”Se você prolonga a duração de uma tomada, primeiro fica
entediado. Mas se a prolonga mais, fica interessado nela.
Se a prolonga ainda mais, uma nova qualidade,
uma nova intensidade de atenção nasce” (1)
entediado. Mas se a prolonga mais, fica interessado nela.
Se a prolonga ainda mais, uma nova qualidade,
uma nova intensidade de atenção nasce” (1)
Entre Falar Sobre o Tempo e Ver o Tempo Passar
Em Nostalgia (Nostalghia, 1983), Andrei Tarkovski nos apresenta um poeta russo fazendo uma pesquisa sobre outro russo, um músico que morou anos na Itália. Gorchakov parece indiferente e entediado. Muitas vezes durante o filme acompanhamos as imagens de sua terra natal, que invadem a paisagem e a arquitetura italianas. Eugenia é a guia e tradutora que acompanha o poeta, ela parece transitar entre a indiferença a Gorchakov e a provocação sexual – ela se recente de só atrair homens complicados. O filme de Tarkovski nos propõe um entendimento em relação àquilo que está por trás da nostalgia: o tempo. Além dos dilemas dos personagens, a utilização sistemática de tomadas longas, a existência de cenas lentas que parecem nunca terminar, nos permitem entrever justamente essa passagem do tempo – e a relação dos personagens com ele. Ou pelo menos nos permitem perceber o tratamento que Tarkovski deu ao tempo em seu filme.
Esculpindo o Tempo
Na estética de
Andrei Tarkovski,
o plano geral é uma
duração de filme que
atravessa o abismo
entre o instante
e o futuro (2)
Andrei Tarkovski,
o plano geral é uma
duração de filme que
atravessa o abismo
entre o instante
e o futuro (2)
Como lembra Robert Bird, a ”imagem contínua” ou, “plano geral”, está no centro da estética cinematográfica de Andrei Tarkovski. É no plano geral que podemos captar a estrutura da imagem imprimindo a experiência sensorial e o próprio tempo na película de filme. O tempo, como aquilo que “passa”, implicaria alguma “perda”. Poderíamos, então, nos tornar nostálgicos. Entretanto, afirmou Tarkovski, “nostalgia” não é o mesmo que uma saudade do passado. É uma saudade pelo espaço de tempo que passou em vão. A razão, explica o cineasta, é que o “instante” do presente pode ser experimentado apenas quando “caímos num abismo: estamos num estado entre o instante (da vida) e o futuro (do fim)” (3). Bird enfatiza o fato de que a afirmação de Tarkovski insiste na espacialidade da experiência temporal. O tempo se torna papável quando coincide com o espaço, e seria neste exato momento que ele se torna objeto de nossa saudade e pesar.
O plano geral em Tarkovski, sugere Bird, não é importante porque permitia as coisas serem elas mesmas, mas justamente porque nos lembra insistentemente da presença da câmera. A tomada longa abrange o atual, o simbólico e o imaginário numa duração única. O real surgiria da fricção entre essas ordens da realidade, a substância do tempo. O que não é contraditório com o fato de que Tarkovski queria fazer filmes fora do tempo. Stalker (1979), por exemplo, só remete aos anos 70 do século passado por conta da trilha sonora – a não ser que alguém possa identificar o modelo dos tanques de guerra destruídos. Em Nostalgia, sabemos que estamos na Itália apenas porque nos disseram. Tarkovski considerava este seu filme mais “cinematográfico”. Os planos gerais no filme mostrariam exatamente quanto tempo Tarkovski considera necessário para permitir que o tempo se manifeste. Como na cena em que Gorchakov está em sua cama de hotel, acompanhamos um instante que concluímos equivaler a toda uma noite.
Ou ainda, na seqüência de planos gerais durante a visita de Gorchakov a casa de Domenico (4). Quando Gorchakov abre a porta, a câmera segue por um chão que mais parece a maquete de uma paisagem. Talvez acompanhando olhar de Gorchakov numa câmera subjetiva, a lente caminha até encontrar a janela. A mistura entre a paisagem no chão daquela casa e aquele fora da janela é total – quase como uma espécie de “engana olho”, o trompe-l'oeil da Renascença (imagem ao lado). Seguem-se várias tomadas passeando pelo local, num cenário que lembra Stalker, até que os dois atravessam uma sala cheia de colunas (uma imagem recorrente em Tarkovski), saindo da casa para uma praça. O ápice do filme talvez seja a longa caminhada de Gorchakov na piscina vazia com a vela acesa.
Ou ainda, na seqüência de planos gerais durante a visita de Gorchakov a casa de Domenico (4). Quando Gorchakov abre a porta, a câmera segue por um chão que mais parece a maquete de uma paisagem. Talvez acompanhando olhar de Gorchakov numa câmera subjetiva, a lente caminha até encontrar a janela. A mistura entre a paisagem no chão daquela casa e aquele fora da janela é total – quase como uma espécie de “engana olho”, o trompe-l'oeil da Renascença (imagem ao lado). Seguem-se várias tomadas passeando pelo local, num cenário que lembra Stalker, até que os dois atravessam uma sala cheia de colunas (uma imagem recorrente em Tarkovski), saindo da casa para uma praça. O ápice do filme talvez seja a longa caminhada de Gorchakov na piscina vazia com a vela acesa.
A Câmera Indiferente Diferente
Na opinião de
Andrei Tarkovski,
o cinema nada tem
a ver com "estrelas",
roteiros, diversão...
Tarkovski teria aprofundado sua concepção do plano geral a partir dos problemas que teve com censura do regime soviético em relação à primeira versão de Andrei Rublev (Andrei Rubliov, 1966). Embora o cineasta tenha conseguido manter a maioria dos planos gerais, sua função mudou, abandonando a ênfase no ritmo e na composição especial para privilegiar a eficácia narrativa. Seja como for, Tarkovski acreditava que o que leva (ou deveria levar) as pessoas ao cinema não é a história que está sendo contada, que seria apenas um pretexto. Na verdade, é na interação entre o espaço da tela e a atenção do espectador que surge o tempo (5).
“(...) Acredito que o que leva normalmente as pessoas ao cinema é o tempo: o tempo perdido, consumido ou ainda não encontrado. O espectador está em busca de uma experiência vivia, pois o cinema, como nenhuma outra arte, amplia, enriquece e concentra a experiência de uma pessoa - e não apenas a enriquece, mas a torna mais longa, significativamente mais longa. É esse o poder do cinema: ‘estrelas’, roteiros e diversão nada têm a ver com ele” (6). Logo a seguir, Tarkovski definirá qual é em sua opinião a essência do trabalho do diretor de cinema:
“Assim como o escultor toma
um bloco de mármore e, guiado
pela visão interior de sua futura
obra, elimina tudo que não faz parte
dela – do mesmo modo o cineasta,
a partir de um ‘bloco de tempo’
constituído por uma enorme e
sólida quantidade de fatos vivos,
corta e rejeita tudo aquilo de
que não necessita (...)”
Na opinião de Robert Bird, a defesa que Tarkovski faz do plano geral não deve ser entendida como uma crença ingênua em sua capacidade de captar a natureza. Trata-se, na verdade, de utilizar a inerente complexidade da técnica cinematográfica para revelar uma complexidade paralela da natureza. De fato, a lentidão da câmera de Tarkovski durante os planos gerais em Nostalgia nada tem a ver com “calma” ou “indiferença”, não fazendo sentido opô-la a “agitação” de uma câmera na mão!
Isso fica claro na cena onde Eugenia discute com Gorchakov. Citando uma hipótese de Slavoj Žižek, Bird sugere que ela começa uma discussão com ele em protesto não apenas contra a indiferença cansada dele, mas também, de certa forma, contra a calma indiferença do próprio plano geral, que não se deixa perturbar pela explosão dela. Tarkovski já havia notado um efeito similar em Andrei Rublev, na cena onde os trabalhadores são cegados. A câmera, impassível, registra o acontecimento trágico, e sua frieza aumenta a dramaticidade da seqüência. De fato, a tensão não está entre Eugenia e Gorchakov, mas entre os dois e a câmera. Ela pressiona os dois, levando-os ao limite e suas identidades já não são tão impenetráveis. Assim, a “calma” do plano geral lento de Tarkovski é tão desestabilizante quanto uma câmera trêmula e nervosa (7).
”A oposição de Tarkovski ao cinema de montagem e ênfase no plano [shot] não foram ditados por sua metafísica, mais por uma profunda humildade diante da irredutível corporeidade do mundo. O plano geral [long shot] exemplifica a maneira que o cinema permite ao mundo imaginário e simbólico da concepção do diretor interagir com a multiplicidade visual [visual manifold] enquanto se mantém aberta para incursões do real, na forma de forças aleatórias resistentes ao exercício da vontade. Esta é a ação redentora que Jacques Rancière relacionou ao cinema, que ‘desfaz o trabalho comum do cérebro humano’, restaurando ‘aos eventos da matéria sensível as potencialidades das quais o cérebro humano os privou de forma a constituir um universo sensório-motor adaptado à suas necessidades e sujeito ao seu domínio’. O controle preciso da imagem por Tarkovski permite a ela declarar sua vontade autônoma, seja nessa duração ou quando justaposta a outras imagens. Esta devoção, ao mesmo tempo ascética e estética, é a chave para todos os enunciados de Tarkovski relacionados à ética e metafísica da criação de filmes; ela conduz não um cálculo inchado de suas próprias imagens, mas um reconhecimento lúcido da função que a mídia visual veio desempenhar na determinação da própria constituição da realidade humana” (8)
Leia também:
A Nostalgia de Andrei Tarkovski (I), (final)
Leia também:
A Nostalgia de Andrei Tarkovski (I), (final)
Notas:
1. Comentário de Tarkovski na edição de seus roteiros lançada em 1999. Citado em BIRD, Robert. Andrei Tarkovski. Elements of Cinema. London: Reaktion Books Ltd, 2008. P. 197.
2. BIRD, Robert. Op. Cit., p. 189.
3. Idem.
4. Ibidem, p. 191.
5. Ibidem, p. 194.
6. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 72.
7. BIRD, Robert. Op. Cit., p. 205.
8. Idem.