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Roberto Acioli de Oliveira

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23 de mai. de 2008

As Mulheres de Ingmar Bergman (I)



“Então eu senti que cada inflexão de minha voz,
cada palavra em minha boca, era uma mentira,
uma peça cuja única função era cobrir o vazio e
o tédio. Existe  apenas  uma maneira de evitar
um estado de desespero e um colapso. Silenciar.
E alcançar  a clareza  atrás  do  silêncio, ou pelo
menos   tentar    apanhar   os   elementos   que
ainda    estariam     disponíveis     para     mim”

Do diário de Elisabet Vogler



Duas Mulheres e seus Rostos

Mais de uma vez Bergman articulou problemas de fala e mulheres que trabalham com a palavra. Em O Silêncio (Tystnaden, 1962), uma especialista em idiomas tem problemas na traquéia que a deixam acamada a maior parte do filme. Além do que, ela é incapaz de traduzir para si mesma seus próprios pensamentos e sentimentos. Não é o caso em Persona (1966), quando Elisabet Vogler, uma atriz de teatro, parou de falar durante uma apresentação de Eletra, a peça de teatro.

Elisabet é liberada por sua médica para se recuperar em lugar afastado, na companhia de uma enfermeira. Alma, a enfermeira, ao contrário dela, fala pelos cotovelos. Elisabet desiste de tentar se adequar aos papéis que a vida impõe. Alma vai chegando à mesma conclusão a partir de suas frustradas tentativas de constituir casamento e família tradicionais (1). A enfermeira conta suas intimidades, mas se decepciona ao descobrir que Elisabet a vê como um objeto de estudo. Alma começa a se sentir sugada pela personalidade enigmática daquela mulher que se recusa a falar. Ainda que não seja lenda que Bergman pensou no filme ao constatar a semelhança entre Liv Ullman e Bibi Andersson (que interpreta Alma), Liv comenta sobre as semelhanças entre Ingmar Bergman, o diretor do filme, e sua personagem Elisabet Vogler:
 
“Em Persona fiz uma atriz de teatro que repentinamente deixa de falar, um papel quase mudo. Eu tinha 25 anos e não tinha a menor ideia do que ele queria dizer. Olhava [par]a Bergman e sentia que a mulher que eu estava representando tinha muito que ver com ele: alguém muito famoso que não queria falar nem explicar quem era e se escondia atrás de uma fachada. Copiei a expressão facial de Bergman. Creio também que trabalhamos tanto tempo juntos porque eu não fazia perguntas, apenas seguia suas orientações.”(2)

Em Persona, cada mulher é o demônio da outra, submissas como o vampiro e o vampirizado. O que temos são duas pessoas se misturando até seus rostos se tornarem indistinguíveis. Jacques Aumont relaciona os personagens do filme ao fenômeno da contaminação psíquica - tema muito comum nas ficções do duplo e do vampiro, tanto na literatura quanto no cinema. Na literatura de inspiração romântica, é sempre um homem vampirizando uma mulher – ainda segundo Aumont, talvez porque do ponto de vista romântico a mulher nada tinha a temer de seu próprio reflexo no espelho.

A tese do filme sugere que algo acontece de muito simples e violento quando se retorna a um contexto anterior às relações sociais. Duas mulheres que têm a maternidade como elemento comum; ambas possuem o mesmo poder. Elisabet não assume o filho, enquanto Alma não aceita o aborto que teve de fazer. O contraponto é a médica de Elisabet, que exerce o seu poder de forma masculina. Elisabet confronta um mundo onde homens ateiam fogo a si mesmos porque outros homens enlouqueceram com o próprio poder – especificamente a cena onde que ela vê na televisão um monge budista que protestou contra a guerra do Vietnã incinerando-se (3). (acima, à direita)

Aumont reconhece nos rostos o lugar onde Bergman tornaria visíveis a possessão espiritual e moral. Na segunda parte do filme vemos Alma preocupada em não se parecer com Elisabet. Ao final do duplo monólogo ela grita: “Eu não sou Elisabet Vogler”. Mas esse “não” já é um “sim”. Quando o marido de Elisabet chega à ilha onde elas estão, Alma fala com ele como se fosse sua esposa. Elisabet assiste quieta. Ele está de óculos escuros, como que figurando uma cegueira. Elisabet está apontando o rosto para nós, os espectadores. De fato, a metade do rosto, pois que a outra metade Bergman coloca/expulsa/espreme para fora da tela.


Portanto, é como se ela estivesse assistindo o encontro de seu marido com Alma através da expressão de surpresa em nossos rostos. E ela chega a esboçar angústia através de movimentos da face quando os dois se lançam ao sexo – agora ele está sem óculos; é Elisabet que ele vê? Assim, concluiríamos, Bergman consegue dividir a tela em duas cenas. Mas acredito que ele foi além. Ao posicionar Elisabet de frente para nós, na verdade Bergman divide a tela em três partes. Esse triângulo, que inclui o mundo fora da tela, é o espaço mágico do cinema.

É através do rosto que Bergman vai figurar essa força invisível. O rosto como tela. No prólogo temos o menino estendendo sua mão tentando alcançar um rosto-tela gigante. Em seguida, temos o rosto de Elisabet Vogler no instante em que perde a fala durante a encenação de Eletra. Mas aqui, o que Vogler oferece como atriz já não é seu rosto, mas sua máscara. E o título do filme remete a essa máscara de teatro, que é mostrada da maneira mais simples, no momento em que ela apaga o rosto que a ostenta (4).

A Palavra ou a Vida 

Talvez Elisabet Vogler tenha deixado de falar por alguns dos motivos expostos por sua médica. Seja como for, ao se calar ela alcança algo que está além da linguagem, que não têm nome – como algumas das imagens do prólogo. O par Alma-Elisabet já se prefigurava no par Anna-Ester de O Silêncio. Entretanto, ainda existe mais aí: os elementos biográficos de Bergman. Sua avó materna se chamava Anna e a paterna Alma – a primeira era rica e a segunda pobre. No filme, Alma fala sem parar, é a voz daqueles que sabem que a sociedade existe e que nunca será justa – ela encarna a consciência histórica de Bergman (5). Redigido em 1965, no livro de trabalho de Bergman para Persona podemos ler:

“A senhora Vogler deseja a verdade. Procurou por ela em toda parte, e às vezes parecia ter encontrado alguma coisa para se agarrar, algo duradouro, mas então subitamente o chão desaparece sob seus pés. A verdade se dissolveu e desapareceu ou, no pior dos casos, transformou-se numa mentira. “(...) “[Do diário da senhora Vogler:] ‘Então eu senti que cada inflexão de minha voz, cada palavra em minha boca, era uma mentira, uma peça cuja única função era cobrir o vazio e o tédio. Existe apenas uma maneira de evitar um estado de desespero e um colapso. Silenciar. E alcançar a clareza atrás do silêncio, ou pelo menos tentar apanhar os elementos que ainda estariam disponíveis para mim’ “ . (6)

O silêncio de Elisabet talvez tenha permitido que Alma conseguisse finalmente ouvir a si mesma no meio de sua ensurdecedora e interminável tagarelice. A crise em que Alma começa a entrar, antes de mais nada, teria como motivo apenas o fato de que Elisabet não fala seu “idioma”: Alma não conseguia ouvir e ler o silêncio. A médica de Elisabet diz que ela não é histérica, e afirma que ela também não é uma suicida potencial. Falando diretamente a Elisabet, a médica concorda que simplesmente calar-se é realmente uma boa solução para se livrar da difícil convivência com as regras sociais hipócritas que criamos e reproduzimos em nossa sociedade. Elisabet se calou, Alma fala pelos cotovelos. Mas o tempo todo Elisabet se mostra disposta a ouvir a enfermeira. Em certo momento do filme a enfermeira viola uma carta que a atriz deixou que ela levasse ao correio. Nessa carta Elisabet fala de como é interessante estudar o comportamento de sua acompanhante. Após violar a carta, Alma aparece de pé junto a um lago, então podemos ver sua imagem refletida de cabeça para baixo na água (imagem abaixo). O tema do duplo se manifesta também neste desdobramento da imagem de Alma. De repente, a partir do estímulo da palavra escrita (e não da falada) de Elisabet na carta, Alma parece finalmente tomar a si mesma como objeto de estudo – sujeito e objeto de si mesma.

Desta forma, seu interior aflora (o reflexo na água como metáfora visual) para ela mesma. E esse interior é turvo, como a água nos mostra com o encrespamento da superfície produzido pelo vento. Alma confronta Elisabet. Na seqüência do caco de vidro, quando Alma deixa seu copo se quebrar e escolhe não retirar todos os cacos do caminho de Elisabet, a enfermeira quer ferir aquela mulher que ela não compreende - mas que ao mesmo tempo já se torna parte da própria incompreensão de si mesma.

A partir daí, muda o comportamento de Alma em relação à Elisabet. Inicialmente apenas hostil, Alma começa então a paulatinamente misturar-se com Elisabet. Talvez como se ela fosse Elisabet examinando outra pessoa que se chama Alma – e que está dentro dela mesma. É neste momento que Bergman faz um rasgo na tela e na pintura. De repente a película de filme que estamos assistindo se rompe, como que para mostrar a fragmentação do personagem. Na próxima imagem, a película começa a queimar no momento em que Alma aparece, deixando um buraco no lugar de seu rosto. Na seqüência seguinte, temos Elisabet andando pela sala, sua imagem está fora de foco (seria o efeito da confusão mental de Alma refletindo em sua visão?). Em seguida, a imagem de Elisabet entra em foco e o filme continua – esse recurso da imagem fora de foco nos faz lembrar do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (imagens abaixo). Dez anos depois do lançamento do filme, a atriz Bibi Andersson explica o que ela acreditava se passar na mente de seu personagem, a enfermeira Alma:

"Eu penso que por um tempo as duas mulheres realmente se misturaram, que eu enquanto enfermeira a compreendi. Eu me identifiquei com ela, e eu era até mesmo capaz de dizer coisas por ela. Estou certa de que tudo isso irá mudar a vida da enfermeira, porque antes ela era muito antiquada. Ela nunca utilizou sua imaginação em relação aos outros; também nunca analisou o que estava acontecendo para si mesma. Repentinamente, através do silêncio de outra mulher, ela foi capaz de colocar-se no lugar dela, compreender seu mundo e seu pensamento, e expressar isso”. (7)

Notas:

1. JUNIOR, Gilberto Silva. Contracampo. Revista de Cinema. 08/02/2006.
2. O Cinema aos Olhos de Liv Ullman. Entrevista a Antônio Junior. Revista de Cultura #44. 03/2005. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/ag44ullmann.htm Acesso em: 23/05/2008.
3. AUMONT, Jacques. Ingmar Bergman. ‘Mes films sont l’explication de mes images’. Paris: Cahiers du Cinema, 2003. P. 177-8.
4. Idem, pp. 178-9.
5. Ibidem, p. 180.
6. O primeiro trecho também pode ser encontrado, com a forma ligeiramente alterada, no livro de Bergman: Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Pp. 59-60.
Bergmanorama. The Magic Works of Ingmar Bergman. Disponível em: http://bergmanorama.webs.com/films/persona.htm Acesso em: 23/05/2008.
7. Bibi Andersson, "Dialogue on Film", American Film (March 1977). Bergmanorama... Disponível em: 
https://web.archive.org/web/20090611044424/http://bergmanorama.webs.com/repertory/bibi_andersson_afi77.htm Acesso em: 23/05/2008.

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