Agressiva, Karin ordena que Anna, a criada, não olhe. A criada abaixa os olhos, mas volta a olhar. Karin remete a ordem e dá uma bofetada nela. Em seguida, Karin pede perdão, mas Anna se afasta. Karin ordena secamente que a criada continue retirando a roupa dela. Já de camisola, Karin vai para a cama.
Segundo Bergman,
a escola ensina muito,
menos por que odiamos
uns aos outros. O “germe mofado”do puristanismo
nos impede de entender
a alma e o espírito (9)
De pernas abertas na cama e de frente para o marido, Karin mostra sua vagina, que cortou com o caco de vidro. Impassível, como, aliás, esteve durante o jantar, ele assiste a cena enquanto Karin leva aos lábios os dedos molhados de sangue e vemos sua língua tocá-los. Essa nudez, após a constatação de que “tudo não passa de uma série de mentiras”, torna-se o momento do surgimento da verdade em toda sua complexidade. A verdade é que seu corpo de mulher madura está em seu último momento de glória; a verdade da vergonha que ela experimenta diante da criada por deixar-se prender numa tal mortificação de sua vida de casada; a verdade de sua injustiça e orgulho de classe na bofetada; mas também a verdade de seus sofrimentos morais e frustrações sexuais.
O Que Pode o Corpo de Ingrid Thulin?
Aprendemos definitivamente com esta seqüência que a nudez para Bergman está mais do lado do espelho da alma (e de preferência daquilo que se pode ver de escuridão e sofrimento nessa alma) do que do lado do desfrute e do impulso erótico. Seja como for, nesta seqüência a nudez pode resistir a todas as explicações de sentido. A nudez desse corpo de mulher é uma aparição opaca, um buraco negro do sentido. A ficção termina e o espectador é confrontado coma própria atriz: é Ingrid Thulin que se doa ao filme, seu corpo de mulher, sem máscara protetora de Karin, sua personagem. Por uma estranha alquimia, Karin se beneficia da generosidade de Ingrid.
“Infelizmente,
somos e continuamos a
ser todos analfabetos em
matéria de sensibilidade e
de sensação moral. Todos.
Bloqueamos nossos
sentidos”
Ingmar Bergman (10)
Bergman não se importa em inserir traços autobiográficos em personagens femininas, para ele o que existe são os seres humanos. Essa afirmação levou Nils Petter Sundgren a perguntar ao cineasta: “então, você pode dizer: eu sou Ingrid Thulin?” O cineasta respondeu que, a rigor, sim (11). De acordo com Aumont, é preciso alguém profissionalmente e psicologicamente muito competente para suportar o que Bergman pediu à Ingrid em O Silêncio (masturbação), em O Rito (estupro), em Gritos e Sussurros (auto-mutilação da vagina), em Depois do Ensaio (louca e alcoólatra).
Entretanto, argumenta Aumont, se ela não se masturba realmente, se não é realmente violada, não mutila o próprio sexo, e não é uma alcoólatra, a atriz desempenhou esses papeis com um comprometimento de todo o seu corpo – que não se contenta em recitar, mas age. Descrevendo os atores bergmanianos, Aumont afirma que eles e elas são um misto de intensidade e inteligência. São pessoas que através de sua prática começaram a responder à eterna questão: “o que pode um corpo?” O ator bergmaniano deverá ultrapassar a dicotomia cartesiana (intensidade: emoções x inteligência: razão). Como a própria Ingrid Thulin disse, ela chorou em Depois do Ensaio (Efter Repetitionen, 1984) não porque estivesse comovida, mas porque devia chorar: o corpo tem uma memória (12).
Nudez não é Problema, é Solução
Nudez não é Problema, é Solução
Nunca foi fácil para Bergman pedir que seus atores e atrizes ficassem nus. Em seu livro Imagens, Bergman faz um comentário sobre A Hora do Lobo. Na cena em que Johan é atacado pelo pequeno demônio que o morde, os dois deveriam estar nus. Mas Bergman confessa que não conseguiu pedir a Max von Sydow que se despir-se, embora afirme que se os dois atores estivessem nus a cena seria de uma clareza brutal. Bergala nos lembra que esse arrependimento tardio de Bergman surge sempre que existe nudez, porque coloca em jogo o sofrimento, a angústia, a tentação sexual, a morte, o mal. A conclusão do próprio Bergman é definitiva: “Que minha educação tenha fornecido um terreno fértil para os demônios da neurose, disso não há nenhuma dúvida”.
Notas:
Leia também:
A Nudez no Cinema (IV)
1. SUNDGREN, Nils Petter. Gritos e Sussurros. Entrevista televisionada, 1973. In BJÖRKMAN, Stig (et alii). O Cinema Segundo Bergman. Tradução Lia Zats. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. P. 230.
2. BERGALA, Alain. Bergman In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. Pp. 53-7. Salvo quando indicado, artigo resume o verbete.
3. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit., p. 232.
4. Idem.
5. AUMONT, Jacques. Ingmar Bergman. “Mes Films sont L’explication de mes Images”. Paris: Cahiers du Cinema, 2003. P. 71.
6. SIMA, Jonas. Gritos e Sussurros. Entrevista pelo telefone no dia do lançamento do filme na Suécia In BJÖRKMAN, Stig (et alii). Op. Cit., p. 227.
7. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit., p. 236.
8. SIMA, Jonas. Op. Cit.
9. Ibidem, p. 229.
10. Idem.
11. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit.
12. AUMONT, Jacques. Op. Cit., pp. 76-7.
2. BERGALA, Alain. Bergman In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. Pp. 53-7. Salvo quando indicado, artigo resume o verbete.
3. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit., p. 232.
4. Idem.
5. AUMONT, Jacques. Ingmar Bergman. “Mes Films sont L’explication de mes Images”. Paris: Cahiers du Cinema, 2003. P. 71.
6. SIMA, Jonas. Gritos e Sussurros. Entrevista pelo telefone no dia do lançamento do filme na Suécia In BJÖRKMAN, Stig (et alii). Op. Cit., p. 227.
7. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit., p. 236.
8. SIMA, Jonas. Op. Cit.
9. Ibidem, p. 229.
10. Idem.
11. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit.
12. AUMONT, Jacques. Op. Cit., pp. 76-7.