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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de out. de 2017

As Mulheres de Věra Chytilová


Este filme é dedicado àqueles que se indignam
apenas por umas comidas pisoteadas

Mensagem da cineasta no final do filme

Uma Mulher com uma Câmera

Duas moças decidem que se o mundo está indo mal, elas também. Pulando em torno da maçã do conhecimento no paraíso, elas não ligam para as maçãs. Quando uma delas resolve comer, pega uma pera. Com base no princípio do jogo “Isso importa? Não, isso não”, uma série de cenas ou “acontecimentos” (happenings) se desenvolvem. As meninas parecem viver numa espécie de vácuo sem passado ou futuro (ou nomes), e até discutem se elas existem (uma vez que não têm emprego ou endereço fixo). Com o tempo, sua trapaça e provocação levam à destruição aparente delas e de tudo sobre elas. Sua jornada chega a um clímax quando provam e destroem um enorme banquete, pisam a comida e balançam do candelabro. Este pequeno apocalipse está associado através de imagens de notícias com o mundo das guerras reais e uma explosão nuclear. Fruto da Nova Onda no cinema Tchecoslovaco durante a década de 1960, As Pequenas Margaridas (ou As Margaridas, Sedmikrásky, 1966) lembra o automatismo dadaísta. Efeitos sonoros exagerados, misturas variadas de musica clássica e moderna, edição dinâmica, justaposição de imagens não relacionadas, impressão ótica para modificar o movimento. O filme oscila entre a coloração luxuriante e o monocromático. O conteúdo das tomadas é organizado de maneira que um sumário de seus elementos ultrapassa qualquer tentativa de objetividade. Para Věra Chytilová, tudo isso é combinado para produz um ataque na percepção do espectador.


A obra de Chytilová até o final da década de 1960 é um exemplo
extremo  daquilo  a  sociedade  checa  estava   pensando.  Foi  para
destruir  isso  que os soviéticos enviaram seus tanques  em  1968

Em países do leste europeu antes do fim do Comunismo, explica o escritor checo Milan Kundera, um dramaturgo como o romeno Eugène Ionesco (1909-1994) fascinava justamente pelo tom anti-ideológico de seu teatro do absurdo. Como se suas peças devolvessem a autonomia para a arte. Em outras palavras, concluiu Peter Hames, a “arte autônoma” assumiu uma função política ao representar uma maneira de divergir do discurso oficial. O cinema produzido no antigo bloco europeu oriental não tinha muito para onde correr, já que o único financiador era o Estado – embora desde a década de 1950 se verifiquem filmes mais abertamente políticos. Entretanto, já que naquela época tudo era político para os que viviam sob a censura estatal, não é de estranhar que grande parte das mensagens veiculadas que criticassem a prática socialista dificilmente seria percebida enquanto tais atualmente por plateias estrangeiras, ou mesmo sequer percebidas. Um filme como As Pequenas Margaridas, realizado por Věra Chytilová, com suas duas garotas “piradas” é um exemplo disso. Seu conteúdo político poderia ser considerado invisível por aqueles não familiarizados com o cotidiano da Europa oriental durante a Guerra Fria. De acordo com Hames, Chytilová é a cineasta mais radical a surgir na Checoslováquia nos anos 1960. Em filmes como Something Different (O necem jinem, 1963), seu primeiro longa-metragem, As Pequenas Margaridas  e Fruto do Paraíso (Ovoce stromu rajských jíme, 1969), ela inscreveu seu nome dentre as principais cineastas feministas de sua época (1).


[Em] As Margaridas e Fruto do Paraíso, a reflexão e crítica das
condições  sociais  na  Checoslováquia  estão  ausentes.  É  como  se
[Chytilová] tivesse  tomado  a  mesma  decisão  do  cineasta polonês
 Krzysztof   Kieślowski,   quando   realizou   O  Decálogo   (1988)” 

Zdena Škapová (2)

O cinema checoslovaco será nacionalizado em 1945, embora se alimentasse a ideia de um socialismo em estilo checo, em 1948 a liberdade de expressão vai pelo ralo com a subida ao poder do Partido Comunista. Mesmo que tenha havido um degelo no final dos anos 1950, depois da morte de Stalin, em 1959 a censura estatal volta a atacar. Num ambiente de liberdade vigiada, alguns cineastas conseguem abordar temas tabus (como a burocracia e o dogmatismo). É o apogeu da Onda Jovem, quando cineastas como Milos Forman, Ivan Passer e Jaroslav Papoušek, atacam as velhas convenções, temáticas e estéticas – as duas protagonistas de As Margaridas farão uma aparição como convidadas numa boate, em Os Mártires do Amor (Mucedníci lásky), realizado por Jan Němec, em 1967. Até 21 de agosto de 1968, quando os tanques soviéticos ocupam as ruas de Praga, a capital do país. Os filmes do “milagre checoslovaco” são imediatamente proibidos e inseridos numa lista negra que por vinte anos os considera obras “contrarrevolucionárias” – em 1973, e posteriormente, muitos filmes foram trancados em cofres ou simplesmente destruídos. Muitos cineastas emigram, aquelas que ficaram serão proibidos de trabalhar em cinema durante certo período – Chytilová ficaria longe da direção por sete longos anos. Em 1992, com a saída do Partido Comunista, o cinema deixa de ser uma instituição de Estado, os estúdios são privatizados e a produção estaciona por falta de capital. A televisão se torna o maior produtor de filmes para salas de cinema na Checoslováquia (3).

Uma Mulher com um Olhar


“Nove jovens cineastas aparecem na fotografia que costuma
 acompanhar   artigos   sobre    ‘a   Nova   onda   checoslovaca’. 
Entre  eles,  existe  apenas  uma  mulher,  Věra Chytilová (...)

Zdena Škapová (4)

A Checoslováquia (ou Tchecoslováquia) surge das cinzas da Primeira Guerra Mundial, em 1918 – até então era apenas mais um território do vasto Império Austro-Húngaro. Entre 1939 e 1945 houve uma ocupação pelos nazistas, com o início da Segunda Guerra Mundial, com o subsequente governo Comunista a partir de 1948 – sendo assim, houve pouca evidência de produção cinematográfica até a década de 1950, a não ser por The Long Journey, Daleká Cesta, direção Alfréd Radok, 1950. Salvo por certa liberdade no campo da animação, apenas nos anos 1960 cineastas checos expostos às influências ocidentais contemporâneas emergiriam. Para Hames, Chytilová foi a mais radical novidade então. As Pequenas Margaridas, certamente foi seu trabalho mais radical e onde, entre outras coisas, o desejo das garotas de consumir está constantemente ligado ao seu outro rosto - o da destruição -, algo que claramente se conecta com a intenção moral da cineasta. Chytilová descreveu o filme como “um documentário filosófico na forma de uma farsa”, e geralmente adere ao argumento de que é principalmente uma crítica ao comportamento das meninas. Ao mesmo tempo o roteiro, escrito com Ester Krumbachová, foi apenas o ponto de partida para o filme. O diálogo era o meio pelo qual ela esperava “salvaguardar” o significado do filme, contando que este continuaria aberto ao pensamento livre e à improvisação. Inevitavelmente, ele suporta muitas interpretações e, como disse o diretor de fotografia Jaroslav Kučera, muitos dos efeitos de cor que deveriam fornecer comentários críticos produziram resultados bastante diferentes dos pretendidos (5).

“Em As Margaridas, Chytilová não examina especificamente os problemas sociais checos, mas nos adverte a respeito de doenças comuns ao mundo. Ela se coloca contra as tendências da época, que substituiu a moralidade com a psicologia. Ela exige que o indivíduo siga as regras de altos princípios morais, que não podem ser questionados e levarão à inevitável punição se não obedecidos. O castigo não pode ser evitado através de circunstâncias atenuantes psicologicamente definidas. Essa atitude é aparente em todo As Margaridas e influencia o tratamento dos personagens” (6)


Muitos culpam a sociedade, já Chytilová responsabiliza o indivíduo
pela  falta  de  consciência,  considerando  passividade   e   resignação
 em relação à busca de conhecimento  como sinais  de  infantilidade 

A   cineasta   insiste   que   mudanças  positivas  na  sociedade  podem  ocorrer  apenas
quando ele deixar de justificar seu comportamento “em função das circunstâncias” (7)

Hames observa que As Margaridas se torna uma sequência de combinações audiovisuais entre cenário, vestuário, fotografia e som. Por exemplo, numa cena aparentemente centrada na morte, o quarto das meninas é decorado com grama e folhas verdes de cera e, na cena da coleção (de homens), as paredes e tetos são cobertos por decoração tipográfica, com acompanhamento “musical” de uma máquina de escrever - há acompanhamentos musicais igualmente incomuns para outras cenas. A fotografia geralmente usa conjuntos de efeitos de cor e de filtro. Nas cenas onde elas pegam e exploram homens mais velhos, que as levam para refeições, diferentes efeitos de filtro são combinados com um ritmo de edição fragmentado. Na cena da boate, onde as meninas ficam bêbadas, o ‘show’ está em cores e o show do chão real em sépia. À medida que se ficam todos bêbados, vários efeitos de cor são usados - por exemplo, um deles fica de olhos cruzados em vermelho e a tela muda para amarelo. Outra característica do filme é o uso de montagem e colagem aceleradas. Na cena em que as meninas pretendem se cortar com tesoura, a própria tela se converte numa combinação de múltiplos fragmentos do vaivém de uma serra (8). Para Hames, As Margaridas não se leva a sério, e está próximo do anarquismo exuberante de Zazie no Metrô (Zazie dans le Métro, direção Louis Malle, 1960), o que levou muitos a sugerir uma identificação de Chytilová com as duas garotas, ao invés de estar questionando o comportamento delas – seus alvos primários são os homens e o Comunismo, assim como a conformação a papéis preestabelecidos “de mulher”.


O feminismo de Chytilová precede a onda feminista dos anos  1970. 
 Contudo,   As  Margaridas   mostra   que   não   existe   maniqueísmo, 
pois  o  comportamento  das  protagonistas é totalmente reprovável

Herbert Eagle enfatiza a ligação de As Margaridas com o Dadaísmo e sugere uma relação entre as duas personagens violadoras de normas e mulheres artistas criativas (especificamente Chytilová e a roteirista Ester Krumbachová). Zdena Škapová, por sua vez, argumenta que com seu prazer em manipular pessoas, especialmente homens, as personagens são menos um exemplo de emancipação do que um aviso quanto à direção que isso pode levar. De acordo com Škapová, existe uma ambiguidade deliberada, onde o comportamento egoísta e negativo das personagens é superficialmente atraente, e o espectador é convidado a participar num jogo irresponsável: além de explorar os homens e atacar o patriarcado comunista, elas também roubam dinheiro de uma faxineira, “destroem” uma a outra e consomem e atacam tudo. Essas criaturas vazias, entediadas e amorais, inclinadas ao prazer e à destruição, encontram seu reflexo final nos horrores da guerra - as imagens com as quais o filme está enquadrado. Hames lembra que o feminismo dos filmes de Chytilová precede a onda feminista no Ocidente durante os anos 1970. Escrevendo a respeito de Chytilová em As Margaridas e da direção de Krumbachová em The Murder of Engineer Devil (Vražda ing. Čerta, 1970), Petra Hanáková salienta que elas não esboçam uma intenção consciente de subverter o falocentrismo, sua subversão é mais como um subproduto da própria criatividade feminina, enquanto projeção da sagacidade mordaz das autoras em sua crítica das obras do patriarcado.


A  censura  do  Estado comunista checo amordaçou Chytilová por
sete longos anos, quando ela foi proibida de exercer sua profissão

Com base nos escritos de Hélène Cixous e Luce Irigaray, Hanáková afirma que As Margaridas permite o registro do desejo e da gratificação femininos, corrompendo a linguagem patriarcal através de ironia e absurdo (nonsense). Hanáková acredita que a mensagem moral em As Margaridas não consegue sobressair em relação ao núcleo explosivo do filme, embora o final aponte para ambos no comentário ao comportamento das personagens e da sociedade que as produziu, e contra a qual elas parecem se revoltar. Um pouco antes, em Ceiling (Strop, 1962), seu trabalho final de graduação, Chytilová mostrou uma modelo de desfiles (a própria cineasta atuou nessa profissão), alguém que se veste para ser olhada num mundo da moda controlado por homens. Se em Something Different Eva existe para a mídia, sofrendo enquanto espetáculo público, em As Margaridas, as duas protagonistas confrontam a câmera repetidamente, parecendo gostar de mostrar os atributos da feminilidade – elas até se descrevem como bonecas. Em Fruto do Paraíso, como em As Margaridas, tudo começa no jardim do Éden – embora no segundo filme elas comum pêssego, e não maçã. Contudo, Jan Žalman acredita que a busca do significado e do enredo não vão funcionar aqui, sugerindo que o filme é mais uma experiência sinestésica do que uma história com começo, meio e fim. Fruto do Paraíso viria a ser uma das últimas manifestações da Primavera de Praga (que motivou a chegada dos tanques soviéticos e o recrudescimento do regime Comunista), foi depois deste filme que Chytilová esteve proibida de filmar até 1976, quando realizou The Apple Game (Hra o jablko). Agora, experimentos como As Margaridas e Fruto do Paraíso seriam considerados degenerados e subversivos.

“Tanto Ceiling quanto Something Different apresentam as mulheres como personagens centrais, mostram as limitações de seus papéis e expõem as formas em que são construídos. Em As Margaridas, o que parece ter começado como uma exposição semelhante torna-se, através da sua forma, uma identificação perniciosa em que o prazer de transgredir as normas leva a um objeto bonito e abstrato. Não há dúvida de que o impacto estético do filme domina seu significado pretendido – brincar com a filosofia. No entanto, enquanto Chytilová é certamente uma feminista (embora tenha negado isso - sem dúvida maliciosamente), também há poucas dúvidas de que ela foi atraída pelas artes visuais. Como a maioria dos membros do sexo masculino da Nova Onda, ela estava interessada em novas formas e novas experiências - como Kučera, a quem ela estava casada. Assim, enquanto a forma de As Margaridas certamente pode ser acomodada pela teoria feminista, não há dúvida de que não é apenas o trabalho de Chytilová e Krumbachová (mas também de Kučera) ou que sua ‘mensagem’ não suporta inteiramente a libertação total de seus protagonistas” (9)

As Margaridas de Věra


(...)  Desde  o  início é  óbvio  que  [As Margaridas]
exigirá participação interpretativa das plateias (...)

Zdena Škapová (10)

Zdena Škapová ressalta que as duas adolescentes de As Margaridas, assim como todos os outros personagens (que sempre possuem apenas uma importância marginal) são retratados como “tipos”, sem profundidade psicológica ou personalidade individual. Desta forma, o filme é como uma peça medieval de moralidade, onde cada protagonista exibe um traço de caráter exagerado com o objetivo de aprofundar o drama do enredo, sempre seguido de uma lição de moral. Chytilová também trabalha com “modelos”, que personificam e demonstram os estereótipos do comportamento humano. É curioso que Škapová lembre que Jean-Luc Godard trabalhava de forma similar na mesma época, já que dois anos depois o cineasta irá acusar todos os cineastas da Nova Onda checa, Milos Forman e Chytilová em particular, de revisionistas, formalistas e reacionários – o suíço tinha havia ido lá para filmar Pravda (1970); é verdade, explica Antoine De Baecque, que Godard não compreendia grande coisa a respeito da realidade da Checoslováquia um ano depois da Primavera de Praga (11). Entretanto, Škapová explica que a proposição da cineasta era oposta, particularmente em As Margaridas. Num mundo em que todo mundo culpa a sociedade (instituições, mídia, tecnologia, propaganda, consumismo e competição) pela deformação e manipulação do cidadão comum, Chytilová ataca repetidamente o indivíduo, apontando a falta de consciência do indivíduo, insistindo que mudanças positivas na sociedade podem ocorrer apenas quando ele deixar de justificar seu comportamento “em função das circunstâncias” (12).


“Chytilová  é  uma  diretora  sofisticada  e  não  quer  apadrinhar
a plateia com um trabalho abertamente moralista.  Ela  confunde
o   espectador   com   sua   estética   multifacetada   em   forma   e
 conteúdo [‘disfarçando’ sua mensagem através da ambiguidade]” 

Zdena Škapová (13)

Apesar de construir este quadro, que não parece salvar nenhum personagem de Chytilová da dubiedade (de resto, típica dos humanos), Škapová admite que uma olhada em toda a obra da cineasta deixa claro que suas heroínas são as únicas portadoras de traços de caráter positivos. Nenhuma delas é compreensiva, paciente ou uma esposa devotada, filhas ou mães cujo ideal de vida é estar ao lado do marido ou amante. Elas sempre encaram os obstáculos e ativamente tomam posse de suas vidas e do mundo ao redor. Por outro lado, os personagens masculinos de Chytilová são risíveis, de moral questionável, e representados de maneira bem mais esquemática. Apesar disso, Škapová insiste que Chytilová não pode ser acusada de uma atitude estreita pró-mulher ou feminista, já que não raro ela zomba das mulheres – especialmente quando se trata de uma personagem de visão estreita e focada apenas em conseguir vantagens sem o devido merecimento. É o que se pode notar claramente em As Margaridas. No roteiro original, escrito por Pavel Juráček (amigo da cineasta desde os tempos da Escola de Cinema de Praga e figura importante da Nova Onda checa), duas estudantes jovens de uma cidade pequena do interior são punidas por não resistirem às tentações da cidade grande. O roteiro de Chytilová e Krumbachová é muito menos objetivo. O espectador não conhece a realidade na qual as garotas estão envolvidas e a rotina diária de Praga deixa de ser importante. As duas não têm nomes, personalidade e comportamento são intercambiáveis, a única diferença entre elas é a aparência externa.


A bagunça da cena do banquete no final  de  As Margaridas  levou
alguns a classificar o filme como uma “comédia pastelão filosófica”

As duas protagonistas não são de forma alguma passivas, agindo energicamente em seu intuito de reverter as normas, e parecem ter grande prazer em manipular os outros, especialmente homens. Demonstram um desejo quase animal de satisfazer suas necessidades a qualquer custo. É aqui que Škapová admite que as duas são menos um exemplo de emancipação do que uma advertência a respeito da direção que esta pode tomar. Exibicionistas, adoram mostrar os atributos mais superficiais da mulher (exageram roupas e maquiagens). Não apenas zombam do homem que declara amar uma delas, mas, assim que uma das duas expressar interesse num admirador (que chama uma delas de Julie) será humilhada pela outra. O objetivo de Chytilová, afirma Škapová, é revelar gradualmente o dano causado pelas garotas, apesar da superficial atração em relação a seu comportamento malicioso. As Margaridas não tem enredo, progressão de cenas ou arco dramático, apenas justaposição de situações. Essa sequência, quando as protagonistas começam a fazer guerra de comida já suscitou a descrição do filme como uma “comédia pastelão filosófica”, relação com certo cinema mudo de comédia que a própria Chytilová admite. A propósito, as duas moças apresentam um apetite infinito, devorando indiscriminadamente todo tipo de comida, chegando até mesmo a engolir a fotografia de um bife numa propaganda de revista. Grande parte da crítica interpreta a sequência da destruição do banquete como uma crítica ao materialismo decadente e à gula da sociedade consumista. Małgorzata Radkiewicz, por outro lado, combina essa análise com seu interesse pelos estudos de gênero.


Věra Chytilová e seu diretor de fotografia construíram
As Margaridas  a  partir  do  conceito  de  colagem (14)
Durante entrevista, Chytilová disse que ela, e especialmente seu diretor de fotografia (Jaroslav Kučera, então também seu marido), basearam As Margaridas no princípio da colagem: “a sua própria maneira, a colagem expressão destruição, e meu filme é sobre isso”. Para Škapová, a colocação em segundo plano dos elementos formais do filme o tornou um dos mais poderosos exemplos de um cinema intelectual anti-ilusionista na história da sétima arte na antiga Checoslováquia. Chytilová deixa a plateia perceber que o significado das visões deverá ser decifrado. A colagem, explica ainda Škapová, é em certo sentido um tipo de jogo, e a estrutura de As Margaridas é baseada no jogo. Logo no início do filme as garotas concordam em jogar o jogo “vadi nevadi” (“isso importa? Não, não”). Essa enxurrada irracional de imagens é articulada às cenas de documentário que enquadram o filme todo, e mostram a destruição perpetrada pela guerra. Bombas explodindo, cogumelo atômico, ataque aéreo a uma cidade, edifícios desmoronando, isso é onde a indiferença das pessoas aos jogos dos outros pode levar: o pavoroso jogo do apocalipse. “Tudo no mundo está indo mal, por não nós também?”, o argumento das garotas fornece um álibi contra qualquer ataque de consciência.

“Elas não têm consciência, e não existe ninguém para sugerir que deveriam. Ninguém para criticar o comportamento delas. É quase como se o mundo reconhecesse que realmente está mal. Por fim, no final do filme, é a ‘providência’ que intervém, quando as garotas são atiradas na água (talvez tenham voado para fora da janela depois de balançar no lustre sobre o banquete devastado). [A seguir,] existe uma sugestão de que elas poderiam consertar o dano que causaram [no banquete]. No entanto, não é mais possível arrumar a mesa com os pratos quebrados e a comida que pisotearam. E quanto ao mundo? O que vai acontecer quando for habitado por seres tão sem sentimentos? [No início do filme], quando as garotas se movem, seus membros e juntas rangem como se fossem marionetes. [A seguir,] uma pergunta [para a outra, ‘eu pareço uma virgem? Eu sou uma virgem!’], mas a palavra checa ‘panna’ apresenta um duplo sentido, ao mesmo tempo virgem ou boneca. O que vai acontecer quando, na superfície, o mundo for coberto por frágeis ‘margaridas’ que são, na verdade, ervas daninhas teimosas e indestrutíveis?” (15) 



Leia também:


Notas:

1. HAMES, Peter. Czech and Slovak Cinema. Theme and Tradition. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd, 2009. Pp. 76, 119, 172.
2. ŠKAPOVÁ, Zdena. Sedmikrásky. In: HAMES, Peter (Ed.). The Cinema of Central Europe. London/New York: Wallflower Press, 2004. P. 130.
3. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Images Interdites. Paris: Quadrige/PUF, 2001. Pp. 424-5.
4. ŠKAPOVÁ, Z. Op. Cit., p. 129.
5. HAMES, P. Op. Cit., pp. 150-5.
6. ŠKAPOVÁ, Z. Op. Cit., p. 131.
7. Idem, p. 131.
8. HAMES, P. Op. Cit., p. 152.
9. Idem, p. 154.
10. ŠKAPOVÁ, Z. Op. Cit., p. 130.
11. BAECQUE, Antoine de. Godard. Biographie. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2010. Pp. 448-9.
12. ŠKAPOVÁ, Z. Op. Cit., p. 131-6.
13. Idem, p. 134.
14. Ibidem, p. 135.
15. Ibidem, p. 136.

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