Pai é um conceito,
um símbolo daquilo
com que sonhamos. A
busca por um pai é a
busca pela identidade
de cada um de nós (1)
Opinião de Angelopoulos
Odisséia da Busca da Identidade?
Um casal de crianças surge da escuridão da noite na cidade. “Você está com medo?”, Voula pergunta. “Não, não estou com medo”, responde Alexander. Eles se dirigem a uma estação ferroviária, mas hesitam e o trem parte. “Vocês aqui novamente!”, dirá o vendedor de doces. As crianças voltam para casa e no escuro total do quarto de dormir Alexander pede para que irmã conte novamente certa história. Voula está cansada de repetir, mas vai em frente: “No princípio era a escuridão e depois houve a luz. E a luz se separou das trevas e a terra do mar e se formaram os rios, os lagos e as montanhas. E então as flores e as árvores, os animais, os pássaros”. Serão interrompidos pelos ruídos que denunciam a chegada da mãe – “essa história nunca vai acabar”, reclama Voula por interromper novamente aquela narrativa que o irmão menor não se cansa de ouvir. Ela abre a porta do quarto e os dois fingem estar dormindo. Esta é a única vez que encontraremos a mãe deles, e nem chegamos a vê-la (imagem acima).
Duas crianças
em busca do pai que
não conhecem, viajam para
uma fronteira inexistente
e no final abraçam
uma árvore
Na próxima tentativa, as crianças conseguem subir no trem. Ma logo são descobertas porque não compraram passagens. Deixadas aos cuidados de um funcionário de outra estação, elas acabam sendo levados a um tio. Mas ele não pretende ficar com elas e explica ao acompanhante que a história delas é fruto da omissão da mãe, que não contou a eles que não existe um pai. Voula escuta e não aceita. Levados à delegacia, eles conseguem fugir quando os policiais ficam como que encantados pela neve que começa a cair. Certa noite, eles encontram um cavalo moribundo na neve, Alexander chora muito. Ao tentar uma carona na estrada, um caminhoneiro acabará estuprando a menina – depois disso, próximo ao final do final, ela oferecerá o corpo a um soldado em torça do dinheiro para a passagem de trem (veja no início do vídeo abaixo). Em suas andanças, Voula e Alexander conhecem Orestes (imagem abaixo, à esquerda, segundos antes do encontro com o ator e seu ônibus cheio de figurinos de peças de teatro). Voula se apaixona por ele, mas o rapaz sabe que isso não é possível. No final, Voula e Alexander chegam à fronteira com a Alemanha e tudo termina com um forte abraço na única árvore da paisagem.
A História Não Interessa!
Fomos tão destruídos pelo
racionalismo e o materialismo
que não reconhecemos mais a
mágica num conto de fadas
Primeiro filme centrado em crianças dirigido pelo cineasta grego Theodoros Angelopoulos, Paisagem na Neblina (Topo stin Omichli, 1988) é a terceira parte de sua Trilogia do Silêncio, que conta ainda com Viagem a Citera (Taxidi sta Kithira, 1983) e O Apicultor (O Melissokomos, 1986). Em Reconstituição (Anaparastasis, 1970), pela primeira vez o cineasta havia apresentado uma mulher como protagonista da narrativa. Agora, temos a pequena Voula de doze anos de idade, que se encaixa numa distante segunda categoria. De acordo com Andrew Horton, pelo menos até 1997, trata-se do filme mais acessível de Angelopoulos, e poderia até se chamar Crianças Num Documentário de Conto de Fadas. Pelas cenas de tomadas longas, o cineasta grego já foi comparado ao russo Andrei Tarkovski. Entre outras influências, a Trilogia do Silêncio de Angelopoulos guarda algumas similaridades com uma trilogia da estrada realizada pelo alemão Wim Wenders – Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974), Movimento em Falso (Falsche Bewegung, 1975) e No Decurso do Tempo (im lauf der zeit, 1976). Também são citados como influências os franceses Roberto Bresson, Jean Renoir e Jean-Luc Godard (2).
A Odisséia,
de Homero, foi um
dos modelos para a
odisséia de Voula
e Alexander
Paisagem na Neblina começa no escuro e termina na luz, o foco recai sobre os contos de fada e o mito, deixando o papel da História (e os mundo dos adultos) de lado. Gira em torno de um pai ausente (que, na verdade, não existe mesmo) e uma mãe que existe, mas é tão ausente que é como se não existisse. Embora sem se prender a citações literais, o filme de Angelopoulos remete a Homero e Ésquilo (Odisséia e a Oréstia). Por exemplo, irmão e irmã, os jovens viajantes em desacordo com o mundo lembram Electra e Orestes em sua alienação em relação à mãe e sua adoração do pai ausente. Entretanto, invertendo a Oréstia, o crime da mãe é um assassinato mais figurativo do que literal – o tio sugere que a mãe era tão promíscua que nem sabe quem são os pais das crianças, o que significa inclusive que eles podem não ser filhos do mesmo pai. O mito também é sugerido quando as crianças encontram alguém chamado Orestes – da mesma trupe de A Viagem dos Comediantes (O Thiasos, 1975). Entretanto, Voula e Alexander nunca conseguirão separar completamente luz e escuridão, mesmo que consigam chegar à árvore real (documentário), em sua imaginação (conto de fadas), caso estejam mortos (3).
“Em todos os meus
filmes existem personagens
procurando pais (...)”
Theodoros Angelopoulos esclareceu
em entrevista concedida em 1993 (4)
A História não é o foco deste filme, contos de fada e mito estão mais próximos de sua lógica narrativa. Para além das alusões à Odisséia, Paisagem na Neblina está centralizado no mito mais básico de qualquer cultura: a criação do universo, “história” que Alexander pede que a irmã conte novamente antes de dormirem; ouvimos a voz dela em plena escuridão até que a mãe chega e abre a porta do quarto fazendo entrar um feixe de luz sobre eles. Assim define Horton a este trabalho de Angelopoulos, cujos personagens infanto-juvenis duplicam o mito ao saírem em busca de suas próprias origens – já que a única luz que a mãe lhes trás nada parece iluminar. A odisséia deles é outra variação do épico homérico. Em Paisagem na Neblina, temos duas crianças ao invés de uma em busca de um pai do qual não se lembram e nunca viram. Ao invés de uma leal Penélope como mãe, eles têm uma mulher não identificada e não vista a quem faltam emoções e ações maternais. A única cena em que percebemos sua presença, esta é mais uma intuição do que um fato. A cena, no começo do filme, sugere que ela freqüentemente os deixava sozinhos em casa a noite. Em sua chegada, nenhum beijo de boa noite ou acolhimento.
“(...) O que eu
não gosto são aqueles
filmes que tentam agradar
todo mundo oferecendo um
pouco de tudo, incluíndo aí
Hollywood, mas que acabam
não sendo nada particular.
Chamamos esses filmes
de Euro-pudins”(5)
A tela está completamente escura quando a menina repete o conto que já havia contado várias vezes. É um mito de criação que parece confortar bastante seu ir, ao menor – ou talvez intrigá-lo: “No princípio era a escuridão e depois se fez a luz. E a luz se separou das trevas e a terra do mar e se formaram os rios, os lagos e as montanhas. E então as flores e as árvores, os animais, os pássaros”. “Este conto não vai acabar nunca”, comenta a menina sussurrando ao ouvir os ruídos da presença da mãe. A progenitora aqui, portanto, é vista como um problema. Horton sugere que ao nível do discurso cinematográfico Angelopoulos inclui nesta cena o próprio cinema, que no final das contas não passa de uma brincadeira entre luz, escuridão e a variação das sombras entre esses dois extremos. Ademais, apresentar a cena quase inteiramente no escuro sugere que, enquanto cineasta, Angelopoulos pode criar uma narrativa a partir do “nada”. Paisagem na Neblina reafirma a importância da forma narrativa mais elementar de todas: o mito contado, a estória, o conto de fadas.(imagem abaixo, à esquerda, a neve na delegacia)
Voula Sonha Com o Pai Até Acordada
Durante o filme, acompanhamos a narração de várias cartas para o pai feitas pelas crianças. Mas todas elas são imaginárias, como poderiam enviá-las se nada sabem sobre endereço do pai? O caráter mágico das cartas fica evidente quando Voula avisa ao pai que ele pode mandar uma resposta as cartas deles através do som do trem. Por outro lado, a partir de certo ponto, Voula não sonha mais com as cartas, a menina agora sonha com elas mesmo estando acordada. Mais especificamente, essa passagem teria ocorrido quando Voula continuou a narrar uma de suas cartas ao pai mesmo acordada. Voula comenta que ela e o irmão escrevem cartas para ele com os mesmos pensamentos embora apenas estejam parados um de frente para o outro em silêncio... “olhando para o mesmo mundo, a luz e a escuridão... e você”. As referências a luz e à escuridão remetem diretamente à odisséia pessoal das duas crianças. Talvez por isso a partir de agora ela esteja tão atenta ao entorno. Como na cena em que ela está olhando para os trilhos e vemos um pequeno veículo à manivela passar pelos trilhos com pessoas imóveis vestindo capas de chuva amarelas.
Como disse Horton, o efeito é “mágico”, visualmente eles atraem a atenção ao atravessar um quadro de cores suaves e sem brilho. Voula se põe a “ler” a paisagem desde que sugeriu ao pai responder as cartas através do som do trem. Não sabemos como Voula interpreta a visão daqueles homens de amarelo, mas estes reaparecerão em O Passo Suspenso da Cegonha (To Meteoro Vima tou Pelargou, 1991), como agentes de uma ação positiva: eles são os encarregados de consertar a linha telefônica, que ajuda a restabelecer a comunicação. Quando confrontado com a possibilidade de ter que ficar com as duas crianças, o tio explica ao homem que as levou a ele que não existe um pai e nem uma Alemanha. Toda a situação foi criada pela mãe. Levados à delegacia, as duas crianças conseguem escapar quando, por um passe de mágica típico de um... conto de fadas, todos saem do prédio e fixam o olhar no céu, aparentemente admirados com a neve que começa a cair – o que não deveria ser uma surpresa, pois não é de forma alguma um fenômeno raro na região central e ao norte da Grécia. De fato, Paisagem na Neblina apresenta uma série de “momentos congelados” que afastam da narrativa as referências racionais: quando começa a nevar em torno da delegacia, a galinha na estação, os homens de amarelo e a tentativa que Orestes faz para dançar com Voula na praia (6). (imagem acima, à direita, a trupe de atores itinerantes e tristes)
O Reino da Infância
Paisagem na Neblina também será o adeus de Angelopoulos aos seus atores itinerantes. Apesar de serem filmes distintos, Horton sugere que aquele deveria ser tomado em conjunção com A Viagem dos Comediantes. Atores itinerantes se tornam parte do “conto de fadas documentário” dos irmãos Voula e Alexander. Orestes, o membro mais jovem da trupe teatral está ligado às duas crianças por sua própria busca. “Eles parecem tristes”, comenta o pequeno Alexander ao ver o grupo de atores caminhando pela rua. Em A Viagem dos Comediantes, uma trupe de teatro atravessa os turbulentos anos entre 1939 e 1952 na Grécia – a ditadura, a invasão italiana, a ocupação dos nazistas, a guerra civil, o intervencionismo de britânicos e norte-americanos na política do país. O personagem de Orestes, por exemplo, é um guerrilheiro comunista. A ressonância dessa trupe em Paisagem na Neblina, Horton e James Quandt sugerem, refere-se à redundância de pessoas ligadas ao passado da Grécia – a cultura e a história parecem irrelevantes na “nova” Grécia. Aqueles atores são como exilados em seu próprio país, e o adeus de Angelopoulos a estes atores é também um aviso: a Grécia contemporânea parece não ter nenhuma consciência do que aconteceu antes. (na última imagem do artigo, Alexander procura na película de filme que Orestes lhe deu a árvore que ele disse que está atrás da neblina)
A mão gigante
que sai do mar aponta
uma direção? Mas seu
dedo indicador não
está mais lá
Daí o grande poder visual e simbólico da seqüência da mão que sai do mar – uma mão que aponta, mas cujo dedo indicador está ausente. A imagem se torna uma grande metáfora quando percebemos que o adeus aos atores itinerantes aparece como uma descrição de um tempo presente a-histórico grego cativou até mesmo Orestes. No final de A Viagem dos Comediantes, ele havia assumido o papel de seu tio – e, supostamente, também o papel político. Orestes, que foi o primeiro amor de Voula. Em Paisagem na Neblina, Orestes dá adeus à trupe (quando ele diz que não gosta de funerais), o grupo de atores que sobreviveram e se tornaram irrelevantes. A seqüência do cavalo semimorto sendo arrastado na neve cai como um raio naquela odisséia das crianças que, como Telêmaco na Odisséia de Homero, buscam um pai que nunca encontram e que talvez não exista. Alexander chora incontrolavelmente em frente ao animal. Horton lembra que em Dostoievski e outros, os maus tratos a animais transformam-se num espelho de catarse para o sofrimento do próprio personagem. Como a tristeza de Ulisses com a morte de seu cão Argos ou as lágrimas do herói sentado na praia na ilha de Calipso com saudades de casa. Angelopoulos explicou que a visão veio a ele como a expressão da tristeza que o dominou quando criança pela morte de sua irmã mais nova – chamada Voula (7).
No princípio era a escuridão
e depois se fez a luz. E a luz
se separou das trevas... Essa
história nunca vai acabar!
Finalmente, as crianças chegam à fronteira durante a noite. Eles terão ainda de atravessar um rio e se esconder dos soldados de guarda. Sobem num pequeno barco e se deixam levar pela correnteza, somem na escuridão. “Você está com medo?”, pergunta Voula ao irmão como havia feito no começo do filme. “Não, eu não estou com medo”, responde o menino. Ouve-se um tiro. Na cena seguinte, totalmente tomada pela névoa branca em alto contraste com a escuridão. Alexander diz “acorde, já amanheceu. Estamos na Alemanha” (na cópia em inglês ele diz, “é luz”, em lugar de “já amanheceu”). Voula confessa que está com medo! “Não tenha medo”, retruca Alexander, “vou te contar uma estória”. Enquanto isso, a névoa vai dando lugar à imagem dele. Alexander começa, “no princípio era a escuridão”. Ele repete a frase e levanta a mão como se estivesse acenando ou limpando uma janela para ver melhor. “E então houve a luz”. Começamos a perceber uma árvore através da névoa à distância, Alexander e Voula correm na direção dela de mãos dadas. Na imagem final eles estão abraçados a ela. Então eles sobreviveram ao tiro no escuro (ouvimos apenas um) e chegaram à Alemanha? Angelopoulos construiu um final aberto. Horton sugere outra possibilidade, eles entraram no pedaço de filme que Orestes deu para Alexander. Assim, a “Alemanha”, o “final feliz”, são apenas uma fantasia cinematográfica de triunfo. Horton não se incomoda com estórias de finais abertos, mas conclui que este “documentário de conto de fadas” de Angelopoulos nos permite o acesso a reinos da infância onde a maioria dos filmes sobre crianças nunca ousaram entrar (8).
Leia também:
Kieślowski e o Outro Mundo
Akira Kurosawa e seus Seres Humanos
As Mulheres de Andrzej Wajda (IV)
Bertolucci e o Negócio da China (I)
A Oréstia de Pasolini
O Mundo Infantil de Picasso (I), (II), (final)
As Mulheres de Ingmar Bergman (V)
Criança, a Alma do Negócio
Notas:
1. HORTON, Andrew. Theo Angelopoulos. A Cinema of Contemplation. New Jersey/USA: Princeton University Press, 1997. P. 207.
2. Idem, pp. 4, 79, 91 e 144.
3. Ibidem, p. 145.
4. Ibidem, p. 207.
5. Ibidem, p. 34.
6. Ibidem, p. 152.
7. Ibidem, pp. 159-60.
8. Ibidem, pp. 157 e 160.
O Mundo Infantil de Picasso (I), (II), (final)
As Mulheres de Ingmar Bergman (V)
Criança, a Alma do Negócio
Notas:
1. HORTON, Andrew. Theo Angelopoulos. A Cinema of Contemplation. New Jersey/USA: Princeton University Press, 1997. P. 207.
2. Idem, pp. 4, 79, 91 e 144.
3. Ibidem, p. 145.
4. Ibidem, p. 207.
5. Ibidem, p. 34.
6. Ibidem, p. 152.
7. Ibidem, pp. 159-60.
8. Ibidem, pp. 157 e 160.